Migrar e Estar Ausente: O Abismo das Almas Vendidas e o Pessimismo de Luigi Damiani
“Migrar temporariamente é mais do ir e vir – é viver, em espaços geográficos diferentes, temporalidades dilaceradas pelas contradições sociais. Ser migrante temporário é viver tais contradições como duplicidade; é ser duas pessoas ao mesmo tempo, cada uma constituída por especificas relações sociais, historicamente definidas; é viver como presente e sonhar como ausente. E ser e não ser ao mesmo tempo; sair quando está chegando, voltar quando está indo. E necessitar quando está saciado. E estar em dois lugares ao mesmo tempo, e não estar em nenhum. E, até mesmo, partir sempre e não chegar nunca.” (MARTINS:1986, p.45)
Ao cair na cilada de
tentar definir as migrações, José Martins de Souza, em “O Voo das Andorinhas”,
aborda o conceito de ausência que pode se fazer tranquilamente um paralelo com
os artigos da revista travessia, Literatura i/e Migração de 1999, que já na sua
apresentação, feita por Carlos Eduardo Schmidt Capela, demonstra a dificuldade
de definir imigrantes e emigrantes, além de perpassar pela sensação de ausência
do migrante, que traz consigo características de nacionalidade.
Apesar de Martins em
seu texto não focar especificamente nas migrações estrangeiras, seu conceito de
ausência cabe a esse tipo de migração que está sendo desenvolvida nos artigos
da revista, pois, sobretudo, o assunto tratado não deixa de ser migrações
temporárias, já que o tempo em questão é considerar-se ausente, ausência que é
medida pela não ocorrência da dessocialização do local de partida e da
ressocialização no lugar chegada, o migrante se vê num sentimento de estar
“fora de casa”, “fora de seu lugar”. Essa situação não pode ser entendida como
um processo de progresso civilizatório, todavia, como um processo violento de
expulsão das pessoas de seus lugares de origem através da acumulação primitiva
e da imposição da mobilidade do trabalho. Em tempos atuais, a crise que gera
migração é global e ocorre simultaneamente em diversos espaços, pois os
trabalhadores não conseguem mais vender sua força de trabalho.
Mesmo quando se fala de
uma “migração permanente”, ainda pode se ter incutido o imaginário de ausência,
contudo a posição de migrante permanente não foi o caso de um grupo de
migrantes, em sua maioria italianos, que tinham compromisso com uma ação cultural
libertária junto a classe trabalhadora do Brasil nos finais do século XIX e
início do século XX. Sendo assim, acabaram expulsos e quando não, desencantados
com os obstáculos tidos no Brasil que assegurava apenas uma exploração
crescente dos imigrantes italianos e condições insalubres de trabalho nas mãos
dos fazendeiros e industriais em São Paulo. Umas das figuras mais emblemáticas foi
Luigi Damiani, de acordo com o artigo de Antônio Artoni Prado em “Sobre as
imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani”, publicado na revista
travessia, edição de número 35. Em um trecho sobre Damiani é apontado que o seu
“(...)inconformismo e a luta contra a dura realidade do Brasil, mais do que o
desengano, trouxe-lhe a prisão e em seguida o banimento. Os depoimentos que
escreveu entre 1920-21 para o jornal Volonta, de Ancona – depois portanto de
sua expulsão, que se deu em 1919 – servem como exemplo oportuno do grau de
veemência com que repudiou as condições desfavoráveis ao avanço da emancipação
social no Brasil.” Damiani em seus escritos apresentava uma posição de ruptura
com a ordem estabelecida e assim sua obra passou a aguçar um certo pessimismo
intelectual diante das possibilidades de emancipação da classe trabalhadora no
Brasil, que não sinalizava uma quebra da ordem vigente. Sobre os ideais
anarquistas, confessou frustrado, que nem mesmo em sonho poderia ser atingido,
pois, “comer e ter direitos mínimos, se isso fosse possível, seria aqui uma
façanha notável.”
Por vezes para muitos,
ancorados em premissas do senso comum, o ato de migrar poderia estar atrelado a
algo inerente do ser humano, na sua condição ontológica, e não parte de uma
crise ou mesmo imposição feita com maior veemência a partir da consolidação da
sociedade moderna, onde se torna obrigatória a mobilização geral em busca de
trabalho. Cabe, portanto, abarcar alguns aspectos das migrações tendo como
referência a crise do sistema global da economia de mercado.
Tal crise é estrutural
no mundo contemporâneo que gera desemprego em massa e pobreza, e exige-se,
então, de quem queira oferecer sua força de trabalho ao mercado, a constante
mobilidade do trabalho em um cenário que já não aponta saída de trabalho para
todos. Em suma, além do trabalhador moderno ser obrigado, numa espécie de
coerção silenciosa, a se submeter ás relações econômicas de mercadoria, não se
tem garantia de que os trabalhadores possam de fato exercer tal liberdade de
vender sua força de trabalho.
Os países do chamado Terceiro Mundo em geral passam por um processo de crescimento da urbanização mas contando com uma constante desindustrialização, os países centrais aparecem assim como a grande saída, o oásis para os trabalhadores, que tem como maior anseio, dentro dessas condições, encontrar um lugar que possa comprar sua força de trabalho.
“Eu quero
trabalhar o dia inteiro, nem que seja pra ganhar um tostão
Eu já não posso
mais e voltar atrás eu não quero não”
(Poeira do Norte, Gordurinha)
O ponto de partida
dessa imposição do trabalho pode ser estabelecido com o advento da sociedade
moderna e em sua transição do feudalismo para o capitalismo assentado nos
valores sociais e culturais do Iluminismo e da Revolução Burguesa. Tais
aspectos caracterizam a base para uma primeira humilhação da classe
trabalhadora que teve sua humanidade transformada em material de mercadoria,
que fora coisificada para gerar valorização. Se levarmos em conta que toda
mercadoria se aufere no trabalho abstrato despendido em sua produção,
considerando como simples gasto de energia humana, física e intelectual, e que
o trabalhador se encontra alienado do controle e do produto do trabalho, são as
coisas, então, que usam os trabalhadores através dos meios de produção para
agregar acumulo e aumentar o valor. O desdobramento dessa engrenagem posta de
maneira simplificada aqui, pode ser caracterizada como uma humilhação primária.
Dentro desses
parâmetros, os fluxos migratórios contemporâneos e a maioria das lutas travadas
pelos trabalhadores, seja em movimentos sociais ou políticos, são pautados
tendo como base os princípios que fundaram a própria humilhação primária, ou
seja, se almeja a consolidação de uma mínima dignidade humana para escapar de
uma humilhação secundária que empurra o trabalhador despossuído para as margens
da sociedade e da vida humana.
O cenário é caótico, a
competitividade é esmagadora, a luz no fim do túnel praticamente não existe, o
que resta é ter a esperança de manter a condição mínima de sobrevivência e
nisso vale tudo pelo capital. Então migrar para os grandes centros, (que na
verdade são minoria no mundo), que provocaram a pauperização da maioria, é uma
saída plausível nesse contexto. Mas mais do que nunca, (e a tendência é aumentar o
abismo para os despossuídos), é necessário romper com esses parâmetros da
sociedade moderna ocidental para pensar e construir um novo mundo. Tal embate
não se tem como evitar apenas adiá-lo e assim assistir o capitalismo se reinventar
de período em período mantendo sua hegemonia no mundo.
O capitalismo se
reinventou através do neoliberalismo desde pelo menos os anos 1970, e o que
fazia parte de uma agenda implícita de desmonte de direitos e políticas
públicas timidamente conquistadas, já após a queda da União Soviética marcando o
fim da Guerra Fria, se mostra tanto uma agenda implícita como explicita, se
tornando assim uma armadilha para os trabalhadores organizados em diversos
movimentos, no sentido de pretender almejar simplesmente a sobrevivência e a
dignidade humana sem qualquer compromisso com uma agenda de ruptura perante o
sistema capitalista imposto. Se busca a máxima de igualdade, alicerçada nos
direitos do homem, da propriedade privada, do individualismo, afim de fazer
valer os valores da revolução burguesa.
Tal armadilha chega ao
ponto de instituições que explicitamente favorecem o aumento da pobreza e da
miséria, principalmente nos países do chamado Terceiro Mundo, se intitularem
como altruístas e se postarem como solução de desenvolvimento e de redução das
desigualdades. A exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional,
que através de seus empréstimos a juros elevados, para que os países do
terceiro mundo fiquem endividados, intervém nas estruturas políticas desses
países visando nitidamente implantar uma reestruturação neoliberal, tendo como
orientação uma reforma fiscal, a abertura de mercado, políticas de
privatizações, dentre outras medidas. O neoliberalismo está no mundo inteiro e
a maioria das forças progressivas em todo o mundo se encontra a mercê dessas
ações ao clamar simplesmente por democracia, mas uma democracia burguesa, vazia
de qualquer controle popular e de transformação social, pois é exatamente essa
democracia que serve como intervenção do Imperialismo Capitalista de hegemonia
norte-americana, que atualmente não financia as ditaduras, no entanto, se
apresenta como promotores da democracia.
Assim, mesmo o caráter de denúncia dos maus tratos e de péssimas condições de trabalho, tidos também nas obras de Luigi Damiani, já passam a ser minimizados pela busca de qualquer espaço para exercer a liberdade de venda da força de trabalho da classe trabalhadora, além de em síntese nem serem mais a solução para a diminuição dos fluxos migratórios. Mesmo num mercado regulado, já não se pode mais apostar num sistema do mundo do trabalho assalariado, pois tal forma já se mostrou como causa das fugas em massa de quem necessita vender sua força de trabalho. E, assim, o pessimismo ainda cabe, de certa forma, pois se tem um distanciamento enorme com os ideais de ruptura da ordem estabelecida e para que se vise a construção de um novo mundo.
Referências:
HEIDEMANN, D. “Os
migrantes e a crise da sociedade do trabalho: humilhação secundária,
resistência e emancipação”. In: Migrações: discriminações se alternativas. São
Paulo: Paulinas/SPM, 2004.
KURZ, R. “Barbárie,
migração e guerras de ordenamento mundial”. In: Serviço Pastoral do Migrantes,
Travessias na Desordem Global. Porto Alegre: Paulinas, 2005.
MARTINS, J.de S. ”O voo
das andorinhas”. In: Não há terra para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes,
1986.
ANTONIO ARNONI PRADO, Sobre as
imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani. In: TRAVESSIA-revista de
literatura- n.39 -UFSC -FIorianopolis-jul-dez.l999; pp J9.55
por Carlos R. Rocha (Fuca), Insurreição CGPP
2018