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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Kwame Nkrumah: Discurso na OUA (1963) - A África deve unir-se.

O discurso icônico de Kwame Nkrumah, presidente da independência de Gana, na cerimônia inaugural da Conferência da OUA em Addis Abeba, Etiópia, em 1963.

 Discurso parte da seleção trazida por Fuca, Insurreição CGPP: 

Palavras de Independência da África II: Nkrumah, Olympio, Keita e Kaunda. (Pdf aqui) ou no link: https://drive.google.com/file/d/1It8Mjb-riPZAuG7gDUOzu15QJ23GJ_Oz/view?usp=sharing


Excelências, colegas, irmãos e amigos.

No primeiro encontro de Chefes de Estado africanos, ao qual tive a honra de ser anfitrião, havia apenas representantes de oito Estados independentes. Hoje, cinco anos depois, nos encontramos com representantes de nada menos do que trinta e dois Estados, os convidados de Sua Majestade Imperial, Haile Selassie, o primeiro, e o Governo e o povo da Etiópia. À Sua Majestade Imperial, desejo expressar, em nome do Governo e do povo de Gana, meu profundo agradecimento pela recepção cordial e hospitalidade generosa.

O aumento de nosso número neste curto espaço de tempo é um testemunho aberto da onda indomável e irresistível de nossos povos pela independência. É também um sinal da velocidade revolucionária dos eventos mundiais na segunda metade deste século. Na tarefa que temos diante de unificar nosso continente, devemos entrar nesse ritmo ou ficaremos para trás. Essa tarefa não pode ser deixada para outra época além da nossa. Ficar para trás neste momento sem precedentes de ações e eventos em nosso tempo será cair no fracasso e na nossa própria ruína.

Um continente inteiro nos impôs um mandato para estabelecer os alicerces de nossa União nesta Conferência. É nossa responsabilidade executar este mandato, criando aqui e agora a fórmula sobre a qual a superestrutura necessária pode ser erguida.

Neste continente, não se demorou muito para descobrir que a luta contra o colonialismo não termina com a conquista da independência nacional. A independência é apenas o prelúdio de uma luta nova e mais envolvida pelo direito de conduzir nossos próprios assuntos econômicos e sociais; construir nossa sociedade de acordo com nossas aspirações, sem impedimentos dos controles humilhantes e esmagadores das interferências neocolonialistas.

Desde o início, somos ameaçados pela frustração, onde a mudança rápida é imperativa; e pela instabilidade, onde o esforço continuado e a ordem são indispensáveis.

Nenhuma ação esporádica ou resolução piedosa pode resolver nossos problemas atuais. Nada será útil, exceto a ação conjunta de uma África unida. Já alcançamos o estágio em que devemos nos unir para não cairmos na mesma condição que fez da América Latina a presa relutante e aflita do imperialismo, após um século e meio de independência política.

Como continente, emergimos para a independência em uma era diferente, com o imperialismo cada vez mais forte, mais cruel e experiente, e mais perigoso em suas associações internacionais. Nosso avanço econômico exige o fim da dominação colonialista e neocolonialista na África.

Assim como entendemos que a formação de nossos destinos nacionais exigia de cada um de nós nossa independência política e direcionando toda a nossa força a essa conquista, no entanto, devemos reconhecer que nossa independência econômica reside em nossa união africana e requer a mesma concentração da conquista política.

A unidade do nosso continente, não menos que a independência de cada país, será adiada, ou até perdida, se nos associarmos com o colonialismo. A unidade africana é, acima de tudo, um reino político que só pode ser conquistado por meios políticos. O desenvolvimento social e econômico da África virá apenas dentro do reino político, e não o contrário. Os Estados Unidos da América, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, foram as decisões políticas dos povos revolucionários antes de se tornarem realidades potentes de poder social e riqueza material.

Como, exceto por nossos esforços conjuntos, as partes mais ricas e ainda escravizadas de nosso continente serão libertadas da ocupação colonial e ficarão disponíveis para nós no desenvolvimento total de nosso continente? Cada passo na descolonização do nosso continente trouxe maior resistência nas áreas em que tropas coloniais estão disponíveis a favor do colonialismo.

Esse é o grande desígnio dos interesses imperialistas que sustentam o colonialismo e o neocolonialismo, e estaríamos nos enganando da maneira mais cruel se considerássemos suas ações individuais separadas e não relacionadas. Quando Portugal viola a fronteira do Senegal, quando Verwoed alocou um sétimo do orçamento da África do Sul para forças armadas e policiais, quando a França constrói como parte de sua política de defesa uma força intervencionista que pode intervir, mais especialmente na África francófona, quando Welensky fala da Rodésia do Sul se juntando à África do Sul, tudo faz parte de um padrão cuidadosamente calculado, trabalhando para um único fim: a escravização contínua de nossos irmãos ainda dependentes e um ataque à independência de nossos Estados soberanos da África.

Temos alguma outra arma contra esse projeto além da nossa unidade? Nossa unidade não é essencial para proteger nossa própria liberdade, assim como conquistar a liberdade para nossos irmãos oprimidos, os combatentes pela liberdade?

Não é somente a unidade que pode nos fundir em uma força efetiva capaz de criar nosso próprio progresso e fazer nossa valiosa contribuição para a paz mundial? Que Estado africano independente reivindicará que sua estrutura financeira e instituições bancárias serão totalmente aproveitadas para o seu desenvolvimento nacional? Quem afirmará que seus recursos materiais e energias humanas estão disponíveis para suas próprias aspirações nacionais? Quem negará uma medida substancial de decepção e desilusão em seu desenvolvimento agrícola e urbano?

Na África independente, já estamos reexperimentando a instabilidade e frustração que existiam sob o domínio colonial. Estamos aprendendo rapidamente que a independência política não é suficiente para nos livrar das consequências do domínio colonial. O movimento das massas do povo da África pela liberdade desse tipo de domínio não foi apenas uma revolta contra as condições que ele impôs.

Nosso povo nos apoiou em nossa luta pela independência porque acreditava que os governos africanos poderiam curar os males do passado de uma maneira que nunca poderia ser realizada sob o domínio colonial. Se, portanto, agora que somos independentes, permitimos que existam as mesmas condições que existiam nos dias coloniais, todo o ressentimento que derrubou o colonialismo será mobilizado contra nós.

Os recursos estão lá. Cabe a nós reuni-los no serviço ativo de nosso povo. A menos que façamos isso com nossos esforços combinados, dentro da estrutura de nosso planejamento combinado, não progrediremos no ritmo exigido pelos acontecimentos de hoje e na disposição de nosso povo. Os sintomas de nossos problemas crescerão e os próprios problemas se tornarão crônicos. Será tarde demais para a Unidade Pan-Africana nos garantir estabilidade e tranquilidade em nossos trabalhos para um continente de justiça social e bem-estar material. A menos que estabeleçamos a Unidade Africana agora, nós, que estamos sentados aqui hoje, seremos as vítimas e mártires do neocolonialismo.

Temos diversas evidências de que os imperialistas não se afastaram de nossos assuntos. Há momentos, como no Congo, em que sua interferência se manifesta. Mas geralmente é encoberta por muitas agências, que se intrometem em nossos assuntos domésticos, e fomentam dissensões dentro de nossas fronteiras criando uma atmosfera de tensão e instabilidade política. Enquanto não acabarmos com as causas profundas do descontentamento, prestamos ajuda a essas forças neocolonialistas e nos tornaremos nossos próprios executores. Não podemos ignorar os ensinamentos da história.

Nosso continente é provavelmente o mais rico do mundo em minerais e materiais primários industriais e agrícolas. Somente no Congo, as firmas ocidentais exportaram cobre, borracha, algodão e outros bens no valor de 2, 773 bilhões de dólares em dez anos, entre 1945 e 1955, e da África do Sul, as empresas de mineração de ouro ocidentais obtiveram lucro, nos quatro anos, entre 1947 e 1951, de 814 bilhões de dólares.

Nosso continente certamente excede todos os outros em potencial de energia hidrelétrica, que alguns especialistas avaliam sendo 42% do total do mundo. Que necessidade existe para continuarmos abastecendo (hewers) as áreas industrializadas do mundo?

Dizem, é claro, que não temos capital, habilidade industrial, comunicação ou mercado interno, e que nem sequer podemos concordar entre nós sobre a melhor forma de utilizar nossos recursos.

No entanto, todas as bolsas de valores do mundo estão preocupadas com os minérios de ouro, diamantes, urânio, platina, cobre e ferro da África. Nosso capital flui em correntes para irrigar todo o sistema da economia ocidental. Acredita-se que 52% do ouro em Fort Knox neste momento, onde os EUA armazenam seu ouro, tenham se originado em nossas Costas. A África fornece mais de 60% do ouro do mundo. Grande parte do urânio para energia nuclear, de cobre para eletrônica, de titânio para projéteis supersônicos, de ferro e aço para indústrias pesadas, de outros minerais e matérias-primas para indústrias leves - o poder econômico básico das potências estrangeiras - vem do nosso continente.

Especialistas estimaram que somente a bacia do Congo pode produzir alimentos suficientes para satisfazer as necessidades de quase metade da população de todo o mundo.

Durante séculos, a África tem sido a vaca leiteira do mundo ocidental. Foi o nosso continente que ajudou o mundo ocidental a construir sua riqueza acumulada.

É verdade que agora estamos rejeitando o jugo do colonialismo o mais rápido possível, mas nosso sucesso nessa direção é igualado por um intenso esforço por parte do imperialismo de continuar a exploração de nossos recursos, criando divisões entre nós.

Quando as colônias do continente americano procuraram se libertar do imperialismo no século XVIII, não havia ameaça de neocolonialismo no sentido em que o conhecemos hoje. Os Estados americanos estavam, portanto, livres para formar e moldar a unidade mais adequada às suas necessidades e estruturar uma constituição para manter sua unidade sem qualquer forma de interferência de fontes externas. Contudo, estamos lidando com intervenções externas, então precisamos nos juntar na unidade africana que, por si só, pode nos salvar das garras do neocolonialismo.

Nós temos os recursos. Foi o colonialismo em primeiro lugar que nos impediu de acumular o capital efetivo; mas nós mesmos falhamos em fazer pleno uso de nosso poder na independência e mobilizar nossos recursos para decolar num desenvolvimento econômico e social completo e mais eficaz. Estamos muito ocupados cuidando de nossos Estados separados para entender completamente a necessidade básica de nossa união, enraizada em um objetivo comum, em um planejamento comum e em um esforço comum. Uma união que ignora essas necessidades fundamentais não passa de uma vergonha. É apenas unindo nossa capacidade produtiva e a produção resultante que podemos acumular capital. E assim que começarmos, o impulso aumentará. Com o capital controlado por nossos próprios bancos, atrelado ao nosso verdadeiro desenvolvimento industrial e agrícola, faremos o nosso avanço. Acumularemos máquinas e estabeleceremos siderúrgicas, fundições e fábricas de ferro; vincularemos os vários Estados do nosso continente com comunicações; surpreenderemos o mundo com nossa energia hidrelétrica; drenaremos brejos e pântanos, limparemos áreas infestadas, alimentaremos os subnutridos e livraremos nosso povo de parasitas e doenças. Está dentro da possibilidade da ciência e da tecnologia fazer até o Saara florescer em um vasto campo com vegetação verdejante para desenvolvimentos agrícolas e industriais. Utilizaremos o rádio, a televisão e os grandes jornais impressos para elevar nosso povo dos retrocessos sombrios do analfabetismo.

Uma década atrás, essas seriam palavras visionárias, as fantasias de um sonhador ocioso. Mas esta é a era em que a ciência transcendeu os limites do mundo material e a tecnologia invadiu os silêncios da natureza. Tempo e espaço foram reduzidos a abstrações sem importância. Máquinas gigantes fazem estradas, limpam florestas, escavam barragens; caminhões e aviões gigantes distribuem mercadorias; enormes laboratórios fabricam remédios; pesquisas geológicas complexas são feitas; poderosas centrais elétricas são construídas; colossais fábricas erguidas - tudo a uma velocidade incrível. O mundo não está mais se movendo pelos caminhos do mato ou pelos camelos e burros.

Não podemos nos dar ao luxo de acompanhar nossas necessidades, nosso desenvolvimento, nossa segurança ao andar de camelos e burros. Não podemos nos dar ao luxo de não derrubar os arbustos de atitudes obsoletas que obstruem nossa estrada para o caminho moderno da conquista recente e mais ampla da independência econômica e para elevar a vida de nosso povo ao mais alto nível.

Mesmo para outros continentes sem recursos da África, esta é a era que vê o fim das necessidades humanas. Para nós, é uma simples questão de apreender com certeza nossa herança usando o poder político da unidade. Tudo o que precisamos fazer é desenvolver com a nossa força unida os enormes recursos do nosso continente. Uma África unida fornecerá um campo estável de investimento estrangeiro, o que ajudará enquanto não se comportar de maneira adversa aos nossos interesses africanos. Pois esse investimento agregaria suas empresas ao desenvolvimento da economia nacional, ao emprego e ao treinamento de nosso povo e será bem-vindo à África. Ao lidar com uma África unida, os investidores não precisarão mais pesar com preocupação os riscos de negociar com os governos de um período que pode não existir no período seguinte. Em vez de negociar com tantos Estados separados ao mesmo tempo, eles estarão lidando com um governo unido que segue uma política continental harmonizada.

Qual é a alternativa para isso? Se vacilarmos nesta fase, e deixarmos o tempo passar para o neocolonialismo consolidar sua posição neste continente, qual será o destino de nosso povo que depositou sua confiança em nós? Qual será o destino dos nossos combatentes pela liberdade? Qual será o destino de outros territórios africanos que ainda não estão livres?

A menos que possamos estabelecer grandes complexos industriais na África - o que só podemos fazer com a África unida - devemos ter nosso campesinato à mercê dos mercados estrangeiros e enfrentar a mesma inquietação que derrubou os colonialistas? Que utilidade para o agricultor tem educação e mecanização, que utilidade tem mesmo o capital para o desenvolvimento; a menos que possamos garantir para ele um preço justo e um mercado pronto? O que os camponeses, trabalhadores e agricultores ganharam com a independência política, a não ser que possamos garantir a eles um retorno justo pelo seu trabalho e um padrão de vida mais alto?

A menos que possamos estabelecer grandes complexos industriais na África, o que o trabalhador urbano, e todos aqueles camponeses em terras superlotadas, têm ganhado com a independência política? Se eles permanecerem desempregados ou em ocupação não qualificada, o que lhes valerá as melhores instalações para educação, treinamento técnico, energia e ambição que a independência nos permite proporcionar?

Quase não existe Estado Africano sem problemas de fronteira com seus vizinhos adjacentes. Seria inútil enumerá-los aqui, porque eles já são familiares a todos nós. Mas deixe-me sugerir a Vossa Excelência que este resquício fatal do colonialismo nos levará à guerra um contra o outro à medida que nosso desenvolvimento industrial não planejado e descoordenado se expande, assim como aconteceu na Europa. A menos que consigamos deter o perigo através da compreensão mútua sobre questões fundamentais e através da Unidade Africana, que tornarão obsoletas e supérfluas as fronteiras existentes, teremos lutado em vão pela independência. Somente a Unidade Africana pode curar essa ferida inflamada de disputas de fronteiras entre nossos vários Estados. Excelências, o remédio para esses males está pronto em nossas mãos. Encara-nos de frente em todas as barreiras alfandegárias, grita para nós cada coração africano. Ao criar uma verdadeira união política de todos os Estados independentes da África, podemos enfrentar, esperançosamente, todas as emergências, todos os inimigos e todas as complexidades. Isso não é porque somos uma raça de super-homem, mas porque emergimos na era da ciência e tecnologia em que pobreza, ignorância e doença não são mais os mestres, mas os inimigos da humanidade. Surgimos na era do planejamento socializado, quando a produção e a distribuição não são governadas pelo caos, pela ganância e pelo interesse próprio, mas pelas necessidades sociais. Juntamente com o resto da humanidade, despertamos dos sonhos utópicos para buscar projetos práticos de progresso e justiça social.

Acima de tudo, emergimos em um momento em que uma massa de terra continental como a África, com sua população próxima de trezentos milhões, é necessária para a capitalização econômica e rentabilidade dos métodos e técnicas produtivas modernas. Nenhum de nós, trabalhando isoladamente ou individualmente, pode alcançar com êxito o desenvolvimento pleno. Certamente, nessas circunstâncias, não será possível prestar assistência adequada aos Estados irmãos que tentam, nas condições mais difíceis, melhorar suas estruturas econômicas e sociais. Somente uma África unida que funcione sob um governo da União pode mobilizar vigorosamente os recursos materiais e morais de nossos países separados e aplicá-los de maneira eficiente e energética para trazer uma rápida mudança nas condições de nosso povo.

Se não abordarmos os problemas na África com uma frente comum e um propósito comum, ficaremos discutindo entre nós até sermos colonizados novamente e nos tornarmos portagens de um colonialismo muito maior do que sofremos até então.

Devemos nos unir. Sem necessariamente sacrificar nossas soberanias, grandes ou pequenas, podemos, aqui e agora, forjar uma união política baseada na Defesa, Negócios Estrangeiros e Diplomacia, uma Cidadania comum, uma moeda africana, uma Zona Monetária Africana e um Banco Central Africano. Devemos nos unir para alcançar a libertação total do nosso continente. Precisamos de um sistema de Defesa comum com um Alto Comando Africano para garantir a estabilidade e a segurança da África.

Fomos encarregados dessa tarefa sagrada por nosso próprio povo, e não podemos trair sua confiança ao falhar com eles. Iremos zombar das esperanças de nosso povo se mostrarmos a menor hesitação ou atraso ao abordar realisticamente esta questão da Unidade Africana.

O fornecimento de armas ou outra ajuda militar aos opressores coloniais na África deve ser considerado não apenas como auxílio à derrota dos combatentes da liberdade que lutam pela independência africana, mas como um ato de agressão contra toda a África. Como podemos enfrentar essa agressão, exceto pelo peso total de nossa força unida?

Muitos de nós transformamos o não-alinhamento em um artigo de fé neste continente. Não temos desejo nem intenção de sermos atraídos pela Guerra Fria. Mas com a atual fraqueza e insegurança de nossos Estados no contexto da política mundial, a busca por bases de influência traz a Guerra Fria para a África com seu perigo de guerra nuclear. A África deve ser declarada uma zona livre de armas nucleares e das exigências da Guerra Fria. Mas não podemos tornar essa demanda obrigatória, a menos que a sustentemos com uma posição de força que pode ser encontrada apenas em nossa unidade.

Em vez disso, muitos Estados africanos independentes estão envolvidos em pactos militares com as antigas potências coloniais. A estabilidade e a segurança que esses dispositivos procuram estabelecer são ilusórias, pois as potências metropolitanas aproveitam a oportunidade para apoiar seus controles neocolonialistas por envolvimento militar direto. Vimos como os neocolonialistas usam suas bases para entrincheirar-se e atacar Estados independentes vizinhos. Tais bases são centros de tensão e potenciais pontos dos perigos de conflitos militares. Eles ameaçam a segurança não apenas do país em que estão localizados, mas também dos países vizinhos. Como podemos esperar tornar a África uma zona livre de armas nucleares e independente da pressão da Guerra Fria com esse envolvimento militar em nosso continente? Apenas contrabalanceando uma força de defesa comum com uma política de defesa comum baseada no nosso desejo de uma África livre da ordem estrangeira ou da presença militar e nuclear. Isso exigirá um Alto Comando Africano abrangente, especialmente se os pactos militares com os imperialistas forem renunciados. É a única maneira de romper esses vínculos diretos entre o colonialismo do passado e o neocolonialismo que nos interrompe hoje.

Não queremos nem visualizamos um Alto Comando Africano nos termos da política de poder que agora governa grande parte do mundo, mas como um instrumento essencial e indispensável para garantir a estabilidade e a segurança em África.

Precisamos de um planejamento econômico unificado para a África. Até que o poder econômico da África esteja em nossas mãos, as massas não podem ter nenhuma preocupação real e nenhum interesse real em salvaguardar nossa segurança, em garantir a estabilidade de nossos regimes e em dobrar suas forças para o cumprimento de nossos fins. Com nossos recursos, energias e talentos juntos, temos os meios, assim que demonstrarmos vontade, de transformar as estruturas econômicas de nossos Estados individuais da pobreza para a riqueza, da desigualdade para a satisfação das necessidades populares. Somente de forma continental poderemos planejar a utilização adequada de todos os nossos recursos para o pleno desenvolvimento de nosso continente.

De que outra forma manteremos nosso próprio capital para o nosso desenvolvimento? De que outra forma vamos estabelecer um mercado interno para nossas próprias indústrias? Pertencendo a diferentes zonas econômicas, como quebraremos as barreiras cambiais e comerciais entre os Estados africanos, e como os economicamente mais fortes entre nós poderão ajudar os Estados mais fracos e menos desenvolvidos?

É importante lembrar que o financiamento independente e o desenvolvimento independente não podem ocorrer sem uma moeda independente. Um sistema monetário apoiado pelos recursos de um Estado estrangeiro está ipso facto sujeito aos acordos comerciais e financeiros desse país estrangeiro.

De modo que temos tantas barreiras alfandegárias e cambiais como resultado de estarmos sujeitos aos diferentes sistemas monetários de potências estrangeiras, isso serviu para aumentar a diferença entre nós na África. Como, por exemplo, comunidades e famílias relacionadas podem negociar e apoiar-se mutuamente, se se encontram divididas por fronteiras nacionais e restrições de moeda? A única alternativa aberta a eles nessas circunstâncias é usar moeda contrabandeada e enriquecer criminosos e trapaceiros nacionais e internacionais que atacam nossas dificuldades financeiras e econômicas.

Atualmente, nenhum Estado africano independente tem a chance de seguir um curso independente de desenvolvimento econômico, e muitos de nós que tentamos fazer isso estamos quase arruinados ou tivemos que voltar ao rebanho dos antigos governantes coloniais. Esta posição não será alterada, a menos que tenhamos uma política unificada trabalhando no nível continental. O primeiro passo para nossa economia coesa seria uma zona monetária unificada, com, inicialmente, uma paridade comum acordada para nossas moedas. Para facilitar esse arranjo, Gana mudaria para um sistema decimal. Quando descobrimos que o arranjo de uma paridade comum fixa está funcionando com êxito, parece não haver razão para não instituir uma moeda comum e um único banco de emissão. Com uma moeda comum de um banco de emissão comum, poderemos caminhar com nossos próprios pés porque esse arranjo seria totalmente respaldado pelos produtos nacionais combinados dos Estados que compõem a união. Afinal, o poder de compra do dinheiro depende da produtividade e da exploração produtiva dos recursos naturais, humanos e físicos da nação.

Enquanto asseguramos nossa estabilidade por um sistema de defesa comum, e nossa economia está sendo orientada além do controle estrangeiro por uma moeda comum, Zona Monetária e Banco Central de Emissão, podemos apurar os recursos de nosso continente. Podemos começar a verificar se, na realidade, somos os mais ricos, ou não, como fomos ensinados a acreditar, os mais pobres entre os continentes. Podemos determinar se possuímos o maior potencial em energia hidrelétrica e se podemos aproveitá-lo e outras fontes de energia para nossas próprias indústrias. Podemos continuar planejando nossa industrialização em escala continental e construindo um mercado comum para quase trezentos milhões de pessoas.

O planejamento continental comum para o desenvolvimento industrial e agrícola da África é uma necessidade vital.

Tantas bênçãos devem fluir de nossa unidade; tantos desastres devem seguir nossa contínua desunião, que nosso fracasso em nos unir hoje não será atribuído no futuro apenas ao discurso falho e à falta de coragem, mas por nossa capitulação diante das forças do imperialismo.

A hora da história que nos trouxe a esta assembleia é uma hora revolucionária. É a hora da decisão. Pela primeira vez, o imperialismo econômico que nos ameaça é desafiado pela vontade irresistível de nosso povo.

As massas do povo da África estão clamando por união. O povo da África pede uma quebra das fronteiras que os mantem separados. Eles exigem o fim das disputas fronteiriças entre os Estados africanos irmãos - disputas que surgem das barreiras artificiais que nos dividiram. Foi o propósito do colonialismo que nos deixou com o irredentismo fronteiriço que rejeitou nossa fusão étnica e cultural.

Nosso povo clama por unidade para que não percam seu patrimônio no serviço perpétuo do neocolonialismo. Em seu fervoroso esforço pela unidade, eles entendem que apenas essa realização dará pleno significado à sua liberdade e à nossa independência africana.

É essa determinação popular que deve nos levar a uma União de Estados Africanos Independentes. Em atraso, há perigo para o nosso bem-estar, para a nossa própria existência como Estados livres. Sugeriu-se que nossa abordagem de unidade fosse gradual, que fosse feita por partes. Este ponto de vista concebe a África como uma entidade estática com problemas "congelados" que podem ser eliminados um a um e quando tudo tiver sido resolvido, podemos nos reunir e dizer: “Agora está tudo bem. Vamos nos unir”. Essa visão não leva em consideração o impacto das pressões externas. Também não toma conhecimento do perigo de que o atraso possa aprofundar nossos isolamentos e exclusividade; que pode ampliar nossas diferenças e nos separar cada vez mais na rede do neocolonialismo, para que nossa união se torne apenas uma esperança enfraquecida, e o grande projeto da redenção completa da África se perca, talvez, para sempre.

Expressa-se também que nossas dificuldades poderiam ser resolvidas simplesmente por uma maior colaboração por meio de associação cooperativa em nossas relações interterritoriais. Essa maneira de encarar nossos problemas nega uma concepção adequada de suas inter-relações e mutualidades. Nega a confiança num futuro para o progresso africano, na independência africana. Trai um senso de solução apenas na dependência contínua de fontes externas por meio de acordos bilaterais para formas econômicas e outras formas de ajuda.

O fato é que, embora estivéssemos cooperando e nos associando uns aos outros em vários campos de empreendimentos comuns, mesmo antes dos tempos coloniais, isso não nos deu a identidade continental e a força política e econômica que nos ajudariam a lidar efetivamente com os problemas complicados que hoje enfrentamos na África. No que diz respeito à ajuda externa, a África Unida estaria em uma posição mais favorável para atrair assistência de fontes estrangeiras. Há a vantagem muito mais convincente que esse acordo oferece, pois a ajuda virá de qualquer lugar para a África, porque nosso poder de barganha se tornaria infinitamente maior. Não dependeremos mais da ajuda de fontes restritas. Teremos o mundo para escolher.

O que estamos procurando na África? Estamos procurando acordos, concebidas à luz do exemplo das Nações Unidas (ONU)? Um tipo de organismo como a ONU cujas decisões são formuladas com base em resoluções que, em nossa experiência, às vezes foram ignoradas pelos Estados membros? Onde os agrupamentos são formados e as pressões se desenvolvem de acordo com o interesse do grupo em questão? Ou pretende-se que a África se transforme em uma organização perdida dos Estados, segundo o modelo da organização dos Estados americanos, em que os Estados mais fracos dentro dele podem estar à mercê dos mais fortes ou mais poderosos, política ou economicamente, ou à mercê de algumas nações ou grupos externos de nações poderosas? É este o tipo de associação que queremos para nós mesmos na África Unida da qual todos falamos com tanto sentimento e emoção?

Excelências, permita-me perguntar: este é o tipo de estrutura que desejamos para a nossa África Unida? E arranjos que no futuro poderiam permitir Gana ou Nigéria ou Sudão, Libéria, Egito ou Etiópia, por exemplo, usar a pressão que a influência política ou econômica superior dá, para ditar o fluxo e a direção do comércio de, digamos, Burundi ou Togo ou Niassalândia (Malawi) ou Moçambique?

Todos nós queremos uma África unida, unida não apenas em nosso conceito que a unidade pode denotar, mas unidos em nosso desejo comum de avançar juntos e lidar com todos os problemas que podem ser mais bem resolvidos apenas em uma base continental.

Quando o primeiro Congresso dos Estados Unidos se reuniu há muitos anos na Filadélfia, um dos delegados fez a primeira tarefa de unidade, declarando que eles haviam se encontrado em um "estado de natureza", em outras palavras, eles não estavam na Filadélfia como sendo da Virginia ou da Pensilvânia, mas simplesmente como americanos. Essa referência a si mesmos como americanos era naqueles dias uma experiência nova e estranha.

Posso me atrever a afirmar igualmente nesta ocasião, Excelências, que nos encontramos aqui hoje não como ganenses, guineenses, egípcios, argelinos, marroquinos, malianos, liberianos, congoleses ou nigerianos, mas como africanos. Os africanos uniram-se em nossa decisão de permanecer aqui até chegarmos a um acordo sobre os princípios básicos de um novo pacto de unidade entre nós, o que garante para nós e para o futuro um novo arranjo do governo continental.

Se conseguirmos estabelecer um novo conjunto de princípios como base de uma nova Carta ou Estatuto para o estabelecimento de uma Unidade Continental da África e a criação de progresso social e político para nosso povo, então, a meu ver, esta Conferência deve marcar o fim de nossos vários agrupamentos e blocos regionais. Mas se fracassarmos e deixarmos escapar essa grande e histórica oportunidade, devemos dar lugar a uma maior dissensão e divisão entre nós, pela qual o povo da África nunca nos perdoará. As forças e movimentos populares e progressistas na África nos condenarão. Estou certo, portanto, de que não devemos falhar com eles.

Já falei longamente, Excelências, porque é necessário que todos nós expliquemos não apenas um ao outro presente aqui, mas também ao nosso povo que nos confiou o destino da África. Portanto, não devemos deixar este local até que tenhamos criado ferramentas eficazes para alcançar a Unidade Africana. Para esse fim, proponho agora para sua consideração o seguinte:

Como primeiro passo, Excelências, uma Declaração de Princípios que nos una e à qual todos devemos ser fiéis e leais, e a definição dos fundamentos da unidade deve ser estabelecida. E também deve haver uma declaração formal de que todos os Estados Africanos Independentes aqui e agora concordam com o estabelecimento de uma União de Estados Africanos.

Como um segundo e urgente passo para a realização da unificação da África, um Comitê de Ministros das Relações Exteriores de toda a África será criado agora, e que antes de sairmos desta conferência, um dia deve ser fixado para que eles se encontrem.

Este Comitê deve estabelecer, em nome dos Chefes de nossos Governos, um corpo permanente de funcionários e especialistas para elaborar um mecanismo para o Governo da União da África. Este corpo de funcionários e especialistas deve ser composto por dois cérebros de cada Estado Africano Independente. As várias cartas dos agrupamentos existentes e outros documentos relevantes também podem ser apresentados aos funcionários e especialistas. Um praesidium (comitê) constituído pelo Chefe dos Governos dos Estados Africanos Independentes deve ser chamado a cumprir e adotar uma Constituição e outras recomendações que lancem o Governo da União da África.

Também devemos decidir sobre a alocação em que esse corpo de funcionários e especialistas funcionará como a nova sede ou capital do governo da União. Algum lugar central na África pode ser a sugestão mais justa em Bangui, na República Centro Africana, ou em Leopoldville, no Congo. Meus colegas podem ter outras propostas. O Comitê de Ministros das Relações Exteriores, funcionários e especialistas devem ter poderes para estabelecer:

1. Uma Comissão para formular uma Constituição para um Governo da União dos Estados Africanos;

2. Uma Comissão para elaborar um plano em todo o continente para um programa econômico e industrial unificado ou comum para a África; este plano deve incluir propostas para a criação de:

• Um mercado comum para a África

• uma moeda africana

• Zona Monetária Africana

• Banco Central Africano, e

• Sistema de Comunicação Continental;

3. Uma comissão para elaborar detalhes de uma política externa e diplomacia comuns;

4. Uma Comissão para elaborar planos para um Sistema Comum de Defesa;

5. Uma Comissão para fazer propostas para a Cidadania Africana Comum.

Essas comissões reportarão ao Comitê de Ministros das Relações Exteriores que, por sua vez, deverá submeter ao Praesidium, dentro de seis meses após esta Conferência, suas recomendações. A reunião do Praesidium em conferência na sede da União considerará e aprovará as recomendações do Comitê de Ministros das Relações Exteriores.

A fim de fornecer fundos imediatamente para o trabalho dos funcionários permanentes e especialistas da sede da União, sugiro que um Conselho especial seja criado agora para trabalhar um orçamento para isso.

Excelências, com estas etapas, eu afirmo, estaremos irrevogavelmente comprometidos com o caminho que nos levará a um governo da União da África. Somente uma África unida com direção política central pode fornecer material eficaz e apoio moral aos nossos combatentes da liberdade no sul da Rodésia, Angola, Moçambique, sudoeste da África, Bechuanalândia (Botsuana), Suazilândia, Basutolândia (Lesoto), Guiné Portuguesa, etc. e, é claro, na África do Sul.”

Fonte: https://face2faceafrica.com/article/read-kwame-nkrumahs-iconic-1963-speech-on-african-unity


 


quarta-feira, 8 de julho de 2020

SEKOU TOURÉ: O LÍDER POLÍTICO CONSIDERADO COMO REPRESENTANTE DE UMA CULTURA, (1959).

BAIXAR NO LIVRO EM PDF: (AQUI)

PALAVRAS DE INDEPENDÊNCIA DA ÁFRICA: AZIKIWE, TOURÉ, NYERERE E MACHEL https://drive.google.com/file/d/1HwCv8MfNHPKrZbPV9Ag1IIjRhXMnrcGU/view?usp=sharing


Em 2 de outubro de 1958, Sekou Touré, proclamou a independência da Guiné-Conakry e se tornou seu primeiro presidente. Um ano depois, ele fez um discurso em Conakry, a capital na qual destacou o papel dos líderes políticos na reflexão e desenvolvimento da cultura de suas nações.


Como a cultura não é uma entidade ou um fenômeno separado ou separável de um povo, os líderes políticos que têm, de maneira livre e democrática, adquirido a confiança dessas pessoas com o objetivo de direcioná-las ao longo do caminho escolhido, são ao mesmo tempo a expressão das aspirações de seu povo e os representantes ou defensores dos valores culturais do povo.

A cultura de um povo é necessariamente determinada por suas condições materiais e morais. As pessoas e o seu ambiente constituem um todo.

Todo povo livre e soberano se encontra em condições mais favoráveis à expressão de seus valores culturais do que um povo colonizado, privado de toda liberdade, cuja cultura sustenta as consequências nefastas de seu estado de sujeição. Quer se trate de um povo livre ou de um povo colonizado, o líder político que realmente conserva a expressão autêntica de seu povo é aquele cujo pensamento, senso de existência, conduta social e objetos de ação estão em perfeita harmonia com as características do seu povo.

Se ele tende, em espírito conservador, a garantir a manutenção de um antigo equilíbrio econômico, social e moral, ou de maneira revolucionária substituir as velhas condições por novas condições mais favoráveis ao povo, o líder político é, pelo próprio fato de sua comunhão de ideias e ação com seu povo, o representante de uma cultura. Essa cultura pode ser reacionária ou progressista, de acordo com a natureza dos objetivos estabelecidos para a ação do movimento político com o qual o povo se comprometeu.

Esse homem, antes de se tornar o líder de um grupo, de um povo ou de um grupo de povos, inevitavelmente fez uma escolha entre o passado e o futuro. Dessa maneira, ele representará e defenderá os valores existentes, ou sustentará e dará impulso ao desenvolvimento e enriquecimento constante de todos os valores de seu povo, incluindo os valores culturais, que, por seu conteúdo e forma, expressarão a realidade das condições de existência das pessoas ou a necessidade que elas sentem de uma transformação.

Em consequência, qualquer que seja o caráter fundamental de uma cultura, reacionária ou progressista, o líder político que é escolhido livremente por um povo, mantém um vínculo natural entre ação e cultura própria do seu povo, pois, de qualquer forma, ele não poderia agir efetivamente sobre as pessoas se deixasse de obedecer às regras e valores que determinam seu comportamento e influenciam seu pensamento.

Por que os grandes pensadores do capitalismo não são aceitos pelos povos que escolheram outras formas de evolução? Os líderes das democracias populares não podiam representar uma cultura capitalista em essência pelo bom motivo de seus povos terem escolhido o sistema socialista.

A cultura árabe é igualmente diferente da cultura latina devido ao fato de que os povos árabes e latinos obedecem a pensamentos e regras de vida diferentes.

Além do estado material e técnico em que um povo se encontra, seu estado mental, filosófico e moral dá à sua cultura uma forma de expressão e um significado que lhes são próprios, bastante independente na medida em que eles têm uma influência decisiva no contexto cultural geral.

Os imperialistas usam valores culturais, científicos, técnicos, econômicos, literários e morais para manter seu regime de exploração e opressão. Os povos oprimidos usam igualmente valores culturais de natureza contrária aos primeiros, a fim de ter condições melhores de luta contra o imperialismo e se livrar do sistema colonial. Se o conhecimento científico, as técnicas modernas e a elevação do pensamento ao nível de princípios humanos superiores para o aperfeiçoamento da vida social, são necessários para o enriquecimento de uma cultura, elas ainda assim mantêm a capacidade de serem usadas para fins contraditórios.

É nesse ponto que o valor cultural de um povo deve ser identificado como um valor contributivo que se pode representar no desenvolvimento da civilização universal, no estabelecimento entre seres humanos de relações concretas de igualdade, solidariedade, unidade e fraternidade.

Assim, os verdadeiros líderes políticos da África, cujos pensamentos e atitudes tendem para a libertação nacional de seus povos, só podem ser homens fundamentalmente comprometidos contra todas as formas e forças de descaracterização da cultura africana. Representam, pela natureza anticolonialista e pelo conteúdo nacional de sua luta, os valores culturais de sua sociedade, mobilizados contra a colonização.

É como representante desses valores culturais que eles lideram a luta pela descolonização de todas as estruturas de seu país.

Mas a descolonização não consiste meramente em se libertar da presença dos colonizadores: deve ser consolidada pela total libertação do espírito de "colonizado", ou seja, de todas as más consequências, morais, intelectuais e culturais, do sistema colonial.

A colonização, para usufruir de uma certa segurança, sempre precisa criar e manter um clima psicológico favorável à sua justificativa: daí a negação dos valores culturais, morais e intelectuais dos povos dominados. É por isso que a luta pela libertação nacional só é completa quando, uma vez desvinculado do aparato colonial, o país toma consciência dos valores negativos deliberadamente injetados nas vidas, pensamentos e tradições... a fim de extirpá-los nas condições de sua evolução e florescimento. Essa ciência de descaracterizar o povo colonizado às vezes é tão sutil em seus métodos que consegue progressivamente falsificar nosso comportamento psíquico natural e desvalorizar nossas próprias virtudes e qualidades originais, com vistas à nossa assimilação. Não é por acaso que o colonialismo francês alcançou seu auge no período da famosa e agora destruída teoria da "mentalidade primitiva" e "mentalidade pré-lógica" de Lévy-Bruhl. Ao modificar certas formas de suas manifestações, embora aparentemente tente se adaptar à evolução inevitável dos povos oprimidos, a colonização nunca gerou, sob os aspectos mais diversos e sutis, nada além de um complexo de superioridade moral, intelectual e cultural em relação aos povos colonizados. E essa política de despersonalização é ainda mais bem-sucedida, pois a natureza do grau de evolução do colonizado e do colonizador é diferente. É ainda mais profundamente enraizado onde a dominação é duradoura.

Nas formas mais variadas, o "complexo colonizado" prejudica a evolução e se imprime em nossos próprios reflexos. Assim, o uso de um boné e óculos de sol, considerado um sinal da civilização ocidental, testemunha essa despersonalização que contraria a corrente de nossa evolução.

No entanto, é errado pensar que um povo, uma raça, uma cultura possuam por si próprios todos os valores morais, espirituais, sociais ou intelectuais: acreditar que a verdade não é necessariamente encontrada em outro lugar do que no próprio contexto nacional, racial ou cultural de alguém é uma utopia.

Já dissemos que descobertas humanas, aquisições intelectuais, a expansão do conhecimento não pertencem exclusivamente a ninguém. Elas são o resultado de uma soma de descobertas universais, aquisições e expansões nas quais ninguém tem o direito de reivindicar um monopólio.

Os imigrantes nos Estados Unidos não deixaram para trás nas fronteiras de seus respectivos países tudo o que adquiriram no campo intelectual. Eles não tiveram que reinventar navios, ferramentas de ferro ou pólvora. Eles os usaram para suas próprias necessidades antes que certos poderes coloniais pensassem em reivindicar sua descoberta e os direitos de propriedade sobre eles.

Não é porque ele simboliza a presença colonial que o gendarme (policial) francês na guarnição em Dakar ou Argel é o "proprietário" do processo de liberação do átomo. E, no entanto, é dessa forma e por abordagens intelectuais semelhantes que o colonialismo estabeleceu o princípio de sua superioridade.

Nossos livros escolares nas escolas coloniais nos ensinam sobre as guerras dos gauleses, a vida de Joana D'Arc ou Napoleão, a lista de departamentos franceses, os poemas de Lamartine ou as peças de Moliere, como se a África nunca tivesse tido história, passado, existência geográfica, vida cultural. Nossos alunos só ganhavam reconhecimento se tivessem de acordo com essa aptidão política de assimilação cultural integral.

O colonialismo, através de suas diversas manifestações, gabando-se de ter ensinado nossa elite em suas escolas de ciência, técnica, mecânica e eletricidade, consegue influenciar vários de nossos intelectuais a tal ponto que acabam encontrando nisso a justificativa para o domínio colonial. Alguns chegam a acreditar que, para adquirir o verdadeiro conhecimento universal da ciência, eles devem necessariamente desconsiderar os valores morais, intelectuais e culturais de seu próprio país, a fim de se sujeitarem e assimilarem uma cultura que muitas vezes lhes é estranha em milhares de aspectos. E, no entanto, não é o conhecimento que leva à prática da cirurgia ensinada da mesma maneira em Londres, Praga, Belgrado e Bordéus? O procedimento para calcular o volume de um corpo não é idêntico em Nova York, Budapeste e Berlim? O princípio de Arquimedes não é o mesmo na China e na Holanda? Não existe química russa ou japonesa, apenas química pura e simples.

A ciência que resulta de todo conhecimento universal não tem nacionalidade. Os conflitos ridículos que se enfurecem com a origem desta ou daquela descoberta não nos interessam, porque nada acrescentam ao valor da descoberta.

Mas, por mais que possa dissimular, o colonialismo trai suas intenções na organização e natureza da educação que afirma dispensar em nome de algum humanismo ou outro, não sei o quê. A verdade é que, de início, tinha de satisfazer as suas necessidades de papeis subalternos, balconistas, guarda-livros, datilógrafos, mensageiros, etc.

O caráter elementar da educação dispensada é testemunha suficientemente eloquente do objeto em vista, o poder colonial tomou muito cuidado, por exemplo, para não criar faculdades administrativas reais para que jovens africanos pudessem ser formados executivos genuínos, ou para ensinar a história real da África e assim por diante.

O que teria acontecido no dia seguinte à independência da Guiné, se não tivéssemos criado, durante o período da Lei Geral, nosso próprio colégio administrativo? A vida administrativa da República da Guiné nos mostraria, ao nível de governo, uma infinidade de problemas que só poderíamos ter resolvido de maneira empírica.

Essa determinação de manter as populações em constante estado de inferioridade marca tanto os programas quanto a natureza da educação colonial. Desejava-se que o professor africano fosse e continuasse sendo um professor de qualidade inferior, a fim de manter a qualidade do ensino na África em um nível inferior. Por outro lado, um obstáculo foi colocado no caminho das autoridades africanas atingirem um posto mais alto, insistindo na equivalência de diplomas. Esse desvio foi tão bem administrado que alguns de nossos colegas sindicais, embora anticolonialistas, lutaram furiosamente contra esses problemas de valor equivalente a pergaminhos, em vez de atacar diretamente as razões fundamentais dessa política fraudulenta.

Professores específicos, médicos específicos! O que o sistema colonial precisava era de homens para produzir, homens para criar, trabalhadores, lenhadores no Médio Congo ou na Costa do Marfim, camponeses no Sudão ou Daomé, e assim por diante. Os colonos da África Ocidental Francesa e da África Equatorial Francesa, as poderosas empresas coloniais do Congo Belga e da Rodésia não se instalariam na África se não fosse a riqueza da África em seu solo e na mão de obra contida, considerada como instrumento para explorar essa riqueza. E foi para resistir aos grandes flagelos endêmicos que ameaçavam o equilíbrio quantitativo da população, reduzindo a mão de obra que o poder colonial criou o corpo de médicos africanos, com a determinação de transformá-los em um corpo subordinado, de 'médicos trabalhadores' [médicos de suporte].

Assim, no nível do conhecimento puro, no nível do conhecimento universal, a educação oferecida na África era deliberadamente inferior e limitada às disciplinas que permitiriam uma melhor exploração da população. Além disso, o ensino primário e secundário era constantemente direcionado à descaracterização e dependência cultural.

Devemos denunciar o falso sentimentalismo que consiste em acreditar em nós mesmos em dívida com a contribuição de uma cultura imposta em detrimento da nossa. O problema deve ser tratado objetivamente. Quantos de nossos jovens estudantes, mesmo sem perceber, julgam a cultura africana avaliando-a de acordo com a hierarquia de valores estabelecida neste campo pela cultura do poder colonial?

O valor de uma cultura só pode ser avaliado em relação à sua influência no desenvolvimento da conduta social. Cultura é a maneira pela qual uma determinada sociedade dirige e utiliza seus meios de pensamento.

Marx e Gandhi não contribuíram menos para o progresso da humanidade do que Victor Hugo ou Pasteur.

Mas enquanto aprendíamos a apreciar essa cultura e a conhecer os nomes de seus intérpretes mais eminentes, estávamos perdendo gradualmente as noções tradicionais de nossa própria cultura e a memória daqueles que a lançaram sobre ela. Quantos de nossos jovens estudantes que podem citar Bossuet, ignoram a vida de El Hadj Omar? Quantos intelectuais africanos inconscientemente se privaram da riqueza de nossa cultura, de modo a assimilar os conceitos filosóficos de um Descartes ou um Bergson?

Enquanto argumentarmos exclusivamente à luz dessa aquisição externa, enquanto continuarmos a julgar e a fazer nossas determinações de acordo com os valores da cultura colonial, não seremos descolonizados e não conseguiremos transmitir aos nossos pensamentos e ações um conteúdo nacional, ou seja, um avanço a serviço de nossa sociedade. Tão verdadeira é que toda cultura digna desse nome deve ser capaz de dar e receber; só podemos considerar as culturas estrangeiras como uma contribuição necessária para o enriquecimento de nossa própria cultura.

O ambiente determina o indivíduo, é por isso que o camponês em nossas aldeias tem características mais autenticamente africanas do que o advogado ou médico nas grandes cidades. De fato, o primeiro, que preserva mais ou menos intacta sua personalidade e a natureza de sua cultura, é mais sensível às necessidades reais da África.

Não há acusação contra o intelectualismo, mas é importante demonstrar a despersonalização do intelectual africano, uma despersonalização pela qual ninguém pode responsabilizá-lo, porque é o preço que o sistema colonial exige para lhe ensinar o conhecimento universal que lhe permite ser engenheiro, médico, arquiteto ou contador. É por isso que a descolonização no nível individual deve operar mais profundamente sobre aqueles que foram treinados pelo sistema colonial.

É em relação a essa descolonização que o intelectual africano fornecerá ajuda eficaz e inestimável à África. Quanto mais ele perceber a necessidade de se libertar intelectualmente do complexo de colonizado, mais descobrirá nossas virtudes originais e mais servirá à causa africana.

Nossos esforços incessantes serão direcionados para encontrar nossas próprias formas de desenvolvimento, se desejamos que nossa emancipação e nossa evolução ocorram sem que nossa personalidade seja alterada. Toda vez que adotarmos uma solução que seja autenticamente africana em sua natureza e concepção, resolveremos nossos problemas facilmente, porque todos os que participam não ficarão desorientados ou surpresos com o que têm que alcançar, e perceberão sem dificuldade a maneira pela qual devem trabalhar, agir e pensar. Nossas qualidades específicas serão usadas ao máximo e, a longo prazo, aceleraremos nossa evolução histórica.

Quantos rapazes e moças perderam o gosto pelas nossas danças tradicionais e o valor cultural de nossas canções populares. Todos se tornaram entusiastas do tango ou da valsa, ou de algum cantor de encanto ou realismo.

Essa inconsciência de nossos valores característicos inevitavelmente leva ao nosso isolamento de nossa própria base social, cujas menores qualidades humanas nos escapam. Dessa maneira, terminamos desconsiderando o significado real das coisas que nos cercam e nosso próprio significado.

Em contraste, os camponeses e artesãos africanos não estão de forma alguma envolvidos pelo sistema colonial, cuja cultura, hábitos e valores eles não conhecem.

É necessário enfatizar que, apesar de sua boa vontade, sua disciplina e sua fidelidade ao ideal de liberdade e democracia, apesar de sua fé no destino de seu país, os colonizados que foram educados pelo colonizador têm seu pensamento mais manchado pela marca colonial do que as massas rurais que evoluíram em seu contexto original.

A África é essencialmente um país de governo comunitário. A vida coletiva e a solidariedade social dão aos seus hábitos um fundo de humanismo que muitos povos podem invejar. É também por causa dessas qualidades humanas que um ser humano na África não pode conceber a organização de sua vida fora da família, da aldeia ou da sociedade de clãs. A voz dos povos africanos não tem características, nem nome, nem toque individual. Mas nos círculos que foram contaminados pelo espírito dos colonizadores, quem não observou o progresso do egoísmo pessoal?

Quem nunca ouviu a defesa da teoria da arte pelo bem da arte, a teoria da poesia pela causa da poesia, a teoria de todo homem por si mesmo?

Considerando que nossos artistas anônimos são a maravilha do mundo, e em todos os lugares nos pedem nossas danças, nossas músicas, nossas canções, nossas estatuetas, para que seu profundo significado seja mais conhecido, alguns de nossos jovens intelectuais pensam que basta conhecer Prévert, Rimbaud, Picasso ou Renoir para ser cultos e capazes de levar nossa cultura, nossa arte e nossa personalidade para um plano superior. Essas pessoas apreciam apenas as aparências das coisas, elas julgam apenas por meio de seus complexos e mentalidade de "colonizadas". Para elas, nossas canções populares são valiosas apenas na medida em que se encaixam harmoniosamente nos modos ocidentais estranhos ao seu significado social.

Nossos pintores! Eles gostariam que eles fossem mais clássicos; nossas máscaras e estatuetas! Puramente estético; sem perceber que a arte africana é essencialmente utilitária e social.

Mecanizados e reduzidos a uma certa forma restritiva de pensamento, habituados a julgar à luz de valores alheios, educados para apreciar de acordo com o espírito, pensamento, condições e vontade do sistema colonial, ficam atordoados toda vez que denunciamos o caráter nefasto de seus comportamentos. Mas se eles se interrogarem, à luz, não de seu conhecimento teórico do mundo, mas alcançando a autoconsciência, sobre os verdadeiros valores de seu povo e sua pátria, se perguntassem se essa conduta contribui para toda a África que tem seus objetivos de libertação e progresso, de paz e dignidade, eles se julgariam e apreciariam nossos problemas.

Eles não percebem que a menor das nossas manifestações artísticas originais representa uma participação ativa na vida de nosso povo. Eles se separam da cultura do povo, da arte da vida real.

Em todas as coisas há forma e substância, e o que é de principal importância na arte africana é seu conteúdo efetivo e vivo, o pensamento profundo que a anima e a torna útil para a sociedade.

Intelectuais ou artistas, pensadores ou pesquisadores, suas capacidades não têm valores, a menos que realmente coincida com a vida das pessoas, a menos que estejam integrados de maneira fundamental à ação, pensamento e aspirações das populações.

Se eles se isolarem de seu próprio ambiente por sua mentalidade especifica de colonizados, eles não terão influência, não terão valor para a ação revolucionária que as populações africanas empreenderam para se libertar do colonialismo, serão párias e estranhos em seu próprio país.

Essa descolonização intelectual, essa descolonização de pensamentos e conceitos pode parecer infinitamente difícil. Com efeito, existe uma soma de hábitos adquiridos, de comportamento descontrolado, um modo de viver, uma maneira de pensar, cuja combinação constitui uma espécie de segunda natureza que certamente parece ter destruído a personalidade original dos colonizados.

Não são abordagens intelectuais, nem mesmo um trabalho sustentado e paciente de readaptar os anseios que alcançará o objetivo. Só será suficiente se houver reintegração no contexto social, um retorno à África pela prática cotidiana da vida africana, a fim de se readaptar aos seus valores básicos, suas atividades apropriadas, sua mentalidade particular.

O funcionário, que vive constantemente entre outros funcionários, não abandonará seus maus hábitos coloniais, porque eles representam uma prática diária para si e para os círculos em que ele vive. Ele não conseguirá se definir em relação à revolução africana, continuará a se definir em relação a si mesmo como um funcionário que vive em círculos administrativos. Ele terá reduzido seus objetivos humanos apenas a uma carreira administrativa.

O artista que está orgulhosamente convencido de que basta que ele seja conhecido para expressar a personalidade africana em suas obras, continuará sendo uma inteligência colonizada, uma inteligência escravizada pelo pensamento colonial.

Tomemos o exemplo dos balés de nosso camarada Keita Fodeiba, que há vários anos viajam pelo mundo para revelar, por meio desse modo tradicional de expressão, a dança Africana, os valores culturais, morais e intelectuais da nossa sociedade. E, no entanto, não foi na Ópera de Paris ou na Ópera de Viena que esses artistas foram iniciados. Sua iniciação coreográfica apenas parte da educação autenticamente africana e da consciência nacional de nossos valores artísticos. A trupe é uma tropa anônima na qual não há primeira ou segunda estrela. Os cantores conhecem apenas as canções populares da África quando as aprenderam em sua vila longínqua. O valor da trupe de nosso camarada Keita Fodeiba é sua autenticidade, e terá feito mais para revelar os valores sociais e coreográficos da África do que jamais será feito por todas as obras de inspiração colonial que foram escritas sobre esse assunto. E isso porque nenhum autor foi capaz de interpretar e entender o significado interno da dança, que é, na África, parte da vida social e intelectual do povo.

Não basta escrever um hino revolucionário para participar da revolução africana; é necessário agir na revolução com o povo, e assim, os hinos surgem automaticamente.

Para exercer uma ação autêntica, é necessário ser uma parte viva da África e do seu pensamento, um elemento dessa energia popular que está totalmente mobilizada para a libertação, para o progresso e para a felicidade da África. Não há lugar neste combate, nem para o artista ou para o intelectual, que não esteja ele próprio comprometido e totalmente mobilizado com o povo na grande luta da África e da humanidade sofredora.

O Povo da África, ainda ontem marcado pela inadequação dos outros, ainda excluído dos empreendimentos universais, rejeitado de um mundo que o tornara inferior pela prática de dominação, esse Povo, privado de tudo, apátrida em seu próprio país, sentado nu e empobrecido com sua própria riqueza, de repente está ressurgindo no mundo, para reivindicar a plenitude de seus direitos humanos e sua parte completa na vida universal.

Essa atitude não deixa de prejudicar a imagem caricaturada que a conquista colonial projetara aqui e ali, do Preto condenado, segundo eles, à incapacidade congênita. Não é o menor dos erros de certas civilizações calarem-se em considerações egocêntricas ao julgar o que lhes é estranho e não poderia satisfazer seus critérios especiais ou sua tradição histórica, nem corresponder à sua hierarquia de valores convencionais.

É uma responsabilidade muito pesada, assumida pelas civilizações de conquista, que elas orientaram suas forças para a destruição das sociedades humanas cujos valores eles não tinham nem capacidade nem poder de apreciar objetivamente. Contemplando as ruínas dessa destruição, o mundo do pensamento e o mundo da pesquisa estão hoje em comunhão no mesmo esforço ansioso para tentar arrebatar das civilizações destruídas o segredo dos valores desconhecidos que lhes permitiram se desenvolver segundo um processo intelectual, cujo conhecimento universal se perde para sempre.

O crime de Fernando Cortez em torturar o último imperador dos Astecas parece menos o delito de um homem do que um erro irremediável por parte das civilizações de conquista.

Ao julgar à luz de seu próprio ambiente adequado, ao determinar de acordo com os valores de sua própria cultura, as civilizações de conquista, longe de incentivar o desenvolvimento dos valores humanos, reduziram suas possibilidades de expressão e, com um objetivo definido, as sujeitaram parcialmente à exploração feroz e à opressão generalizada.

Mas o reino da força e da posse fraudulenta está agora fadado ao desastre, pois não existe mais influência externa, pressão estrangeira que possa curvar um povo às leis de desapropriação e dominação. No lento progresso do universo humano, que é sancionado proporcionalmente ao desenvolvimento da consciência universal, a força bruta e a influência ilegítima estão se tornando cada vez mais à margem dos valores positivos do homem.

A África que ainda ontem ainda era o brinquedo e a tomada de apetites sem limites, testemunha muda da lenta degradação das mais nobres mentalidades sociais, hoje está totalmente comprometida com o caminho de sua liberdade, sua dignidade e sua completa restauração. Ontem dominada, mas não conquistada, a África está determinada a entregar sua mensagem especial ao mundo e a contribuir para o universo humano como fruto de suas experiências, de todos os seus recursos intelectuais e dos ensinamentos de sua própria cultura.

A personalidade moral da África, há muito negada por meio das mais grosseiras falsificações históricas, quase precede a crescente manifestação da personalidade africana, que as forças de conquista e dominação não podem mais reduzir impunemente.

O negro, onde quer que esteja, qualquer que seja sua região natal, finalmente se libertou do peso de uma inferioridade factícia infligida a ele pela dominação, a partir do momento em que ele reapareceu em toda a sua autenticidade, legitimamente orgulhoso da capacidade de recuperar o controle sobre seu destino e de toda a responsabilidade por sua história.

Na verdade, não poderia haver confusão entre a aparente submissão dos povos africanos e sua profunda determinação de escapar da despersonalização. "Sujeitar-se para salvar a si mesmo", "aceitar para suportar", essa tem sido a filosofia dura do negro, arrancado de suas origens ou privado de seu livre arbítrio.

Nenhuma maldição pesará tanto sobre um povo como aquela nascida de uma coalizão de raça e interesses para alcançar no mesmo empreendimento, escravização ou destruição, exploração ou ruína.

Mas o domínio do homem, crescendo e se estendendo além dos limites do mundo, não podia tolerar aquelas propriedades fechadas que as nações feudais se apropriavam a si mesmas sob o signo da força: o homem de hoje requer toda a terra, uma total solidariedade e uma participação plena em suas obras e empreendimentos. Em parte por necessidade e em parte por determinação consciente, o homem continua a eliminar as heresias individualistas e racistas das quais o mundo negro foi a última vítima trágica.

Os portões do futuro não se abrirão diante de alguns privilegiados, nem de um povo eleito entre os povos, mas cederão ao impulso combinado de povos e raças quando os esforços de todos os povos aliados pela necessidade de uma fraternidade universal forem unidos e se completarem.

Por mais próximo que seja, e por mais poderosas esperanças humanas por um futuro frutífero e ilimitado, a reconciliação universal não pode se tornar efetiva até que os povos excluídos alcancem sua total independência, exerçam toda a sua dignidade e garantam seu pleno florescimento. Para atender a seus requisitos e não abdicar de nenhuma de suas responsabilidades humanas, a África está recorrendo incansavelmente as suas próprias fontes, a fim de aperfeiçoar sua autenticidade e enriquecer a seiva nutritiva a partir do qual surgiu ao longo dos obscuros milênios da história.

Harmonizar os recursos de seu pensamento com as leis impiedosas de um mundo liderado e dirigido pelas necessidades de um desenvolvimento constante, recorrendo às disciplinas duras do conhecimento concreto, tanto quanto às suas próprias riquezas morais e espirituais, o negro está empenhado em manter intactos os valores e as perspectivas de uma cultura original que sobreviveu a todas as vicissitudes extremas que marcaram seu destino. É tão supérfluo indagar o que pode ou não ter sido bom quanto tentar determinar oportunidades perdidas. Somente o erro, analisado objetivamente de acordo com suas causas e efeitos, traz à mente um enriquecimento constante e proporciona ao homem a conquista positiva da experimentação.

A cultura negra, preservada de qualquer alteração profunda, flui para a vida universal, não como elemento antagônico, mas com o desejo ansioso de ser um fator de equilíbrio, um poder para a paz, uma força de solidariedade a favor de uma nova civilização que ultrapasse as grandes esperanças da humanidade e se forme em contato com todas as correntes de pensamento.

O futuro não pode ser concebido como uma reiteração do passado, um campo fechado reservado exclusivamente para as sociedades humanas que são secretamente iniciadas ou arbitrariamente privilegiadas.

O futuro será a soma de culturas e civilizações que não medem sua contribuição especial ou conduzem uma barganha em relação a seus valores singulares. Para alcançar objetivos sucessivos, não é demais para cada um unir seus esforços aos de outros, entregar ao mundo seus recursos intelectuais e seu conhecimento científico e técnico, pois nenhum povo, nenhuma nação pode se mover e crescer, exceto com e pelos outros. Qualquer doutrina de isolamento cultural e celularização, quer seus motivos sejam uma superioridade orgulhosa ou um egoísmo inaceitável do grupo, oculta um erro fatal em consequência do qual a partícula isolada sucumbirá.

Sem querer responder ao desafio antinatural do ideal racista, que insolentemente afirma aproveitar-se, sozinho apenas, da seiva e os frutos do mundo, o negro está convencido de que sua mera presença o habilita a uma participação plena e completa nas obras humanas, não como um elemento desnaturado ou ultrapassado, mas no caráter de um novo poder, de uma força intelectual não explorada, cujas potencialidades são relevantes para os empreendimentos universais de progresso, justiça e solidariedade humana.

No domínio do pensamento, o homem pode reivindicar ser o cérebro do mundo, mas no plano da vida concreta, onde toda intervenção afeta o ser físico e espiritual, o mundo é sempre o cérebro do homem, pois é nesse nível que se encontra a totalidade dos poderes e unidades de pensamento, as forças dinâmicas de desenvolvimento e perfeição, é aí que a fusão de energias opera e que, a longo prazo, a soma dos valores intelectuais se concretizam. Mas quem pode alegar excluir um grupo particular de pensamento, uma forma particular de pensamento ou uma família humana em particular sem, por esse mesmo fato, se colocar além dos limites da vida universal?

O direito à existência se estende à presença, concepção, expressão e ação. Qualquer anulação deste direito fundamental deve ser estabelecida como um débito na conta da humanidade.

É, de resto, uma missão difícil que o negro se propôs a fazer, escolheu ser ao mesmo tempo o instrumento intelectual da reabilitação de uma raça, e o mensageiro de uma cultura despojada de seu direito à liberdade de expressão, e cujo conteúdo profundo e significado real foram falsificados pelas múltiplas interpretações que o mundo exterior lhe deu.

Mas esta ação empreendida pelos mensageiros de nossa cultura não pode ser isolada do movimento geral pela reconquista dos direitos de expressão e meios de desenvolvimento do povo da África, totalmente mobilizados na luta por sua dignidade e liberdade, ao lado da igualdade entre povos.

O processo de participação do negro em realizações universais deriva, em primeiro lugar, da personalidade africana, que não pode ser validamente reconstituída pelo intermediário de vontades ou forças externas à África, ou fora dos fatores de independência e unidade sobre os quais repousa o destino do mundo negro. Os compromissos culturais que a dominação estabeleceu por meio de contato e restrição, impõem uma reconversão completa ao homem da África, de modo que sua personalidade autêntica, todas as possibilidades de seus valores singulares e os meios de empregar seus recursos humanos podem reaparecer.

Na independência de sua jovem soberania, é assim que o povo da Guiné se une unanimemente pela libertação total e unidade efetiva do povo africano, a fim de acelerar sua marcha rumo ao progresso técnico, econômico e cultural em uma sociedade em perfeito equilíbrio social e em um mundo de civilização humana real.

 

Fonte: BlackPast, B. (2009, August 10) (1959) Sekou Touré, “The Political Leader Considered as the Representative of a Culture”. Retrieved from https://www.blackpast.org/global-african-history/1959-sekou-toure-political-leader-considered-representative-culture/

-       J. Ayo Langley, Ideologies of Liberation in Black Africa, 1856-1970 (London: Rex Collings, 1979).