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sábado, 9 de março de 2019

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 2.

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 2.

Miguel Angelo (LIL X) - CEO na empresa W-BOX - GOLD. 
Posse Entre o Céu e o Inferno, Insurreição CGPP.

Vou continuar essa incursão na produção cientifica sobre o rap no contexto da cultura Hip Hop seguindo com a referência de KRS-ONE (Knowledge Reigns Supreme), a Realeza do Conhecimento Supremo pra mim. O Fuca (CEO do Insurreição CGPP), sentiu essa falta e eu fiquei muito sensível a demanda, então bora lá!

Eu sou um professor original, ponto final (KRS-ONE)

“Comecei a militar na escola contra o sistema público de educação, mas as horas vagas pertenciam as quadras de basquete” (KRS-ONE)

Nosso pioneiro de certa forma do gangsta rap do lado leste, hoje com 54 anos, lançou “The Gospel of Hip Hop: First Instrument” em 2009 e é a terceira obra (The Science of Rap é de 1995 e Ruminations - Welcome Rain de 2003) deste rapper que além do mais é também um filósofo de ponta nos EUA, um aclamado professor e palestrante (mais de 500 palestras registradas em diversas universidades norte-americanas), e, sem dúvidas, um dos maiores e mais importantes militantes da causa negra no universo conhecido. Considerada uma obra prima, o livro que segue o mesmo formato da bíblia tem nada menos que 800 páginas, se tornou um manual para os membros da cultura Hip Hop e chama atenção quanto a ousadia em apresentar uma abordagem epistemológica que dialoga muito original, amalgamando filosofia prática, espiritualidade (sua mãe o introduziu nos estudos em teologia ainda quando ele era uma criança) e experiência prática recontando a história do Hip Hop com a agência de quem viveu o movimento desde seu surgimento, preservar o futuro é a incumbência do movimento Hip Hop segundo KRS. KRS-ONE (nascido Lawrence Parker) conta a história do Hip Hop como quem conta sobre sua própria biografia a partir de sua adolescência sem lar pelas ruas do Brooklyn (NY), filho de um homem da Jamaica e de uma mulher afro-americana com mestrado em educação, as primeiras rimas que o levaram ao mainstream, e os estudos que em sua filosofia da “auto-criação”. A obra se enquadra na linha de pesquisa que busca identificar na cultura Hip Hop os elementos da transformação social; saúde, amor, consciência e riqueza são alguns dos valores e metas que KRS-ONE apresenta como partes integrantes da plataforma de transformação que o movimento Hip Hop construiu para a comunidade negra. Foram nada menos que 14 anos de pesquisa empírica no desenvolvimento da obra que, segundo seu autor, busca acima de tudo a paz, a autoconfiança e a verdade (num dialogo interessante com os princípios do MAAT e a escola filosófica de Pth em KMT). O jornal Guardian chamou KRS de “Apostolo do Hip Hop”, o próprio disse na matéria de setembro de 2009; “Daqui a 100 anos esse livro será a nova religião da Terra” (talvez em menos de um século eu diria), e prossegue; "Em cem anos, tudo o que estou dizendo para você será de conhecimento geral. As pessoas ficarão tipo 'Por que ele teve que explicar isso? Não era óbvio? No meu tempo, não é óbvio. “Sou o Hip Hop” é a proposta da obra, entenda bem “Nós” somos o Hip Hop, pois essa é a lógica do valor de autoconfiança a qual a obra remete. Em termos de espiritualidade KRS explica o Hip Hop como religião; "Eu respeito o cristianismo, o islamismo, o judaísmo, mas esse tempo acabou. Eu não tenho que passar por qualquer religião [ou] linha de pensamento. Eu posso me aproximar de Deus diretamente. Nós tínhamos passado por todas as religiões do mundo no momento em que eu ainda tinha doze anos de idade" Mas a proposta não é nada simples e realmente é ousada; “A proposta é definitivamente controversa porque eu também estou dizendo que estou disposto a desistir da minha identidade afro-americana para me tornar Hip hop. Muitas pessoas não gostam disso. Americanos negros podem ser "hiphop", mas também nigerianos, cubanos e italianos. Estou disposto a ir além da minha cultura nata para criar toda uma nova civilização."

“Quando sai de casa minha mãe me deu uma ordem; me tornar um artista de rap e estudar a filosofia metafísica” (KRS-ONE)

“Não sou um filósofo de terno e gravata ou tweed, sou daqueles que veio de baixo, que saiu do seminário das ruas” (KRS-ONE)

“Existe um momento na vida em que o ritualismo e o intelecto deve ser posto de lado para que possamos pegar as armas” (KRS-ONE)

KRS-ONE começou a carreira no Boogie Down Productions, que com Criminal Minded de 1986 basicamente fundou o gangsta rap na costa leste pela originalidade da lírica de conteúdo violento e de contestação social, o próprio Ice Cube afirma que Ice T e KRS-ONE são os primeiros. O Boogie Down Productions saiu de uma articulação com Scott Sterling, um assistente social que o auxiliava KRS no tempo em que este viveu em um abrigo para jovens. Sterling foi assassinado no Bronx um ano após o lançamento de Criminal Minded. Como ativista é importante lembrar do coletivo “Stop the Violence” ainda em 1988 que deste então reúne diversos membros da cultura hip hop em turnês pelos guetos dos EUA buscando soluções pacíficas para os conflitos existentes nas comunidades. As batalhas de rima foi justamente uma proposta do “Stop the Violence” para a redução da violência armada entre jovens negros; “Você pode matar com o poder das palavras, na batalha das ideias” disse o Professor KRS-ONE, mas ponderou; “O Mundo é violento, a realidade é violenta, e muitas vezes as pessoas se utilizam de violência contra mim, evidentemente que em situações assim eu posso reagir também com violência”. Nelly, Method Man, Busta Rhymes, The Game, Hakiem fazem parte do Stop the Violence. Na área da educação desenvolveu o projeto HEAL (Educação Humana Contra Mentiras) em 1990 que se articula com o álbum Civilization vs. Technology do mesmo ano (o objetivo cumprido deste álbum foi arrecadar dinheiro para fazer 16 milhões de cópias em fitas cassetes com a gravação de uma de suas palestras na Universidade de Stanford). Na sua longeva carreira como rapper KRS-ONE tem 19 álbuns no catálogo, 3 de ouro com mais de 500 mil cópias vendidas, fora as incontáveis participações colaborativas.

“Eu não faço parte do entretenimento, eu sou o edutain-KRS-One- entertaining "!

“A lei das ruas é a única lei que eu realmente respeito.” KRS-One

Vou fechar essa nota com a entrevista/debate de/com KRS na matéria “O Professor Pode ser Ensinado?” em colaboração com Michael Lipscomb, o artigo foi publicado pela editora da Universidade de Indiana e é produto do Centro de Pesquisa Hutchins para africanos e afro-americanos da Universidade de Harvard.

Michael Lipscomb:
É óbvio que a história é importante para você. A história é como a auto-estima para você. Mas me parece que você deposita a história na política, e isso nem sempre pode funcionar. Por que usar a história como ferramenta política?

KRS-One:
Porque é distorcendo a história que muitas pessoas se tornam poderosas. Então, nitidamente a história é uma ferramenta política. É o tecido de nossas vidas. Sua cultura, e você mesmo.

ML: Mas há muitas maneiras de olhar América. Existem alguns que digamos, e eu sou um deles, que veem a América, em aspectos importantes, uma experiência cultural africana. O que é irônico é que quando um branco de classe média quer ser considerado culto, ele ou ela vai para essa análise.

KRS: Certo.

ML: O que, de certo modo, contradiz o que você está dizendo. O domínio político não é correspondido pelo domínio cultural. Como você acha que a política se relaciona com conhecimento cultural e como se pode usar conhecimento cultural como uma maneira edificante de auto estima?

KRS:
Temos que olhar para a nossa história. Para entender a natureza da fera você tem que entender sua história. Esta cultura americana não é de todo como a cultura africana. Isto é a cultura africana depois de ter nos enlouquecido. Esta é a cultura africana depois de ter sido assassinada, roubada, espancada. Antes do colonialismo nossa história é rica, desenvolvemos nossa própria civilização que teve sua própria cultura. Eles se vestiram, agiram, falei, fiz tudo de forma totalmente diferente. Eu uso a história como uma ferramenta política para rastrear como as pessoas chegaram ao poder. Eles não derrubaram a África por causa da cor, do preconceito. Foi economia - e foi também uma questão de poder. Agora, o que é o indivíduo sem a cultura?

ML: A cultura africana?

KRS: A cultura correta. O indivíduo faz parte das massas. As massas vêm primeiro e o indivíduo vem por último. Na América, o indivíduo vem em primeiro lugar e as massas vêm por último. Se massas vierem antes do indivíduo é a cultura que virá antes do indivíduo. Você faz parte de uma multiplicidade de pessoas que aprenderam e lutaram por anos e no fim a luta é sua cultura. Isso é o que te dá conteúdo. Isso é o que faz de você o africano, o asiático, o Japonês: Você é o que sua cultura lhe ensinou a ser, como você age e inclusive o que vc pensa de uma certa maneira. Quando essa cultura é despojada de você, você é deixado sem nada. Você é como um copo vazio. E as pessoas podem derramar qualquer coisa que quiserem em vc.

ML:
Eu fiquei surpreso, aliás, que W. E. B. Du Bois estava ausente da lista de leitura que você propaga, porque ele é muito importante para lidar com isso. Eu duvido que fomos totalmente despojados nossa cultura. Olhe para a história americana em meados do século XIX, em escritores como Emerson e Thoreau. Eles estavam preocupados com a ideia de Europa e a tarefa de sair debaixo de uma noção da antiguidade europeia, para que pudessem forjar outra identidade cultural. Teve uma profunda ambivalência nesta questão. Ao mesmo tempo, nas regiões do sul os aristocratas enviaram seus filhos para a Europa para "cultura". Então, nesse sentido, éramos os únicos americanos verdadeiros, porque nós tínhamos crescido aqui. Nós tivemos que lidar com essa realidade.

KRS: Não necessariamente. Eu sinto como se a América nem existe. Os únicos verdadeiros americanos são os índios americanos e eles não chamam esse lugar de América. Assim, o que é a América?

ML: América é a sombra; eu penso isso, imagino que é o que você está tentando dizer. Para muitos, a América é uma espécie de Europa bastarda. É provável que muitos europeus tenham perpetuado essa noção. Os negros fizeram a América. Como James Baldwin costumava dizer, "somos Americanos porque não sabemos nada". Por outro lado, temos formações culturais complexas como o jazz, que não é música africana ...

KRS: Jazz é música africana.

ML: Tem elementos africanos como polirritmia ....

KRS: Qualquer coisa criada por um homem negro é africana. As pessoas dividem as coisas ferrenhamente em decorrência da maneira como fomos ensinados. Nós fomos mortos mentalmente. Se um gato tinha gatinhos no forno, você vai chamá-los de muffins?

ML: Eu acho que lidar com a África e com as pessoas, sempre vai ser um pouco mais complicado que isso. Apesar de tudo, a África é uma formação profundamente heterogênea múltiplas de culturas e grupos étnicos. A cultura iorubá é distinta da cultura ibo e ambos são distintos da cultura Hausa, e elas não coexistem exatamente em harmonia perfeita. É como a Europa: lá não existe uma quantidade substancial de unidade coesa, eles tiveram duas guerras mundiais que atestam isso.

KRS: Mesmo assim, o título afro-americano é um título falso. É um título de escravo. Qualquer coisa ligada à americano é o equivalente a deixar cair a bomba em Hiroshima na história da escravidão e na história da aniquilação dos indígenas. ..

ML: Estamos falando de dois diferentes tipos de América. Eu concordarei que há todo um segmento da América que está atada a uma concepção europeia de socialismo. Mas na África, vê-se mesma coisa. Abaixo do vigésimo paralelo há mais do que um punhado de nações que tem ditaduras negras e cuja os cidadãos não podem votar.

KRS: Bem, isso é hoje, depois do neoliberalismo. A África na sua história antiga, antes da invasão da Pérsia, da Grécia e Roma, era economicamente, psicologicamente e tecnologicamente estável; racialmente e culturalmente era um lugar estável para se estar.

ML: Ainda havia luta, ainda havia conflitos, havia ainda a expansão e contração dos impérios indígenas.

KRS: Não, não antes da invasão de Grécia e Roma.

ML: Essa é uma conjectura duvidosa

KRS: Na verdade, a razão pela qual eles foram derrotados é porque eles não tinham as armas sofisticadas que Roma, Grécia e Pérsia tinham quando o Egito foi invadido. A África não evoluiu para esse estágio de tecnologia porque tinha alcançado um estágio de civilização que foi afastando-se disso. Claramente, nosso tempo e dinheiro estavam indo para a educação e conhecimento. É quando eu encontro o declínio do povo africano: quando eles foram introduzidos na Europa. Na verdade, toda essa corrida para nos introduzir na Europa só fez nos destruir.

ML: Eu acho que isso é simplesmente superstição. Até mesmo o Chanceler Williams, que escreveu "A destruição da civilização negra", afirmou que, entre suas principais fontes utilizou Heródoto, "o pai da história", que foi alguém que admirava a África. Ele teve que se passar por "escravizado", a fim de obter a história sobre África. O que ele fez foi apenas pegar, através de várias fontes, as imagens boas sobre a África em meio o que havia de ruim sobre a África. Então ele simplesmente realizou uma seleção; justamente o que os brancos fizerem, mas dando ênfase em suas dimensões negativas. Você cria uma história oficial e depois começa a construir uma cultura teórica em torno disso, enfatizando qualquer coisa que suporte sua história e deixando de falar do restante. O perigo é que muito dos rappers podem cair em uma contraficção com outra história oficial e acabam fazendo exatamente o que eles condenam os europeus por terem feito.

KRS: Eu estou atentando sempre para não fazer. Toda minha história vem de um ponto de vista lógico, realmente não é ponto de vista histórico. Se você for a uma outra terra e saqueia, estupra e mata povos mentalmente e fisicamente - para o seu próprio benefício, você é um assassino e um ladrão.

ML: Você está dizendo que os africanos nunca fizeram isso?

KRS: A cultura egípcia fez isso constantemente. Sim, há muita culpa na cultura africana, mas a cultura africana, ao contrário da cultura europeia, estava muito longe deste universo. Nós estávamos passando por um estágio do que realmente podemos chamar de capitalismo. Na televisão, eles mostram isso como escravidão, mas em seu sentido político era capitalismo. O Egito estava avançando e evoluindo em um estado de harmonia universal ou de unidade -porque os africanos viajaram o mundo. Em qualquer lugar do mundo, se você queria aprender, você tinha que ir até o Egito.

ML: Mas eu até questiono toda essa ideia do Egito como berço cultural. A historiografia ainda está evoluindo. Há historiadores brancos importantes que defendem o Egito como berço cultural. Você leu o "Athenas Negra" de Martin Bernal?

KRS: Sim.

ML: Ele traça as questões culturais em parte através do desenvolvimento da língua grega. E o que você encontra em grego é algo com ambas influências níticas e semíticas. E tem havido uma quantidade crescente de pesquisas arqueológicas sobre as antigas civilizações enterradas sob o Sudão. Então eu estou desconfortável com esta ideia predominante que retrata o Egito como único farol da iluminação da África.

KRS: Eu dou ênfase no Egito porque foi um dos principais locais de aprendizagem. Este foi o primeiro lugar que a Grécia atacou: foi provavelmente uma das mais populosas áreas para os estudiosos. Mas a África como um todo fez parte de um grande desenvolvimento do aprendizado. Meu ponto, voltando para ele como ferramenta política, é que a subjugação dos outros é a forma como as pessoas ganham seu poder político, e eles fizeram isso tirando nossa história. Conhecimento é por saber, uma coleção de fatos; a inteligência é a capacidade de conhecer, avaliar e questionar. Obviamente, se alguém está lhe dando conhecimento, e você não tem a inteligência para assimilar isso, você é basicamente um escravo para a pessoa que lhe deu o seu conhecimento. Eles ditam como eles querem a forma como vc deve ser e agir. O que aconteceu é que o africano tem sido despojado não de conhecimento, não de suas datas, fatos e números, mas de sua inteligência, de sua capacidade de avaliar o que está sendo arrebatado ao seu redor

ML: Afro-americanos são frequentemente uma fotografia confusa, mais ou menos libertos de suas contrapartes africanas. Muitos Afro-americanos tomaram parte de movimentos modernos. Marcus Garvey não pôde iniciar seu movimento na Jamaica. Ele tinha que vir para a América. Interessantemente seu herói era Booker T. Washington. Então, o que eu vejo são diferentes níveis de Africanidade. Onde você está posicionado em relação a isto? Parte do que traz sua música é a variedade de sons de reggae que você emprega. Como Bob Marley, você joga reggae em uma tradição do rock.

KRS: Meu pai é jamaicano. Minha mãe é americana. . . eu sou nascido na América. Denuncio essa ideia de identidade americana.

ML: Eu acho que isso tem muito a ver com o fato de que os índios negros do oeste nunca foram capazes de aceitar o fato de que os negros são uma minoria na América. Você lida com isso em uma de suas próprias músicas. Mas você não acha interessante que Jamaicanos fujam da ilha onde são a maioria tão rapidamente quanto os cubanos brancos fugiram de Castro?

KRS: Bem, a razão é a desgraçada pobreza que existe lá. Todo mundo está perseguindo os itens materiais. Jamaicanos não são diferentes. Eles querem uma casa, um carro, uma garota ou um homem. A América é apresentada a eles na televisão como sendo a terra onde as ruas são pavimentadas com ouro. Então naturalmente eles deixam sua terra pobre para vir para a América. Eu só acho que todos os africanos sobre o mundo deveriam ser africanos, chamar si e reconhecer-se como africanos. Assim como os italianos se reconhecem como italianos.

ML: Por quê? A América é um fenômeno diferente comparado a Itália.

KRS: Mas a América não existe.

ML: Sim, isso acontece: na verdade, o norte Americano criou uma cultura que é distinta do que podemos ver em qualquer região da Itália. Historicamente, as pessoas quem vem aqui porque querem fugir de sua terra natal, por várias razões, filhos, como você disse, e muitas vezes motivados pela perspectiva de novas oportunidades. Mas talvez eles simplesmente queriam fugir. Para começar de novo.

KRS: Certo.

ML: Frequentemente eles estavam interessados em manter sua cultura, seus laços com uma existência mais antiga. Isso é o que D. H. Lawrence pode ter tido em mente quando disse que a América é uma Europa recriada. Mas parte do que é básico e distintivo para a cultura é a experiência da escravidão, o drama interracial, James Baldwin fala que se criou não só um novo tipo de homem negro, mas um novo tipo de homem branco também. Por esse raciocínio, então, quem pode dizer que os americanos negros não são americanos, eu posso?

KRS: Se negros americanos fossem americanos, nós não teríamos vindo para cá em navios negreiros.

ML: Você está negando a realidade da transição. Ela está aqui.

KRS: É como chegamos aqui. Todo o mundo mais veio aqui procurando uma maneira melhor da vida. Os africanos vieram algemados. Nós não pedimos para vir para cá. Então agora que estamos aqui e você se adapta e gera filhos que cresceram aqui na América, nós rapidamente somos chamados de americanos. Quando, na verdade, a América é o que tem nos matado por quinhentos anos.

ML: Por outro lado, nós estamos construindo a América por quinhentos anos.

KRS: Com base na força do opressor

ML: Legalmente, estamos na América. E há a décima terceira, décima quarta e a décima quinta emenda do nosso lado. Desde a 1865, fomos tomados como parte da Política americana.

KRS: Olhe para a Proclamação de Emancipação. Diz que a partir de janeiro, 1 de janeiro de 1863, todas as pessoas mantidas dentro de um estado ou parte de um estado em rebelião armada era livre. Os estados que estavam em rebelião armada eram estados confederados. Os estados do norte não tinham rebeldes armados em rebelião. Em última análise, Lincoln enganou as pessoas africanas ao fazerem-nas acreditar que elas seriam beneficiadas quando na verdade tudo fazia parte de um acordo com todas as pessoas tidas como escravos dentro de um estado que estava em rebelião armada. Então todos os estados do sul, todos os escravos do Sul estavam livres quando, na verdade, lá era um governo totalmente diferente. O Norte tinha escravos.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 1.

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 1.
Miguel Angelo (LIL X) - CEO na empresa W-BOX - GOLD. 
Posse Entre o Céu e o Inferno, Insurreição CGPP.

Foi em meados dos anos 90 (séc XX) que a cultura Hip Hop ganhou notável espaço nas universidades dos EUA. Com estudos intensos buscando a compreensão de um fenômeno que realmente mudou a lente que a sociedade estadunidense utilizava para apreender a realidade surgiram diversos estudos nas áreas das ciências humanas, com destaque para as análises históricas, jornalísticas e comunicação & artes. Vamos começar com algumas delas;

• Black Noise: Rap Music and Black Culture in Contemporary America

Uma referência importante nesse sentidos é da Professora Trice Rose que é socióloga lecionando na Brown University associada ao departamento de estudos africanos e diretora do Centro de Estudos de Raça e Etnia na América da mesma universidade. Ela escreveu o livro "Black Noise: Rap Music and Black Culture in Contemporary America" em 1994 a partir de sua tese de doutorado, que alias foi a primeira tese de doutorado da história dedicada exclusivamente a cultura Hip Hop. Black Noise esteve entre os 24 livros mais lidos segundo a The Village Voice à época e recebeu o premio, o American Book Award da Before Columbus Foundation em 1995. 

• "kickin' Reality, Kickin' Ballistics: 'Gangsta Rap' and Postindustrial Los Angeles" 

O historiador Robin Keley (Robin Davis Gibran Kelley) , que é professor de História Americana na UCLA, tem um capítulo, "kickin' Reality, Kickin' Ballistics: 'Gangsta Rap' and Postindustrial Los Angeles" dedicado a cultura hip hop em seu livro "Race Rebels: Culture, Politics, and the Black Working Class de 1994 em que trata da história e cultura afro-americana enfocando seus movimentos sociais privilegiando as relações raciais nos EUA. 

• "Hip Hop America"

Nelson George colunista de música, crítico cultural, jornalista e cineasta indicado duas vezes ao National Book Critics Circle Award e vencedor duas vezes do ASCAP-Deems Taylor publicou "Hip Hop America" em 2005. A obra é não-academica o que permitiu atingir um grande e diversificado público, as temáticas centrais são a política, cultura e a economia nos negócios do Hip Hop. George é um mais populares colunistas da cultura pop afro-americana hoje nos EUA e, evidente, fã da cultura Hip Hop. Nelson George ainda é supervisor de produção e roteirista da séria da Netflix "The Get Down"; "Hip Hop America é o relato definitivo da colisão entre a cultura da juventude negra e a mídia de massa e seu impacto na mudança social."

• "When Chickenheads Come Home to Roost: A Hip Hop Feminist Breaks it Down"

Joan Morgan, que atualmente cursa o doutorado na New York University, publicou "When Chickenheads Come Home to Roost: A Hip Hop Feminist Breaks it Down" em 1999 gerando impacto importante e se tornando sua mais famosa obra. Esse livro discute a complexidade de uma identidade feminista entre as mulheres negras dentro de um movimento centrado no homem negro, as contradições e possíveis reconciliações em um contexto de sociedade de tipo patriarcal analisando rappers como Lil 'Kim e Queen Latifah. Janet Mock da New York Redefining Realness considera a obra representante de toda uma geração de mulheres negras que começaram a revindicar seu espaço como protagonistas no movimento Hip Hop, a chamada geração pós feminista. Joan cunhou o termo "hip-hop feminism" nesta obra. 

• Rap Music and the Poetics of Identity

O hoje já falecido, professor branco de análise musical da Nottingham University no Reino Unido, Adam Krims, nos legou a obra "Rap Music and the Poetics of Identity" escrita em 2000 surpreendendo os próprios membros da cultura Hip Hop com a facilidade de compreensão de o autor conseguiu articular para explicar a apreensão da forma de organização do movimento e para a formação das identidades ocorrem em seu seio. A obra ataca os críticos culturais que à época reduziam o rap a um discurso apolítico e de pouco impacto social positivo com a análise das obras de rappers do calibre de Ice Cube, Goodie Mob e KRS-One.

• Rap Music and Street Consciousness

A professora de etnomusicologia da Escola de Música Herb Alpert da UCLA, Diretora da pós-graduação em musica popular americana e história e cultura da música rap, Cheryl L. Keyes, lançou "Rap Music and Street Consciousness" em 2004 que foi ganhador do premio CHOICE por melhor título acadêmico no mesmo ano. Keyes é pioneira em análises etnográficas da música rap, e "Rap Music and Street Consciousness" é a primeira obra que analisa o rap a partir da metodologia musicológica realizando uma verdadeira arqueologia do gênero desde a tradição musical dos povos da África Ocidental, passando pelo Dancehall jamaicano e as expressões vernaculares afro-americanas até o mainstream da época. Keyes define o rap como; " [...] um fórum que aborda a marginalização política e econômica de jovens negros e outros grupos, promovendo o orgulho étnico e exibindo valores e estética culturais". A obra trás a analise das obras de referencias centrais da cultura Hip Hop como Afrika Bambaataa, que considera seu padrinho, da Zulu Nation, George Clinton & Parliament-Funkadelic, Grandmaster Flash, Kool 'DJ' Herc, MC Lyte, LL Cool J, De La Soul, Public Enemy, Ice T, DJ Jazzy Jeff & Fresh Prince e The Last Poets sempre desafiando análises acadêmicas externas ao Hip Hop. As pesquisas etnográficas foram realizadas em Nova York, Los Angeles, Detroit e Londres e trás entrevistas com artistas, produtores, diretores, fãs e empresários da cena. Muitos temas novos foram abordados na obra com a questão do surgimento dos (as) rappers brancos (as), os impactos legais das novas inovações tecnológicas, o impacto dos vídeo-clipes de rap, o gangsta rap, o Rap do Sul e os subgêneros do rap centrados na dança. Uma parte do livro é dedicada a questão das carreiras cruzadas de rappers que se tornaram milionários também em outras áreas como no cinema, os casos de Queen Latifah, Will Smith e Ice Cube, assim como o império multimídia de Sean 'P. Diddy' Combs, a Death Row Records, as tensões entre as costas oeste e leste, os assassinatos de Tupac Shakur e Christopher 'The Notorious Big' Wallace assim como as tentativas de unificação da Nação do Islam com a Nação Hip Hop.

• The Hood Comes First

Obra de 2002, The Hood Comes First foi escrita pelo professor branco associado de música e estudos da comunicação da Nottingham University no Reino Unido, Murray Forman. Nesta obra, Murray buscou captar as ressonâncias da música rap a partir do espaço urbano, nas territorialidades dos guetos onde vivem os negros afro-americanos. É um estudo que busca entender como o rap, nas suas mais varias vertentes e meios (como cinema, rádio e vídeos clipes) explicam o território e as identidades individuais e coletivas trabalhando com as categorias "gueto", "centro da cidade" e "bairro". O método de Murray busca uma negociação entre a linguagem acadêmica e a linguagem das ruas na dinâmica raça, espaço social e juventude. Mostra a centralidade do território na discursividade do rap, defendendo inclusive que o espaço geográfico é central na identidade autêntica do movimento Hip Hop, que modifica as ideias de raça, classe e identificação nacional. Uma das contribuições da obra se refere a análise dos processos dentro da industria cultural que culminou na projeção internacional da música rap.

• Check It While I Wreck It: Black Womanhood, Hip Hop Culture, ans the Public Sphere.


A Socióloga professora de estudos da mulher e estudos de gênero do College of Arts & Sciences ligado a Syracuse University, Gwendolyn D. Pough publicou "Check It While I Wreck It: Black Womanhood, Hip Hop Culture, ans the Public Sphere" em 2015, esta obra, de certa maneira, está em diálogo com a de Joan Morgan no sentido de realizar uma provocação central; Por que as mulheres negras no seio da cultura Hip Hop ainda lutam por igualdade mesmo com a projeção da música rap no mainstream? Como Joan, Gwen busca compreender a complexa relação que as mulheres negras vivenciam ao articular a vivencia na cultura Hip Hop com o feminismo. A análise de Gwen articula a cultura musical afro-americana de suas raízes até o rap assim como articula as identidades das primeiras gerações de mulheres negras influentes de Sojourner Truth, passando pelas referencias da luta pelos direitos civis e do movimento Black Power até chegar em Queen Latifah, Missy Elliot e Lil ' Kim que para Gwen são referencias chave hoje para compreender como as mulheres negras estão recuperando um legado que visa atrapalhar e ocupar a esfera pública patriarcal dominante. Gwen discute ainda como as jovens negras de hoje veem lutando contra a linguagem estereotipada do passado ("castrating black mother," "mammy," "sapphire") e do presente ("bitch," "ho," "chickenhead"), e defende a música rap como uma ponte que mulheres negras encontraram para contar sobre suas vidas, construir suas identidades e desmantelar representações negativas do passado e do presente referentes a feminilidade negra utilizando como exemplo a própria relação que se dá atualmente na produção de raps da mulheres negras que utilizam a retórica masculina sobre o amor como meio de dar poder as suas discursividades. A obra defende o papel da música rap como método pedagógico assim como sua importância para os movimentos negros e o feminismo negro. Em síntese a obra é uma defesa da cultura Hip Hop e da música rap assim como uma denúncia ao sexismo e a misoginia inerente ao mainstream.






sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

Miguel Angelo Sena da Silva Junior 
Coordenador da Posse de Hip Hop “Entre o Céu e o Inferno” 
MC no grupo de rap Insurreição CGPP 
Graduando em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

1. INTRODUÇÃO 
1.1 - O SER HUMANO AFRICANO 

O psicólogo social experimental Wade W. Nobles (ou Nana Kwaku Berko em banco e Ifagbemi Sangodare, em ioruba de ifa) afirma que o povo africano em toda a diáspora precisa voltar atrás e reconstituir o que esqueceu. De modo mais preciso, o que foi esquecido seria o próprio significado do que vem a ser africano quando antes do contato com o opressor branco. Para Nobles, o opressor conseguiu alterar "a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse senso alterado da consciência é o problema fundamental dos africanos" continentais e diaspóricos, isso porém, ocorre sem que fosse possível destruir o africano dentro de nós. Nobles fala de um lugar que muito contribui para a compreensão dos fenômenos ligados ao que alguns chamam de "genocídio" e outros "extermínio" de jovens negros no país. Nobles fala de uma psicologia negra emergente de base afrocentrada que surge do questionamento das limitações da psicologia ocidental (branca) e da necessidade de abordar "às consequências psicológicas negativas de ser africano numa realidade anti-africana". Essa nova abordagem epistemológica reivindica a necessidade de uma articulação séria entre a "natureza fundamental de ser africano (negro), seus significados psicológicos e funções associativos ou a teoria (s) necessária (s) com respeito aos processos psicológicos africanos "normais". Dado que um dos maiores desafios para mobilizar a opinião pública contra o quadro de homicídios de jovens negros é a existência de uma desumanização da vítima, a psicologia negra que Nobles propõe contribui muito para a nossa questão. 

    Sakhu Sheti é um termo usado por Nobles para esclarecer o que viria a ser uma psicologia negra, o termo extraído do Medu Netcher [A escrita de Deus], a palavra sakhu "significa a compreensão, o iluminador, o olho e a alma do ser, aquilo que inspira", já sheti "quer dizer entrar profundamente num assunto; estudar a fundo; pesquisar nos livros mágicos; penetrar profundamente". A psicologia negra busca obter "parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia" que traga a "compreensão plena da pessoa africana mediante a pesquisa, o estudo e o domínio do processo de 'iluminar' o espírito ou a essência humanos". Só com o exame e a explicação do significado é possível o entendimento humano para o africano, incluindo aí o funcionamento da natureza (essência) do ser humano. Essência aqui difere da noção de "essencialismo" proveniente do pensamento ocidental. Em África, "essência" ou natureza humana é algo ainda a ser explorada e traduzida para termos africanos, ou seja, é necessário romper com a restrição que é posta ao conhecimento africano quando este e suas aspirações está preso ao campo de visão dos instrumentos e das interpretações europeus. 

    A busca do sakhu, ou iluminação do espírito, afro-brasileiro, seria essa imersão na ideia africana do que vem a ser um ser humano ou uma pessoa, assim o Sakhu Sheti é a exigência de interrogar a linguagem e a lógica dos povos africanos tradicionais e assim apreender de forma profunda e nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos. Isso implica dizer que, apesar de trazidos a força, preso a grilhões, ou seja, destituídos de liberdade, isso não significa que os africanos "chegaram destituídos de pensamento ou crenças sobre o que eles eram", pelo contrário, "nossos ancestrais vieram com uma lógica e uma linguagem de reflexão sobre o que significava ser humano e sobre quem eles eram, a quem pertenciam e por que existiam". Logo, a interpretação do maafa da escravidão só pode ser realizada a partir do sheti. Assim Nobles justifica o conceito de maafa; 

"Marimba Ani [...] introduz o conceito de maafa e o define como grande desastre e infortúnio de morte e destruição além das convenções e da compreensão humanas. Para mim, a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente." 

   Dado esse pressuposto faremos uma incursão descritiva dos povos banto-congo, certamente o povo que mantem o maior contingente de descendentes na cidade de São Paulo, cidade escolhida pelos pesquisadores para o estudo da mortalidade de jovens negros por homicídios, especificamente por ação policial. 

    No que diz respeito à língua e à lógica nossos ancestrais angolanos acreditavam que uma pessoa era um construto de energia, espírito e poder. Nessa filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica combinada a uma espécie de vitalismo "a noção de força toma o lugar do ser e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou diminuição". Essa ideia de vitalismo certamente se refere ao fato de que; 

"[...] na visão banto-congo, [ser humano] é ser uma 'pessoa' que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total, perceptível e ponderável. A pessoa é ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia e dos relacionamentos divinos. É a essência espiritual da pessoa que a torna humana. Como Ngolo (energia, espírito ou poder), a pessoa é um fenômeno de 'veneração perpétua'." 

    Dentro deste sistema, o ser humano é um espírito em contato constante com os poderes "espirituais" cujo entendimento pressupõe esses poderes como força e não como entidades estáticas. Os poderes "espirituais" habitam um reino invisível (que se denomina Orum para a tradição nagô-ioruba); "força espiritual" constituindo um híbrido cuja estrutura diferenciadora culmina em uma energia (força) em constante expansão. Esse todo é o Ser supremo, a sustentação da estrutura geradora desta força exige dos seres humanos;

"[...] como espíritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos (intra), a outros espíritos humanos (inter) e por fim ao Divino (supra)." 

    Na dinâmica das diferentes manifestações ou expressões do Divino temos os nhuyu (parentes mortos dos vivos), os simbi (ancestrais) e o NzambiMpongo (Ser Supremo) que podem ser invocadas para ajudar os vivos. Quando da morte, ocorre uma "diminuição" do ser, devendo assim, os vivos fazerem oferendas aos mortos transmitindo a eles um pouco de vida. Caso os vivos sejam negligentes os nhuyu lhes chamam atenção enviando-lhes doenças e dificuldades. Aqueles que morrem sem deixar parentes, acredita-se "está condenado à degradação final, espécie de segunda morte, desta vez definitiva." 

    Com base nessa noção africana de espiritualidade ou "força espiritual" a "pessoa" responde a uma crença complexa (material e imaterial) que lhe dá um valor intrínseco" e que a 'pessoa' é, na verdade, um 'processo' caracterizado pelas leis divinamente governadas da essência, do aperfeiçoamento e da compaixão". 

    Vemos, portanto, que da chegada em 1532 dos primeiros africanos bantos presos, escravizados e transportados pelo negreiro Jorge Lopes Bixorda para trabalharem no primeiro centro produtor de açúcar, Vila São Vicente, no atual Estado de São Paulo, até hoje muita coisa mudou quanto a maneira de conceber o ser humano africano, este perdeu sua capacidade de auto definição e passou por um processo que Nobles chama por; "Descarrilhamento e Desafricanização". Antes de ir para este tópico irei fazer duas citações diretas relacionadas com essa questão de autonomeação fundamentais para compreensão do que foi e do que é, assim como de o que pode ser este ser humano africano. A primeira de Ney Lopes e a segunda de Toni Morrison; 

"Um indivíduo se define por seu nome; ele é seu nome. E este nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome interior é indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser isolado. Toda a pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência." 
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra, pág. 145 

"Nasci e cresci em Vesper County, Virgínia, 1873. Num lugarzinho chamado Vienna. Rhoda e Frank Williams me pegaram na mesma hora e me criaram junto com os seis filhos deles. O último filho dela tinha três meses quando Mrs. Rhoda me pegou e ele e eu a gente era mais chegado que muitos irmãos que eu já vi. Victory era o nome dele. Victory Williams. Mrs. Rhoda me chamou de Joseph em honra do meu pai, mas nem ela nem Mr. Frank também pensaram em me dar um sobrenome. Ela nunca fingiu que eu era filho carnal dela. Quando ela dividia tarefas ou favores, dizia: 'Você é como se fosse meu mesmo'. Aquele 'é como', eu acho, foi que me fez perguntar para ela - acho que eu não tinha nem três anos ainda - onde estavam os meus pais de verdade. Ela me olhou lá do alto, por cima do ombro, e me deu o sorriso mais doce, só que triste de algum jeito e me disse: Ah, querido, eles desapareceram, sem nenhum traço. Do jeito que ouvi, achei que ela queria dizer que 'sem nenhum traço' era eu. 
'No primeiro dia que eu fui para a escola, tinha que ter dois nomes. Falei para a professora: Joseph Trace [Trace = Traço] [...]." 
Morrison, Toni. Jazz, pág. 122-3 

2. DESCARILHAMENTO E DESAFRICAZAÇÃO 

    Seguindo a ideia de maafa proposta pela filosofa e antropóloga Marimba Ani, devemos ao menos dar algumas indicações que apresentem a dinâmica deste processo na história localizando as raízes do mesmo ainda na Antiguidade como propõe o etnólogo Carlos Moore. 

    A escravização do africano foi a base de sustentação do projeto sobre o qual se levanta o que é comum denominar de "Novo Mundo". Este ponto se preocupa em assinalar alguns aspectos do custo do projeto de colonização para o desenvolvimento do ser humano africano, não apenas do ponto de vista das condições sob as quais aqui chegavam os africanos; que depois de meses de fome e tortura se encontravam despersonalizados e arrasados física e psicologicamente, mas também o que significou todos esses anos de repressão e opressão racial que ainda vigoram. 

   Nobles está convicto de que houve um descarilhamento que mudou o caminho do desenvolvimento africano quanto a sua socialização, vida familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo, pensamento filosófico profundo, invenções científicas e técnicas. Apesar de ainda não sabermos ao certo o real impacto desde descarilhamento iremos pontuar aqui alguns aspectos que certamente nos permitirá compreender em parte a aparente indiferença social quanto ao extermínio de jovens negros nas periferias da cidade de São Paulo. 

    A metáfora do descarilhamento é um recurso para explicar que houve uma alteração brusca de caminho no desenvolvimento africano, mas que, porém, esse descarilhamento cultural é de difícil identificação dado que "a vida e a experiência continuam". Esse aspecto é fundamental de ser reconhecido pois é em decorrência desde fato que o próprio africano não percebe que está percorrendo uma trajetória que o leva a desumanização e que poderia estar centrado, realizando uma experiência mais significativa em sua vida; humanizando-se. 

    Para a condição de coisificação que o maafa demandava o africano só dispunha do "mapa mental", a concepção de mundo descrita no tópico anterior, este "mapa mental" ao mesmo tempo que "serviu de filtro cultural da resistência à escravidão e ao colonialismo" foi o que, aparentemente, tornava o africano inadaptado ao regime de escravidão cabendo ao colonizador um processo de desafricanização de seu ser. A conclusão é que nem a escravização e nem a exploração contemporânea do africano seria possível sem a destruição e/ou redefinição do que Nobles chamou de "mapa mental" do africano. Logo, é a invasão do espaço mental do africano pelo colonizador e sua visão de mundo que, removendo os significados que constituíam o "mapa mental" do africano, possibilitou e segue viabilizando sua exploração no tempo, e aqui chegamos ao preceito fundamental da afrocentricidade, segundo Nobles. É, portanto, "esse processo de descentramento ou desafricanização [que] constitui a problemática psicológica-chave na compreensão da experiência dos africanos em toda a diáspora". 

3. EMBRANQUECIMENTO 

"[...] ela disse: 'Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?' 
'Do jeito que eu quiser?' 
'É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja alguma coisa mais do que ele é?' 
'Para quê? Não dá para mudar o mundo.' 
'Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.' 
'Estragou como?' 
'Esqueci.' 
'Esqueceu?' 
'Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para cima e para baixo querendo ser outra pessoa.' 
'Quem? Quem você queria ser?' 
'Não tanto quem, mas o quê. Branca. Leve. Moça de novo.'" 
Morrison, Toni.Jazz. 2009, pág 192. 

    O que mais caracteriza a experiência do africano diaspórico no Brasil é o processo de embranquecimento, que Nobles precisa melhor como eliminação do africano, que passa a ser uma política de Estado em 1850. Apesar da referência dada pelo autor quanto o momento em que a política de embranquecimento passa a vigorar sabemos que na verdade a construção do africano como inferior, ou seja, o argumento central de que era necessário branquear o país, já se expressa em políticas públicas ainda no período colonial brasileiro. É o caso, por exemplo, das políticas que se referem a ocupação de cargos públicos, civis, religiosos e militares, que trazia a ideia de pureza do sangue advinda da Idade Média como discurso oficial da igreja católica nos mostrando que o Brasil, também como os Estados Unidos, forjou um modelo de discriminação racial baseado em pigmentação da pele e também referente à origem. Roger Bastide, afirma que no século XVII em São Paulo "negros e brancos eram separados na capela diante de Deus, e nos cemitérios, diante da morte" e ainda que a Igreja visava "[penetrar] nas almas dos descendentes de africanos a noção de sua separação e da sua subordinação aos brancos" confirmando no tempo o processo de desafricanização do negro pela via da redefinição do "mapa mental" do africano. O fim do domínio português não representou mudança no teor das políticas públicas do Estado no que diz respeito ao seu conteúdo discriminatório dado que " (...) Em 5 de Dezembro de 1824, a Constituição brasileira em lei complementar proibia o negro e o leproso [assim denominado na época pessoas que conviviam com a hanseníase] de frequentarem escolas", lembrando que a esse período já tínhamos muitos negros manumitidos, estando ai evidencias de uma política anti-africano já antes da formulação de uma política definitiva de imigração, inclusive, consagrada pela constituição do país. Porém, o que ficou mesmo marcado como a consolidação de um projeto de embranquecimento, eliminação, genocídio do africano, foi a política de substituição racial da força de trabalho com a imigração europeia. Segundo o historiador Petrônio Domingues, a ideia de substituir a força de trabalho nacional se originou ainda no governo do Império e já nesse momento se visava a inserção de forma privilegiada de colonos provenientes da Europa. Cabe, porém, um pequeno balanço dos antecedentes históricos do projeto para melhor argumentar quanto ao caráter racista da política já que uma tese importante deste item é a de que 

"[A despeito do paradigma do branqueamento só ter adquirido vulto no final do século XIX, a transformação de negro em branco, segundo Andreas Hofbauer, é um] ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a história do Brasil." 
Hofbauer em Domingues, Uma História não contada. 2003, pág.38 

    Ainda na obra de Domingues, consta o caso do padre Antônio Vieira (1608-1697), o mesmo dizia em Epifania de 1662; "Um etíope que se lava nas águas do Zaire fica limpo, mas não fica branco; porém na do batismo, sim, uma e outra coisa", com isso podemos dizer que essa afirmação, entre outras, o consagra como percursor do embranquecimento. Importante também de sua afirmação é a ideia de que o batismo serviria como um dispositivo central do supremacismo branco, sendo a conversão ao catolicismo talvez o primeiro conjunto axiológico bem definido ao buscar a redefinição do "mapa mental" do africano. Esse aspecto se refere à cultura, à negação dos africanos como portadores de cultura (típico dos processos de desumanização) e a imposição da cultura "superior". Francisco Soares Franco (1772-1844) articula a questão do desenvolvimento econômico e social com a necessidade de branquear o país, sua proposta no terreno racial consistia em;   

"[...] Mandar que todos os mestiços não possam casar senão com indivíduos da casta branca, ou índia, e se proibir sem exceção alguma todo o casamento entre mestiços e a casta africana; no espaço de duas gerações consecutivas toda a geração mestiça estará, para me explicar assim, baldeada na raça branca. E deste modo teremos outra grande origem de aumento da população de brancos, e quase extinção dos pretos e mestiços desta parte do mundo; pelo menos serão tão poucos que não entrarão em conta alguma nas considerações do legislador" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39 

    Essa perspectiva raciológica, identificando o africano como uma substância antitética à condição humana está no bojo então de um processo nacional da qual seu produto viria a ser o mestiço. A pena de Franco apresenta no começo do século XIX, o que o pincel de Modesto Brocos y Gómes com a Redenção de Cam nos apresentaria no final do mesmo século. Seguimos com Franco; 

"Os mestiços só conservam metade, ou menos, do cunho africano; sua cor é menos preta, os cabelos menos crespos e lanudos, os beiços e nariz menos grossos e chatos, etc. Se eles se unem depois à casta branca, os segundos mestiços têm já menos da cor baça, etc. Se ainda a terceira geração se faz com branca, o cunho africano perde-se totalmente, e a cor é a mesma que a dos brancos; às vezes ainda mais clara; só nos cabelos é que se divisa uma leve disposição para se encresparem" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39

    Até a metade do século XIX, essa tese é consensual, seja entre aqueles a favor ou contra a escravização dos africanos nos debates relacionados à questão da nacionalidade. Houve mesmo, ainda segundo Petrônio Domingues, quem propusesse que ao mesmo tempo em que o Brasil realizasse um movimento político no sentido de importar uma mão de obra branca da Europa exportasse de volta à África os africanos libertos. A proposta de deportação em massa do contingente africano, apesar de muito pouco explorado pela historiografia nacional, realmente teve relevância em correntes de opinião da elite branca nacional e esse fato explica porque o governo da Bahia, entre 1820 e 1868, expediu mais de 2.000 passaportes para de os libertos retornassem à África.

    Nessa curta descrição que operamos buscamos apresentar alguns tópicos fundamentais, porém normalmente ignorados nas pesquisas sobre a violência policial contra o africano diáspórico no Brasil. Assim como as interpretações sobre o racismo sobrepôs um evento histórico, holocausto judeu, a outro, escravização africana, estamos mais acostumados a tratar o racismo como um fenômeno ideológico do que histórico. Carlos Moore nos mostrou como, em realidade, o fenômeno racismo não precisou da criação da categoria raça (do italiano razza, mas que tem origem do latim ratio) para de expressar, que este fenômeno não é uma produção exclusiva da Europa. Não iremos nos aprofundar muito em sua tese dado caráter desta introdução, porém cabe trazer uma contribuição fundamental deste ao nosso projeto, a noção de que a invisibilidade e a naturalização do quadro de violência contra o africano diásporico no Brasil é fruto do racismo; 

"A insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo, ou coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros fenotipicamente parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus cachorros, mas não desenvolver qualquer sentimento de comoção perante o terrível quadro de opressão racial. Em toda a sua dimensão destrutiva, está opressão se constitui em variados tipos de discriminação contra os negros. Não há sensibilidade diante da falta de acesso, de modo majoritário, da população negra aos direitos sociais mais elementares como educação, habitação e saúde [...]" 

    O Racismo é um sistema de poder. O que mostramos até aqui foi exatamente isso, um sistema de poder que produz a morte ontológica e física no tempo. Um poder político, econômico, social e cultural (sendo a opressão cultural uma realidade mental, espiritual, física e material) e isso ocorre antes da ação da polícia, pois quando a mesma ocorre, não existe a necessidade de justificações maiores. 

BIBLIOGRAFIA 

Domigues, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Editora Senac. São Paulo, 2004.  

Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011 
Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.). Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4). 

Morrison, Toni. Jazz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

quinta-feira, 31 de março de 2016

O Conteúdo Racista nas Alucinações dos Brancos: o fenótipo do medo

O que é fantástico, o que é temível ao homem branco do ocidente? Esse texto visa apresentar como o medo branco do fenótipo negro é apresentando no sub texto das alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas a partir de uma leitura lateral do texto "No Limiar do Sono in: Mente Assombrada" de Oliver Sacks.

Por Miguel Angelo*


O etnólogo africano-cubano, Carlos Moore, fez o que talvez tenha sido uma das maiores contribuições para a compreensão do racismo na contemporaneidade. Pesquisando esse fenômeno através da história ele apresentou o argumento de que o racismo não é uma mera produção da ideologia, mas sim uma consciência historicamente determinada contra o fenótipo do negro. Com isso o racismo não é produto de uma sistematização de ideias e valores europeus, não tem uma relação de causa-efeito com o conceito biológico de raça, logo não é uma produção apenas europeia. Sem negar a importância que o conceito biológico de raça teve para a justificativa de negar a humanidade do africano ele sozinho não criou o fenômeno, mas sim é produto de um critério fenotípico que já ocorria em escala planetária. Povos atravessaram a história realizando conflitos decorrentes de diferenças fenotípicas e são essas diferenças que sempre foram levadas em conta nas atribuições de qualidades positivas e negativas entre os seres humanos. Sendo o racismo uma realidade histórica, uma realidade social, cultural desde a antiguidade, assombrando o imaginário social, como seria possível ele não se expressar nas alucinações do homem branco europeu?

A abordagem sobre a questão da produção alucinatória do homem branco europeu realizada por Sacks está em um enquadramento conceitual iluminista/racionalista, que apesar de ser particular, reclama universalidade. Dado que a visão eurocêntrica do mundo tem valor de norma em nossa sociedade, ou seja, está naturalizada, isso precisa ser sempre reforçado. Logo deve-se reconhecer que as alucinações de que Sacks fala, só podem ser pensadas como alucinações no contexto branco-europeu com seus valores e cultura o que equivale dizer que as categorias "alucinação", "sonhos", conceitos como "hipnagógicas" e "hipnopômpicas" não podem ser aplicadas aos mais diversos povos e culturas pois os conteúdos desses termos são particulares e historicamente determinados. Concordando com Moore não irei afirmar que a crença de atribuição negativa do fenótipo africano é apenas um produto intelectivo dos europeus, minha intenção é apenas a de observar que, em decorrência de uma consciência historicamente determinada social e culturalmente o europeu tem uma moral que leva em conta o fenótipo e, entre outros, o fenótipo africano está ligado à qualidades negativas. Vamos aos casos citados nesse texto de Sacks;

Nabokov tem uma alucinação com; "(...) um anão de feições grosseiras e avermelhadas com nariz ou orelhas inchados"

Andreas Mavromatis cita um caso em que um homem teve alucinações com rostos; "(...) Antes eram rostos fascinantemente feios. Eram humanos, mas pareciam animais, porém esses animais não tinham semelhantes na criação, e sua aparência era diabólica. [...] Ultimamente os rostos têm sido de uma beleza primorosa. Formas e traços de impecável perfeição agora sucedem uns aos outros em variedade e números infinitos."

Dr. D; "Era uma noite tranquila de verão. Acordei por volta das duas da manhã, como às vezes me acontece no meio da noite, e em pé ao meu lado estava um índio americano de quase dois metros de altura. Era um sujeito enorme, de músculos esculpidos, cabelos e olhos pretos. Percebi, aparentemente ao mesmo tempo, que se ele quisesse me matar não havia nada que eu pudesse fazer, e que ele não podia ser real. No entanto, lá estava ele, como uma estátua, mas vivíssimo. Minha mente trabalhou depressa: como ele poderia ter entrado na casa?...Por que estava imóvel?...Isto não pode ser real. No entanto, a presença dele me dava medo. Ele se tornou diáfano depois de cinco a dez segundos, vaporizou-se delicadamente até se tornar invisível".

Na mesma linha do Dr. D estão as alucinações de Spinoza e Allan Kardec no entender de Sacks, Spinoza com o temor de africanos e Kardec com alucinações envolvendo espíritos, fantasmas e etc.

Em todos os casos a questão fenotípica é presente e determina a qualidade da alucinação em experiência positiva ou negativa. Nabokov parece ter tido uma alucinação com uma representação típica de um gaulês (povo celta), Andres teve uma alucinação primeiro com fenótipos distintos do padrão que ele reconhece como próprios da humanidade e posteriormente com uma "beleza primorosa" que não deixa dúvidas quanto o fato de que ele se refere muito provavelmente à sua imagem no espelho. O Dr D. ficou horrorizado com a possibilidade de ver um "índio americano", Spinoza viu um "negro leproso do Brasil" e Kardec alucinando ou não atribuía a qualidade dos fenótipos à qualidade das entidades.

Para aprofundar no exemplo, vou focar no caso de Spinoza e no de Allan Kardec. Para o primeiro caso vou utilizar o artigo: "Um Certo negro brasileiro" um sonho político-filosófico de Spinoza de Nicolás Alberto González Varela e em seguida o artigo: "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" do próprio Kardec. Trabalhar esses dois exemplos será uma forma de argumentar que, como afirma Carlos Moore, a questão do racismo se concentra antes no fenótipo dado que na época de Spinoza ainda não existia o conceito de raça e no de Kardec ele já vigora. Perceberemos como o central do discurso, da percepção que atribui qualidades negativas ao africano, ocorre independente do conceito de raça. 

"Digo-lhe que não é caso raro, e posso confirmar que se passou comigo algo semelhante no inverno passado em Rijnsburg, que explicarei. Quando, uma manhã, despertava de sono muito pesado, o céu já clareando, as imagens que que vira no sonho apareciam ante mim, como se fossem coisas reais, em particular a aparição de um certo negro brasileiro leproso, que nunca vira antes. Esta imagem desaparecia quase por completo quando, para distrair-me com alguma coisa e manter-me ocupado, meus olhos fixavam-se num livro ou em outra coisa; se tirava os olhos desse objeto e não fixava minha atenção em nada de especial, por momentos reaparecia a imagem do etíope (Æthiopis), com igual intensidade anterior, até que se ia desvanecendo até desaparecer. O mesmo que aconteceu nos meus sentido internos deve ter ocorrido ao seu ouvido."

Trate-se uma carta de Spinoza escrita em 1664 em resposta à seu amigo Peter Balling que acabara de perder um filho e dizia ter tido alucinações com vozes e gemidos que pareciam anunciar a fatalidade.

Essa é única referência feita, de forma explícita, à instituição escravidão e à escravidão do negro em particular feita por Spinoza. Da mesma maneira que o Dr. D, nem Spinoza nem Balling teriam dúvidas da negatividade da experiência de ter uma alucinação com o fenótipo negro. O medo do ser humano de fenótipo africano é algo realmente concreto tanto a Balling, patrício médio e comerciante transatlântico, como ao filósofo que aplica termos altamente negativos aos africanos para o padrão da época "nigri" (negro) e etiope (do grego etiop; cara queimada). Kant e Hegel (esse último mais abertamente racista com a tese de que a África era um continente sem história) utilizavam os termos no mesmo sentido. É evidente que essa alucinação é produto do próprio sistema de crenças do filósofo, para ele produto de uma realidade objetiva, uma orientação "inquestionável" do quadro axiológico que viviam, segundo Varela; 

"A causa imediata do sonho pode ter sido alguma forma de delírio, mas o conteúdo do sonho – quer dizer, a imagem aterradora de uma colônia nativa de escravos e trabalhadores braçais em rebelião contra seus amos europeus – não podia ser explicado por causas puramente físicas, mas, sim, pela confusa consciência mental de Spinoza, do capitalismo holandês, da própria empresa colonial em si mesma, do sonho imperial de uma Hollandas-Brasilis, de uma grande Nova-Holanda e das representações dessa empresa em sua cultura, calvinista e liberal, no núcleo mais duro e mais reprimido da Ideologia holandesa".

Inegavelmente o escravismo atravessava de maneira transversal a vida de Spinoza, dado ser o negócio local de Amsterdã onde os judeus controlavam 20% do comércio até 1630. Seu irmão, Gabriel, tinha plantações de açúcar e empregava trabalho de africanos escravizados em Barbados. Apesar do ponto de Varela ser mais sugerir que Spinoza teve uma alucinação bem semelhante Balling, no sentido que a alucinação representava um mal presságio sobre a campanha holandesa para estabelecer uma colônia no Brasil, fazendo um diálogo com Sacks inclusive, e compreendendo, aparentemente o racismo como um fenômeno da ideologia (seguindo uma lógica marxista) meu ponto é o de que é a questão do fenótipo que marca a experiência alucinatória de Spinoza.

Voltemo-nos agora para Allan Kardec. Em "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" de 1862, seu ponto é incorporar o espiritismo no contexto científico e assim demonstrar que o que a ciência vigente não pode explicar o espiritualismo pode. A questão colocada é se o africano está condenado a ser "uma espécie de animal doméstico, preparado para a cultura do açúcar e do algodão" pura ou simplesmente ou se seria possível aperfeiçoar a "raça". Para Kardec, respeitando as teses do racismo científico, em termos de corpo biológico é impossível aperfeiçoar o negro, de acordo com a frenologia materialista, mas para a frenologia espírita isso seria possível dado que de acordo com as reencarnações, em uma determinada etapa, o ser que antes possuiu o fenótipo negro pode vir a reencarnar no fenótipo do europeu. 

"(...) Por assim dizer, essa questão é resolvida pela precedente: apenas temos que deduzir algumas consequências. Elas são perfectíveis para o Espírito que se desenvolve através de suas várias migrações, em cada uma das quais adquire pouco a pouco as faculdades que lhe faltam; mas, à proporção que essas faculdades se ampliam, necessita de um instrumento apropriado, como uma criança que cresce precisa de roupas maiores. Ora, sendo insuficientes os corpos constituídos para o seu estado primitivo, necessitam encarnar em melhores condições, e assim por diante, à medida que progridem."

Seguindo a lógica de Hegel em "História da Filosofia" a África seria a terra da criancice. A humanidade encontra sua forma evoluída e acabada, na sua orientação teleológica, no caucasiano europeu;

"Assim, as raças são perfectíveis pelo corpo, pelo cruzamento com raças mais aperfeiçoadas, que trazem novos elementos, aí enxertando, por assim dizer, os germes de novos órgãos. Esse cruzamento se faz pelas migrações, as guerras e as conquistas. Sob esse ponto de vista, há raças, como há famílias, que se abastardam, se não misturarem sangues diversos. Então não se pode dizer que haja raça primitiva pura, porquanto, sem cruzamento, essa raça será sempre a mesma, pois seu estado de inferioridade se prende à sua natureza; degenerará, em vez de progredir, o que resultará no seu desaparecimento, ao cabo de certo tempo." [destaque do autor]

Seria então com o contato, com a transmissão via cruzamento que a tal "raça primitiva" iria se alterar, mas não necessariamente se aperfeiçoar. Está bem em evidência que o fenótipo é a marca da inferioridade natural para Kardec;

"Por isso as raças selvagens, mesmo em contato com a civilização, permanecerão sempre selvagens; porém, à medida que as raças civilizadas se espalham, as selvagens diminuem, até desaparecerem completamente, como aconteceu com a raça dos Caraíbas, dos Guanches e outras. Os corpos desapareceram; quanto aos Espíritos, em que se transformaram? Muitos deles, talvez, se encontrem entre nós (...)

(...) Em resumo, o homem atual quer compreender. O princípio da reencarnação ilumina o que estava obscuro. Eis por que dizemos que este princípio é uma das causas que faz com que o Espiritismo seja acolhido favoravelmente."

O artigo de Kardec nos dá uma visão bem acabada do fenômeno racismo. Sua posição expressa que o racismo anti-africano está também no que Sacks chama de dimensão alucinatória já presente no sub texto de seu texto.

Referências:


Kardec, Allan. Frenologia Espiritualista e Espírita. Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano V, Abril de 1862. Número 4. 


Moore, Carlos. Racismo & Sociedade. Novas bases epistemológicas para a compreensão do racismo na História. Belo Horizonte. Mazza Edições, 2007.


Sacks, Oliver. No Limiar do Sono in: Mente Assombrada. São Paulo, Companhia das Letras.


Varela, Nicolás González Varela. Racismo & Filosofia. “Cierto negro brasileño leproso”. Sobre un sueño de Spinoza. Copyleft 2013.


*Miguel Angelo é estudante de Saúde Pública na FSP-USP, membro fundador da Frente Negra Grajaú, e membro do Comitê Contra o Genocídio do Povo Preto e Periférico - SP.