Mostrando postagens com marcador direitos civis. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador direitos civis. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Trechos do livro: Quando a África Despertar – Hubert Harrison

Este livro, apesar de pequeno, abrange muitos assuntos de uma perspectiva radical, comprometida e com os pés no barro, pois aborda temas como a primeira guerra europeia da perspectiva racial tanto quanto fala sobre as contradições do movimento ‘compre preto’; desmascara o movimento organizado dos trabalhadores brancos e também incentiva a valorização da mulher preta e do jovem preto; trata sobre nosso elo imperecível com a África tanto quanto não deixa de salientar que temos problemas a tratar aqui; resolve a questão cunhada em nosso tempo como ‘colorismo’ e também critica as velhas lideranças pretas; defende a política preta de Raça Primeiro e nos mostra que o mundo não-branco age sempre a partir da raça; advoga a rebelião preta para cessar com a invasão estadunidense no Haiti e também faz resenhas de livros, entre tantos outros assuntos de seu tempo e além. (pág.30)

(...)

No plano pessoal, Hubert Harrison deixou sua esposa irene e seus cinco filhos para trás. No campo político, Harrison deixou um escopo bem definido para a nova movimentação preta. Como legado à posterioridade, deixou as ferramentas de luta política preta utilizada por um amplo espectro de lutadores pretos, desde o movimentos pelos direitos civis radicais e moderados até Malcolm X e sua notável utilização das ruas do Harlem como púlpito. Ao movimento Pan-Africanista Nacionalista, deixou bem fundamentado o conceito Raça Primeiro, da autodeterminação preta, da cooperação entre povos de cor do mundo, da excelência cultural e intelectual preta e da autodefesa armada preta. (P.34)

(Prefácio: Ammit Garvey em Quando a África Despertar- Hubert Harrison, Editora Filhos da África, 2020) 

***

(...)

Uma cura para a Ku-Klux.

Foi na cidade de Pulaski, no condado de Giles, Tennessee, que a Ku-Klux Klan original foi organizada na última parte de 1865. A guerra mal havia sido declarada oficialmente terminada quando os covardes "caipiras", que não podiam vencer os ianques, começaram a se organizar para tirar vantagem dos Negros. Eles aprovaram leis declarando que qualquer homem preto que não pudesse mostrar trezentos dólares deveria ser declarado vagabundo; que todo vagabundo deve ser posto a trabalhar nos serviços públicos de suas cidades; que três Negros não deveriam se reunir a menos que um homem branco estivesse com eles, e outros métodos foram usados conforme necessário para manter a "supremacia branca". Quando o congresso nacional se reuniu em dezembro de 1865, olhou para essas tensões leves com um olhar hostil e, já que nada menos que a re-escravização dos Negros poderia satisfazer os "caipiras", mantiveram eles fora do congresso até que concordassem em fazer algo melhor. Descobrindo que eles eram teimosos, o congresso aprovou a 14ª e 15ª emendas e colocaram os estados “caipiras” sob regime militar até que aceitassem as alterações. O resultado foi que o Negro obteve o voto como proteção contra “as pessoas que o conhecem melhor”.

Enquanto isso, a Ku-Klux, depois do rompante sob a liderança daquele traidor, o general Nathaniel B. Forrest, foi derrubada - nocauteada, como se pensava. Hoje, depois que o Negro foi despojado da proteção do voto pela conivência de republicanos brancos em Washington e democratas brancos no sul, a Ku-Klux ousa levantar sua cabeça feia em seu estado ancestral do Tennessee. Desta vez, eles querem aumentar o excelente tipo de democracia que todos os editores covardes sabem que os Negros estavam recebendo quando lhes era pedido para que fossem patrióticos. A Ku-Klux irá matá-los e submetê-los à tortura e terrores antes que eles mostrem suas feridas e solicitem o voto como recompensa.

Nesta crise, o que os "líderes" Negros têm a dizer em nome do seu povo? Onde está Emmet Scott? Onde estão o Sr. Moton e o Dr. Du Bois? O que a NAACP fará além de escrever cartas frenéticas? Tememos que eles nunca possam ultrapassar o nível da apelação. Mas suponha que o Negro comum do Tennessee decida participar do jogo? Suponha que ele deixe saber que, ao tirar a vida de qualquer soldado ou civil Negro, dois “caipiras” morrerão? Suponha que ele os informe que será tão caro matar Negros quanto é matar pessoas reais? Então, de fato, a Ku-Klux seria enfrentada em seu próprio terreno. E porque não?

Todas as nossas leis, mesmo no Tennessee, declaram que linchamento e racismo são crimes contra a pessoa. Todas as nossas leis declaram que as pessoas individualmente ou em grupos têm o direito de matar em defesa de suas vidas. E se a Ku-Klux impede os oficiais da lei de fazer cumprir essa lei, cabe aos Negros ajudar os oficiais, fazendo cumprir a lei por conta própria. Por que eles não deveriam fazer isso? Chumbo, aço, fogo e veneno são tão potentes contra os “caipiras” quanto aos alemães, e vale lutar pela democracia no Tennessee tanto quanto nas planícies da França. Se os Negros do sul não reconhecerem essa verdade, ninguém mais a reconhecerá por eles. (pp. 77,78,79)

Quando a África Despertar - Hubert H. Harrison

Capítulo III - O Negro e a Guerra.

Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2020. 1ª edição. 215 Páginas.

 [agora em A nova consciência da Raça]

 (...)

Nos bons e velhos tempos, os brancos derivavam seu conhecimento do que os Negros estavam fazendo através daqueles Negros mais próximos deles, geralmente seus próprios expoentes selecionados da atividade dos Negros ou do seu ponto de vista branco. Uma ilustração clássica desse tipo de conhecimento foi fornecida pelo Partido Republicano; mas a Igreja Episcopal, a Liga Urbana ou o Governo dos EUA também serviriam. Hoje o mundo branco é vagamente, mas inquietantemente, ciente de que os Negros estão acordados, diferentes e desconcertantemente incertos. No entanto, o mundo branco pelo qual estão cercados mantém seu método tradicional de interpretar a massa pelo Negro mais próximo de si em afiliação ou contrato. O partido socialista insiste em pensar que a “inquietação” agora aparente nas massas Negras se deve à propaganda que seus adeptos apoiam e acredita que essa revolta funcionará em grande parte nos moldes do pensamento político socialista. Os grandes jornais, preocupados principalmente com a tarefa escolhida de serem os mensageiros mentais da multidão, gritam “propaganda bolchevista” e se lisonjeiam por terem encontrado a verdadeira causa; enquanto os agentes não confiáveis do governo a encaram como “deslealdade”. A verdade, como sempre, pode ser encontrada nas profundezas; mas aí estão todos impedidos de passar pela preguiça mental, pelo desprezo tradicional e fraqueza com que homens brancos na América, de estudiosos como Lester Ward a palpiteiros como Stevenson, decidem considerar uma população de cor de doze milhões.

Em primeiro lugar, a causa do “radicalismo” entre os Negros americanos é internacional. Mas é necessário estabelecer distinções claras desde o início. A função da igreja cristã é internacional. Assim como a arte, a guerra, a família, a alienação e a exploração do trabalho. Mas nada disso possui o direito especial de ampliar o manto de seu próprio “internacionalismo” peculiar para cobrir o caso atual do descontentamento dos Negros – embora isso tenha sido constantemente tentado. O fato internacional ao qual os Negros na América estão reagindo agora não é a exploração de trabalhadores pelos capitalistas; mas a sujeição social, política e econômica dos povos de cor pelos brancos. Não é a linha de classe, mas a Linha de Cor, que é a expressão incorreta, embora aceita, a Linha Pétrea da inferioridade racial. Esse fato é um fato na consciência dos Negros e também nas dos outros. A Linha de Cor Internacional é ambos, a prática e a teoria, dessa doutrina que sustenta que os melhores quadros da África, China, Egito e Índias Ocidentais são inferiores aos piores quadros da Bélgica, Inglaterra e Itália e devem manter suas vidas, terras e liberdades sob os termos e condições que a raça branca decidir conceder.

Hubert Harrison - Quando a África Despertar.

Capítulo VI.

 [mais sobre Raça Primeiro]

(...)

Agora que seu partido encolheu consideravelmente em apoio popular e apreço popular, eles estão dispostos a defender nossa causa. (...) Enquanto eles estavam se recusando a diagnosticar nosso caso, nós mesmo o diagnosticamos e, agora que prescrevemos a cura – Solidariedade Racial – eles vêm até nós com sua prescrição – solidariedade de classe. É tarde demais, senhores! ... E se você é simplório o bastante para acreditar que aqueles, dentre nós, que atendem aos seus interesses à frente dos nossos, têm algum monopólio do intelecto ou da informação ao longo das linhas da aprendizagem moderna, então vocês são, realmente, monumentais idiotas. (...) Falamos Raça Primeiro, porque vocês insistiram o tempo todo em Raça Primeiro e classe depois quando não precisavam de nossa ajuda. ...pp.139-130(...)

Durante a recente guerra mundial [1914-1918], ensinou-se aos Negros da América que, enquanto os brancos falavam em patriotismo, religião, democracia e outros temas, eles permaneciam leais a um conceito acima de todos os outros, e esse era o conceito raça. Mesmo no meio da guerra e nos campos de batalha da França, havia “raça primeiro” entre eles. p.132(...)

Mas vamos nos aproximar de casa. (...) Você encontrará um Harlem Negro Renascido, com empresas e arranjos culturais...

Todas essas coisas são produtos recentes do princípio de “Raça Primeiro.” Entre elas, a maior é a Universal Negro improvement Association (Associação Universal para o progresso do Negro), com seus órgãos associados, a Black Star Line (Linha Estrela Preta) e a Negro Factories Corporation (Corporação de Fábricas do Negro). Nenhum movimento entre os Negros americanos, desde a abolição da escravidão, alcançou essas proporções gigantescas. (p.134)

 (Quando a África Despertar – Hubert Harrison, Editora Filhos da África, 2020.)

  [orientação de busca constante por conhecimento]

Orientamos às massas de nosso povo: Leia! Adquira o hábito de leitura; gaste seu tempo livre não treinando tanto os pés para dançar, como treinando a cabeça para pensar. E, desde o início, trace a linha entre livros de opinião e livros de informação. Sature suas mentes com estes últimos e você formará suas próprias opiniões, que valerão dez vezes mais do que as opiniões das maiores mentes da Terra. Vá para a escola sempre que puder. Se você não puder ir durante o dia, vá à noite. Mas lembre-se sempre de que a melhor faculdade é aquela em sua estante de livros: a melhor educação é aquela em sua mente. (...) e se nós, da raça Negra, pudermos dominar o conhecimento moderno – do tipo que conta – seremos capazes de conquistar, por nós mesmo, os inestimáveis presentes da liberdade e do poder, e seremos capazes de defende-los contra o mundo. Hubert Harrison. P.184.

 



 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Kenneth Kaunda: Entrevista com o Presidente da Zâmbia (1973)

À medida que a tensão aumenta no sul da África, o primeiro-ministro da Zâmbia, Kenneth Kaunda, conversa com o Novo Internacionalista sobre o bloqueio da Rodésia; a crise racial no continente; e os principais problemas enfrentados pela própria Zâmbia.

Entrevista por David Martin.

 Discurso parte da seleção trazida por Fuca, Insurreição CGPP: 

Palavras de Independência da África II: Nkrumah, Olympio, Keita e Kaunda. (Pdf aqui) ou no link: https://drive.google.com/file/d/1It8Mjb-riPZAuG7gDUOzu15QJ23GJ_Oz/view?usp=sharing 


David Martin: Smith, da Rodésia, impôs um bloqueio econômico à Zâmbia. Que efeitos isso terá na economia do seu país?

Kaunda: Bem, vou começar dizendo ao contrário, pois, em minha opinião, se o Sr. Smith soubesse o que isso significaria para a economia, ele não o faria. Para nós, nossa política tem sido muito clara: diversificar nossas fontes de importações e exportações distanciando dos rebeldes do sul racialista para a África independente no norte. Desse modo, estamos tratando esse bloqueio como uma oportunidade de ouro. Fomos colocados em uma posição em que estamos mostrando que somos mais fortes do que jamais imaginamos. Portanto, embora tenhamos que fazer alguns esforços, pouco dano será causado à nossa economia, desde que, obviamente, todos possamos trabalhar duro.

D.M.: O Sr. Smith decidiu isentar o cobre do bloqueio. Você respondeu recusando-se a aceitar esta concessão. Esta foi uma decisão política inevitável ou você estava ciente do fato de que existiam alternativas?

Kaunda: Para começar, sabíamos que o Sr. Smith estava fazendo o jogo político, além de um jogo econômico. Político no sentido de que ele queria mostrar ao governo britânico que não iria mexer com a economia, pois isso traria mais a ira do governo britânico. E segundo, ele estava jogando um jogo econômico no que diz respeito a seus próprios seguidores na Rodésia: porque eles sabem tão bem quanto nós que não podem operar ferrovias da Rodésia sem o nosso cobre; e pedir-nos para subsidiar sua ferrovia e ao mesmo tempo recusar-se a transportar nossas importações é pedir muito a qualquer ser humano. Nós pensamos sobre isso e decidimos que não jogaríamos o jogo dele e, inevitavelmente, jogamos do nosso jeito. Eu acho que é um desastre econômico para a Rodésia.

D.M.: É bastante claro que a Rodésia sofrerá mais a longo prazo do que a Zâmbia. Mas corta suas rotas comerciais do sul. Das cerca de 1.000.000 toneladas de importações, cerca de 700.000 toneladas vieram de sua fronteira sul com a Rodésia. Você acha que existem rotas comerciais alternativas viáveis no momento? Em caso afirmativo, quais são elas?

Kaunda: Não tenho dúvidas de que encontraremos alternativas adequadas e já estivemos em contato com vários países africanos irmãos - Malawi, Tanzânia, Quênia e Zaire. Todos eles responderam favoravelmente e agora é uma questão de elaborar os detalhes. Os ministros visitarão todos esses países para alinhar os detalhes. Então, apesar de tudo, estou muito satisfeito que, embora possamos ter dificuldades iniciais, estamos em uma posição muito forte. Serão encontradas rotas alternativas e eu gostaria de me concentrar nas rotas que terão alguma permanência e não naquelas apenas emergenciais.

D.M.: A ferrovia da Tanzânia na Zâmbia deve chegar a Kapiri Mposhi até março de 1974. Dado esse fato e sua decisão de boicotar a Rodésia no que diz respeito às exportações de cobre, estou correto ao supor que você decidiu, de uma vez por todas, interromper as comunicações da Zâmbia com o sul?

Kaunda: Eles teriam que trabalhar muito para que voltássemos. No momento, não sei o que eles podem fazer para nos levar de volta para lá. Como você sabe, o comércio com a África do Sul aumentou após a UDI [Declaração Unilateral de Independência da Rodésia- (Rodésia do Sul)]. Tínhamos que encontrar fontes alternativas e, como membros leais das Nações Unidas (ONU), tivemos que forçar apesar das dificuldades. Mas, é claro, isso significava que tínhamos que aumentar o comércio com a África do Sul enquanto deslocássemos da Rodésia. Isso significa um problema agora para nós, porque teremos que trabalhar muito para encontrar fontes alternativas à África do Sul, mas, devido ao trabalho duro e à cooperação de nossos amigos, poderemos encontrar essas fontes alternativas. Permita-me acrescentar que prefiro descobrir o que nossos amigos podem produzir, dentro de seus próprios países, antes de começarmos a obter fontes alternativas.

D.M.: Eu realmente quis dizer, em vez de romper o comércio, que pode levar mais tempo, romper totalmente com as rotas através do sul da África. Se necessário, os bens sul-africanos poderiam ser trazidos através de Dar es Salaam, Lobito e Nacala.

Kaunda: Penso que em termos de comércio sul-africano virá por via aérea, ou possivelmente pela baía do Lobito, em Angola, ou Nacala, em Moçambique, se os portugueses continuarem restringindo. Mas em termos de ferrovias da Rodésia, espero que seja a última vez que as utilizemos.

D.M.: Os tanzanianos deixariam você levar mercadorias da África do Sul através de Dar es Salaam se você precisasse, mas você não pediria que fizessem isso?

Kaunda: Eu preferiria não. Eu não gostaria de constrangê-los. Eu procuro acreditar que o comércio atual que temos com a África do Sul é de natureza temporária. Eu gostaria de encontrar outras fontes alternativas. A situação do sul da África está se tornando cada vez mais explosiva e seria estupidez da nossa parte confiar nas fontes comerciais desses países.

D.M.: O Sr. Smith disse que queria uma garantia sua de que você não apoiaria mais os movimentos de libertação do Zimbábue. Qual a sua resposta para isso?

Kaunda: Nós, na Zâmbia, sempre dissemos que, se o Sr. Smith quer nossa cooperação que vá ao povo da Rodésia como um todo com base no voto e, se ele for eleito, então ficaremos felizes em recebê-lo aqui na Zâmbia, porque para nós sua cor é imaterial. Contudo, o sistema que ele está usando lá que está errado e nunca podemos nos encontrar cooperando com esse tipo de sistema. Nós não podemos. É uma questão de princípio profundamente enraizado.

Eu coloquei de outra maneira. Já disse, se encontrássemos uma pequena minoria negra oprimindo a maioria branca em qualquer lugar do mundo, apoiaríamos a maioria branca contra a minoria negra. Portanto, o Sr. Smith me pediu para me livrar dos representantes dos combatentes da liberdade que têm escritórios em Lusaka… onde mais eles encontrarão a oportunidade de falar e informar o resto do mundo sobre a opressão que ocorre na Rodésia? É tudo o que estamos fazendo e se ele pensa que pode nos intimidar para parar de apoiar o que é espiritualmente, moralmente, politicamente e economicamente justificável. Ele está falando com a pessoa errada. Não podemos parar.

D.M.: Algumas pessoas acreditam que tudo o que o Sr. Smith conseguiu foi empurrá-lo para uma decisão que você poderia ter tomado há algum tempo atrás ou teria tomado em um futuro muito próximo. Você acha que isso é verdade?

Kaunda: Eu diria que ele nos deu uma oportunidade de ouro, uma verdadeira oportunidade de ouro, porque é embaraçoso para nós ter que lidar com o senhor Smith. Não há dúvida sobre isso. Temos que usar o coque de seu país. Infelizmente, temos a hidrelétrica (Kariba Power), um projeto conjunto que herdamos dos dias federais. Existe, é fato, e não há nada que possamos fazer sobre isso. Mas em todas as áreas em que podemos nos permitir, não queremos ter nada a ver com o regime de Smith. Eles estão em rebelião contra a coroa britânica. Eles estão em rebelião contra a humanidade e tudo o que é sensato e com princípios. Não gostamos de lidar com eles e foi nossa posição geográfica que nos fez lidar com eles no passado. Mas eles tomaram uma decisão para nós, por isso demos sorte. Chegou um pouco antes do que teríamos feito, mas é muito bem-vindo.

D.M.: Observando as lojas aqui em Lusaka, notei uma quantidade incrível de artigos de luxo - o tipo de coisa que você não encontraria na Tanzânia. Você acha que um efeito desse bloqueio será que a Zâmbia será muito mais inflexível no futuro em relação às importações?

Kaunda: Sempre acreditei que tivemos aqui o que gosto de chamar de começo falso. Baseamos nossas necessidades como nação nas necessidades de uma pequena população de expatriados. É certo que eles estavam no controle aqui. A coisa toda tinha sido feita de tal maneira que, quando assumimos o controle, adquirimos esses gostos e valores estrangeiros. Temos insistido constantemente nesse ponto, mas não foi fácil mudar os gostos de nosso povo. Existe o perigo aqui de que isso possa se tornar uma característica permanente de nossas vidas. Isso não seria muito compatível com o humanismo e o humanismo lida com o homem e é o homem sem distinção. E, portanto, estamos nos enganando se pensarmos literalmente que imitando hábitos e gostos de expatriados estamos sendo civilizados. É uma maneira muito estúpida de ver as coisas e receio que o que você encontrou em nossas lojas aqui seja o peso que um pequeno grupo bem organizado pode ter sobre o povo. Para mim, começa a cheirar a desastre.

D.M.: Surgindo do bloqueio da Rodésia, você acredita que há algo que o governo britânico poderia ou deveria fazer?

Kaunda: Eu sempre disse que a coisa certa para o governo britânico quando a UDI [Declaração Unilateral de Independência da Rodésia] foi declarada era mover tropas e isso teria evitado derramamento de sangue. Receio ter sido mal compreendido - as pessoas pensavam que eu estava com sede de sangue e queria ver derramamento de sangue na Rodésia. Na verdade, eu disse que é melhor um governo legítimo assumir o controle e usar uma pequena camarilha de rebeldes, pois estabelece sua autoridade e desenvolve a Rodésia em direção a uma sociedade não racial, em vez de permitir que se desenvolva uma situação em que os africanos rodesianos se tornem tão irritados que começarão a se comportar igual os Mau Mau.

Receio que possamos estar testemunhando agora o início de um confronto racial no sul da África, não apenas na Rodésia. Se o governo britânico tivesse tomado medidas para conter essa rebelião, poderíamos ter contido esse pequeno grupo de pessoas - violentas. Mas o que acho que agora estamos testemunhando aqui é o começo de um holocausto racial. Não sei o que o governo britânico pode fazer agora, mas espero o que disse tantas vezes - se eles não responderem ao chamado de suas responsabilidades, eles receberão grande parte da culpa, porque, na minha opinião, estamos realmente caminhando para um desastre no sul da África.

Se você me fizer essa pergunta em termos do que eles podem fazer no que diz respeito à Zâmbia eu lhe direi que quaisquer dificuldades econômicas que soframos aqui podem ser colocadas diretamente sobre os ombros do governo britânico e eles têm o dever de responder. Quando estivermos prontos, espero que apresentemos detalhes de nossos custos e o governo britânico deve arcar com esse custo para a economia da Zâmbia.

D.M.: O primeiro-ministro da Suécia, Palme, examinou o Zambeze no ano passado e observou que era uma barreira da decência humana. Ao mesmo tempo, considerou-se que a Zâmbia precisava de rotas ao sul, isso inibia os movimentos de libertação, por exemplo, a FRELIMO, e a possibilidade de explodir a linha ferroviária de Biera. Ao mesmo tempo, teme-se que o Zambeze seja a linha de frente de uma possível guerra racial. Você acha que esse bloqueio e seu desligamento aproximaram ainda mais esse potencial confronto?

Kaunda: Não há dúvida de que a situação é explosiva. Tem sido construída ao longo de um período e se explodirá ou não, depende inteiramente dos caprichos dos colonos de Angola, Moçambique, Rodésia, Namíbia e África do Sul. Nós não somos agressivos. Não queremos destruir nada. Não queríamos construir exércitos aqui que invadissem esses países. Nossas pequenas forças de segurança são para defender a Zâmbia. Não pretendemos mudar nossa política. Mas se alguém vir nos atacar aqui, então posso garantir que muitas pessoas estão prontas para sacrificar suas vidas em defesa do que é o desejo de toda pessoa - liberdade, paz e justiça. A explosão ou não da situação depende, portanto, do que os colonos farão. Não tomaremos medidas agressivas. São eles que estão agindo de forma agressiva contra nós.

D.M.: Uma das coisas que gostaria que você descrevesse é a base da política externa da Zâmbia - as diretrizes pelas quais você opera.

Kaunda: É baseado nos mesmos princípios nos quais baseamos nossas políticas domésticas. Nossa política externa é baseada na apreciação de que a pessoa de Deus é importante, sem distinção de sexo, status, credo, religião, cor ou raça. O ser humano é importante. Kaunda deve aceitar enquanto ser humano que as coisas que ele deseja para si também são desejadas por outras pessoas para elas mesmas.

Elas querem amor pela pessoa humana - eu quero ser amado e, portanto, tenho certeza de que outras pessoas querem ser amadas - elas querem paz, liberdade e justiça.

Tenho certeza de que outras pessoas querem as mesmas coisas e, portanto, gostamos de dizer que, na medida do possível, humanamente devemos fazer com outras nações e pessoas o que gostaríamos que elas fizessem conosco. Você pode ver de onde tudo isso vem - não é um ensinamento novo. É algo da Bíblia, dos ensinamentos de Jesus Cristo. Isso é simples, mas difícil. Você percebe o porquê, quando algo acontece, nossa primeira pergunta não é quem já fez isso, mas se isso é certo, é honesto, é justo. Se a resposta for não, não importa quem tenha feito isso, nós o condenaremos, assim como a ação tomada. Desde que nos tornamos independentes, e mesmo antes, condenamos a presença americana no sudeste da Ásia. Condenamos todas essas medidas tomadas pelos americanos contra pessoas inocentes. Acho que os americanos acreditavam que éramos quase patologicamente contra eles até os russos invadirem a Tchecoslováquia. Nós éramos uma das poucas nações pequenas que disseram, e insistiram até agora, que essa era a invasão em um país independente. Os russos não tinham o direito de estar lá e dissemos isso sem medo. Esta é a base da nossa política externa: se não podemos ter amigos permanentes - muito bem. Mas não queremos ter inimigos permanentes. O que queremos é ajudar a construir pontes entre nações, continentes e pessoas. Acreditamos que essa é a tarefa de qualquer nação, grande ou pequena.

D.M.: Eu acho que é justo dizer que existe uma tendência na África de projetar os aspectos mais evidentes da política externa para países fora do continente. Por exemplo, durante a recente decisão racial de expulsar asiáticos de Uganda, apenas você e o Presidente Nyerere se manifestaram contra. Hoje, muitas pessoas estão sendo assassinadas em Uganda. No Burundi, pelo menos 50.000 pessoas foram abatidas no ano passado e, novamente, ninguém falou. Você não acha que, para sua própria credibilidade, a África deve começar a se manifestar e agir com mais firmeza nas coisas que acontecem dentro de sua própria área?

Kaunda: Temos alguns problemas em questões como essa. A primeira é a falta de fontes oficiais de informação. Em geral, as pessoas que nos fornecem informações sobre questões desse tipo são pessoas cujos motivos suspeitamos e, portanto, quando não temos representantes próprios, como em Burundi ou Uganda, temos poucas informações acuradas. No caso do Burundi, não tínhamos informações. Tudo o que sabíamos era que havia uma revolta. Em Uganda, condenamos a abordagem racial porque pudemos ver claramente o que estava acontecendo. Mas quando ouvimos dizer que o Chefe de Justiça em Uganda foi tirado de seu posto, fomos informados de que alguns soldados rebeldes o levaram. É claro que ninguém pode acreditar nisso, mas há confusão sobre o que está acontecendo. Torna muito difícil encontrar uma base sólida sobre a qual fazer julgamentos. Mas onde temos algo claro, não hesitaremos em dizer o que pensamos.

D.M.: Seu documento 'Humanismo na Zâmbia' é aceito como orientação política na Zâmbia da mesma maneira que a 'Declaração de Arusha' na Tanzânia. Você poderia explicar as razões pelas quais escreveu o documento, incluindo o momento e os pontos principais?

Kaunda: Primeiro de tudo o tempo. Tivemos que introduzi-lo em 1967 por várias razões. Penso que o mais importante é que, se tivéssemos produzido esse tipo de humanismo antes da Independência, a Independência da Zâmbia talvez não tivesse visto a luz do dia. Ainda hoje as pessoas confundem humanismo com comunismo. O que teria acontecido se tivéssemos introduzido isso antes da Independência? Portanto, o momento foi em 1967, como em muitas outras coisas, foi um fator importante. Nós o apresentamos depois que tivemos tempo de atuar e as pessoas sabiam quem nós éramos. Não se esqueça também de que, quando nos tornamos independentes, instituições importantes como o exército, a polícia, a força aérea, a igreja, os negócios e a indústria, a agricultura, eram todas controladas por expatriados.

O ponto central da filosofia é o humano em tudo o que fazemos. Não queremos colocar nada acima do humano. Acreditamos que quando você pensa em termos de ideologia sem um humano, não há ideologia. Não há riqueza sem o humano. Então a pessoa é o fator chave em tudo o que fazemos. Em toda a criação de Deus, acreditamos que o ser humano é central. A partir daí, todo tipo de política é elaborado. Se são políticas econômicas, não queremos a exploração do homem pelo homem. Estamos caminhando para uma situação em que todas as formas de exploração do homem pelo homem são removidas. É uma longa jornada, mas começamos. Políticas externas, políticas sociais e outras são ditadas a partir desse ponto. Estamos começando com educação gratuita, serviços de saúde gratuitos. Ainda não significa que todos tenham a chance de ir à escola, mas se tivéssemos adiado mais a decisão, teríamos nos metido em mais problemas. Essa questão de classe teria surgido. Todas as nossas políticas vêm da importância do homem na sociedade.

D.M.: Por que o humanismo em oposição ao socialismo?

Kaunda: Bem, isso tem a ver com algumas das coisas que ocorreram na história. Acreditamos que o humanismo é mais abrangente que o socialismo. O socialismo, na minha opinião, é principalmente uma maneira de organizar sua economia e sociedade como um todo. Você quer principalmente colocar os meios de distribuição e produção nas mãos do povo. Mas não transmite o mesmo significado que o humanismo. Às vezes vemos países socialistas que colocam a ideologia acima do homem. Acreditamos que isso está errado e o conceito deve ser trazido à tona - esse conceito da importância do homem. A única maneira de fazê-lo foi nomeando nossa filosofia como humanismo. O socialismo parece ser mais limitado na compreensão e apreciação da importância do homem.

D.M.: A mais recente das medidas contínuas desde 1967 é uma ética de liderança impedindo os líderes de fazer certas coisas. Por que se tornou necessário neste momento? É porque os líderes estão se favorecendo?

Kaunda: Deveríamos ter feito isso em 1970. Criamos um comitê sobre a questão do código de liderança. Mas por causa das divisões no partido, no governo e na Assembleia Nacional, bem como no país como um todo, tive que adiar isso. Agora acredito que é a hora certa, porque a liderança do partido está mais unida após a saída de certos elementos do partido. Agora é um partido muito mais feliz, mais forte e mais unido. Todas as qualidades que se gostaria de ver na liderança agora estão surgindo novamente como estavam na Independência. Não há dúvida de que alguém sentiu líderes se favorecendo cada vez mais. Não é simplesmente culpa deles. Essas pessoas haviam desistido de tudo o que tinham na vida antes da independência. Enquanto alguns estavam trabalhando para o governo colonial, essas pessoas estavam ocupadas lutando pela independência. Elas tiveram problemas porque não apenas foram obrigadas a cuidar de suas famílias e famílias extensas, mas também de seus amigos. Isso significava que a própria segurança delas era uma preocupação para elas.

D.M.: Acredito que a ética impedirá que os líderes sejam donos de empresas, fazendas acima de 25 acres e casas para alugar.

Quando entrará em vigor?

Kaunda: Dentro de cinco anos, ninguém poderá ter casas para alugar no país. Estou trabalhando em um documento que abordará toda a questão e o código entrará em vigor muito antes de cinco anos se esgotarem.

D.M.: Terá uma qualificação para a eleição parlamentar ainda este ano que você já cumpriu o código?

Kaunda: Sim, será um fator muito importante para determinar quem se tornará um deputado.

D.M.: Você tem um problema que é sentido em outros lugares no continente de um grupo de elite dos centros urbanos e universidades que se colocam acima do homem comum?

Kaunda: Essa é uma das coisas que me deixa muito triste. A ideia de que um homem que ontem foi oprimido não pode ter a coragem moral e espiritual de enfrentar a tentação. Isso me confunde e às vezes me entristece. Devo admitir, isso me irrita. Essa abordagem elitista da vida é um câncer que deve ser combatido. Receio que aqui na Zâmbia algumas pessoas nem sequer acomodam seus próprios pais em seus próprios lares porque não os consideram como material humano adequado para se viver. Outros gostariam de ter escolas, hospitais etc separados para eles e para seus filhos. Eles acham que são uma classe separada. Isso é um pecado - para essas pessoas oprimidas se voltarem contra seus semelhantes, quererem estabelecer outro regime opressivo. Vamos lutar e o código de liderança é uma maneira.

D.M.: Na maioria dos países africanos, a chamada elite buscou manter seus altos salários e seus diferenciais, aumentando em vez de diminuir a diferença entre os camponeses. Entre 50% e 75% da renda monetizada termina nos bolsos da elite. Aqui na Zâmbia, os salários dos trabalhadores das minas aumentaram 50%, de 1964 a 1968, enquanto, ao mesmo tempo, a capacidade de ganho do camponês rural aumentou apenas 4%. Que medidas você está tomando para deter essa tendência?

Kaunda: Essa é uma pergunta muito difícil (e, a propósito, os trabalhadores das minas estão negociando por mais este ano). Não há dúvida de que muito foi feito nas áreas rurais. Mas as 'duas nações em uma' são um problema real. Nós devemos atuar por vários ângulos. O primeiro é a educação política. O que humanismo significa para um trabalhador? Um verdadeiro humanista não ficará feliz em ver que em sua sociedade existem classes superiores e inferiores. Um verdadeiro humanista não deve permitir que esse desenvolvimento continue indefinidamente. Ele deve, individual e coletivamente, fazer algo para superar essa lacuna entre as áreas rurais e urbanas. Essa é uma maneira. A segunda maneira, é claro, é ser severo - não severo, mas tomando as medidas necessárias. Um passo foi em 1969, quando impus um congelamento salarial aos trabalhadores. Mas também impus um congelamento nos preços. Para que não fosse um caminho de mão única. Isso existiu por um ano antes de subir. Receio que o que existe entre as nações ricas e as pobres também exista entre as áreas ricas e pobres na Zâmbia. Por isso eu disse que somos duas nações em uma. Devemos esperar até que a política seja assentada nos próximos dois anos sobre esse assunto. Estamos muito preocupados com esse problema e temos economistas trabalhando para que, quando chegar a hora de tomar uma decisão, a decisão certa seja tomada.

D.M.: A política tanzaniana de 'ujaama' parece ser a mais lógica a surgir na década desde a independência, enfatizando o reagrupamento de pessoas para que os serviços possam ser canalizados para eles e seus esforços na economia. A Zâmbia tem alguma política semelhante?

Kaunda: Nós temos. Chamamos de reagrupamento de vilarejos. É mais ou menos a mesma abordagem. Mas queremos também manter a base das aldeias e não destruir seus valores e tradição através dessa mudança. Fazemos isso desde 1965. Algumas experiências foram bem-sucedidas e outras não. Agora temos uma política bastante clara sobre onde estamos indo.

D.M.: Todos os países africanos da Independência herdaram um sistema educacional que levava pouco em conta o fato de que mais de 90% das crianças que ingressavam nas escolas primárias estavam destinadas a retornar à terra. O objetivo do sistema era um diploma universitário. Que mudanças você fez na estrutura educacional que herdou e que chances você acha que ainda são necessárias?

Kaunda: Herdamos um sistema voltado para trabalhos de colarinho branco e o resultado tem sido aterrorizante. Trabalhar com as mãos é algo que foi menosprezado. Agora estamos enfatizando a importância do trabalho manual. Isso se baseia na primeira produção agrícola e, em segundo lugar, na produção industrial. Estamos enfatizando a necessidade de quase todas as escolas primárias terem algum tipo de atividade agrícola. Eles estão produzindo vegetais, milho, algodão ou cuidando de porcos ou gado. Tudo isso foi feito para dar o tipo certo de orientação para os pequenos em nossas escolas. E enfatizamos o treinamento em educação técnica.

D.M.: Foi um dos grandes problemas que outros países encontraram com relação à atitude dos pais. Eles também estão sendo educados politicamente?

Kaunda: Temos um departamento de orientação nacional. Isso está sob o vice-presidente e ele tem nas áreas urbanas funcionários que não fazem nada além de educação política. As atitudes estão mudando, mas levará muito tempo.

D.M.: O cobre fornece cerca de 90% de seus ganhos com exportação. Os preços estão caindo. É possível algum tipo de organização como a OPEP para os produtores de petróleo?

Kaunda: Temos o CIPEC, mas receio que não tenhamos conseguido muito. Mas estamos sob considerável influência estrangeira, pois quem veio a desenvolver as indústrias de cobre inicialmente não fomos nós. Mas nossa posição está se fortalecendo.

D.M.: Obviamente, o cobre tem sido muito importante para você no desenvolvimento do país e tem muito mais dinheiro do que a maioria dos outros líderes africanos da independência. Mas igualmente tem sido uma maldição criar uma má distribuição de riqueza na sociedade com muita acumulação de riqueza ao redor das minas e possível negligência da atividade rural?

Kaunda: Não há dúvida: o cobre nos deu um começo desigual - um começo falso. É um começo falso que a maioria das pessoas não se beneficie do emprego. Dá também uma falsa sensação de segurança; você precisa apenas olhar as cidades para ver que pouco se pensa nas áreas rurais. Mas a liderança não os esqueceu e o cobre nos permitiu construir boas estradas para eles. Essas estradas são importantes e agora estamos construindo estradas distritais para conectar essas áreas. Assim, embora em certo sentido se possa dizer que o cobre tenha sido uma maldição por nos dar uma falsa sensação de segurança e riqueza, também nos deu uma boa base para construir a infraestrutura de que precisamos no país - além de escolas, hospitais, clínicas etc. A maioria dos distritos da área rural agora tem uma escola secundária e um hospital. Assim, enquanto, por um lado, o cobre tem sido uma maldição, por outro, tem sido uma bênção.

 

D.M.: Acredito que, nos anos sessenta, você foi citado em várias ocasiões como dizendo que não faria da Zâmbia um Estado de Partido Único, a menos que fosse a vontade do povo através das urnas. Agora, durante a última parte de 1972, você decidiu fazê-lo em um momento em que as divisões étnicas e políticas apareciam publicamente mais marcadas do que antes. Por que você mudou neste momento e por que proibiu outros partidos políticos?

Kaunda: Acho que segui minhas declarações anteriores à risca, porque essa foi a vontade do povo. Eles fizeram isso através das urnas. Você pode dizer que outros partidos tinham alguma influência. Mas se você olhar para toda a estrutura de votação de 1964 a 1972, quando tivemos eleições anteriores, você verá quanto apoio o UNIP teve como partido. Você pode ver as eleições parlamentares, presidenciais e municipais; tudo isso apoia o ponto de vista que estou mencionando. Eu estava atendendo à demanda que as pessoas expressaram através das urnas. Tivemos que legislar mais cedo ou mais tarde, interpretando o que as pessoas haviam dito através das urnas e colocando isso em lei. Esses números estão lá e você não pode argumentar contra eles. E não se pode dizer que fabricamos os números, pois a comissão eleitoral está sob o Chefe de Justiça e, como você sabe, temos independência do judiciário.

Quanto à proibição de partidos políticos e à detenção de alguns líderes - é preciso voltar a 1964. Desde o início, crescemos com dois partidos (UNIP e ANC). Antes da independência havia muito atrito; muita violência entre as duas partes. Isso foi muito sério. Terminamos a luta pela independência, mas o atrito permaneceu. Você pode olhar para os registros do Supremo Tribunal e ver esses casos de assassinato político. Eu não fiz nada até cerca de três ou quatro anos atrás, quando houve um surto de violência, e quando surgiu um terceiro partido liderado pelo Sr. Mundea. Ele havia sido expulso do governo após irregularidades no Ministério do Comércio e Indústria, onde era Ministro. Ele e outro ministro foram expulsos e então formaram outro partido. Tornou-se muito violento e acabou matando alguns dos apoiadores da UNIP no Cinturão de Cobre. A vida humana estava em perigo, por isso bani o partido. Eu detive os líderes e por algum tempo houve paz. Eu os soltei depois de seis meses. Chegou então o momento em que o Congresso Nacional Africano (ANC) iniciou uma violenta campanha em Livingstone, nossa capital turística. Seis membros do UNIP foram mortos... eles estavam usando facões (pangas), cortando o pescoço das pessoas. Eu bani o ANC só em Livingstone e houve paz. Então, em um distrito a oeste de Lusaka, eu estava em uma excursão oficial e membros do ANC cortaram árvores nas estradas para servir como barricadas. Eles queimaram lojas de alimentos pertencentes a apoiadores da UNIP e outras coisas. Eu os avisei que, se isso continuasse, eu proibiria o partido naquela área e como não pararam, então eu os bani. Como resultado, a paz foi restaurada nessa área. Todas essas foram lições que eu estava aprendendo.

Eu aliviei a proibição e os problemas começaram novamente. Eleição após eleição. E houve um apoio crescente ao UNIP. O ex-vice-presidente, Kapwepwe, deixou-nos em agosto de 1971 e dei a ele e seus colegas seis meses para nos dizer o que eles fariam pelo país. Eu pensei que talvez tivéssemos errado, então deixei que eles nos dissessem onde erramos. No momento em que tomei medidas contra eles, eles não fizeram nada disso. Não há registros que eles possam mostrar ou divulgar um panfleto para mostrar o que eles fariam pelo país que era diferente do que estávamos dizendo. Então a violência voltou a aumentar no Cinturão de Cobre. Nosso pessoal do partido me chamou lá. Em um sábado, eles disseram que se você não proibir essas pessoas, alguns de nós serão mortos. No domingo, uma das pessoas do nosso partido foi espancada até ficar inconsciente. Várias casas de líderes partidários e nossos escritórios foram incendiados com gasolina. Então detive os líderes da UPP e novamente houve paz no país. Recentemente, eu os soltei novamente e na semana passada houve bombardeios de gasolina novamente no Cinturão de Cobre. Agora, o que devo aprender com isso?

Até o líder mais democrático se encontraria em uma situação impossível quando as pessoas deliberadamente usam métodos violentos para alcançar seus objetivos.

Agora não é só isso. Neste momento, nossas forças de segurança, após explosões de minas em nossa fronteira no último final de semana que mataram três de nosso povo, prenderam cinco homens que admitiram ter sido organizados pelo ANC para ajudar os homens de Smith na Zâmbia. É traição, é traição. É o tipo de política que vamos adotar na África - ajudando os homens de Smith? Primeiro, eles disparam contra uma ilha e assusta nosso povo lá. Então eles cruzam e, juntamente com essas pessoas, colocam minas na Zâmbia e matam pessoas. Acontece que a primeira vítima dessas minas era sobrinho de uma das pessoas que ajudaram a colocá-las. Foi assim que conseguimos segui-los. Chipangu, ex-prefeito de Livingstone da UNIP, foi demitido por motivos disciplinares. Ele se juntou ao ANC. E depois há um magistrado e um funcionário do banco. Todos eles têm lidado com sul-africanos e rodesianos. Não posso dizer mais nada.

Nós já os pegamos. Onze deles haviam recrutado homens na Zâmbia para serem treinados na Namíbia pelos sul-africanos em operações militares. Tudo isso está vindo à luz. Espero que haja casos judiciais. E devo sugerir aqui que espero encontrar uma maneira de fazer justiça de tal maneira que essas pessoas sejam vistas pelo que são; companheiros traidores que são capazes de vender seu próprio país aos nossos inimigos. Onze deles estão sob custódia. Também detive mais oito pessoas, que estavam se organizando em Mungu. Então, quando coisas assim estão acontecendo - e não é adivinhação - essas pessoas estavam recrutando zambianos para serem treinados por nossos inimigos para vir e minar nossa autoridade, para destruir zambianos. Não podemos permitir isso. Nós temos uma responsabilidade.

Essas pessoas falharam em produzir políticas alternativas para este país. A alternativa para eles é ir e ser treinados pelos portugueses, rodesianos e sul-africanos, para matar seus semelhantes. Kapwepwe é encontrado com dois rifles que ele não pode explicar, um semiautomático. Essas outras três pessoas que mencionei são encontradas com revólveres. Hoje (16 de janeiro), revistamos certas áreas aqui em Lusaka e um rodesiano africano foi encontrado com um rifle .176, um revólver e várias centenas de cartuchos de munição.

Essas coisas são um ponteiro. Por que essas pessoas estão andando com armas? Que oposição eles estão fornecendo? Na minha opinião, eles não têm o direito de reivindicar a liderança neste país. Aqui não lhes darei a oportunidade de destruir vidas inocentes da Zâmbia. Então aqui está você - minas rodesianas em solo da Zâmbia, revólveres, rifles, todas essas coisas. Há evidências. Eles terão que explicar nos tribunais. Mas como é que um homem que era vice-presidente da Zâmbia, ou Nkumbula que era ministro, se afundam tanto assim? Antes eles negavam, mas agora foram pegos em flagrante com armas. O que eles têm a dizer sobre isso? Este não é o tipo de oposição que podemos tolerar na Zâmbia. Existe liberdade de expressão, de reunião e de associação. O judiciário e a igreja são independentes. Eles devem ser um espelho para nos dizer quando erramos. Aceitamos críticas, mas não oposição – esse tipo de oposição na África é destruição.

Fonte:https://newint.org/features/1973/03/01/interview-president-kaunda

 

 



segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Carta a Minha Filha, Maya Angelou - breve nota

Apesar de muito ter ouvido falar sobre Maya Angelou, nunca havia pegado um livro dela pra ler de fato, a não ser trechos e alguns de seus versos e citações.

O livro escolhido, ou o que eu tinha disponível para ler foi 'Carta a Minha Filha'. Livro curto e de leitura rápida, porém muito lindo de se ler, a imaginar ela contando suas lições, erros e acertos, aprendizados e decepções, acerca de variados assuntos da vida. Sendo direcionado para todas as mulheres.

Logo de inicio ela se apresentou como representando todas as mulheres sem distinção alguma, de certa forma, nesse ponto, fiquei ressabiado na leitura, pois já estava em busca de algo combativo na perspectiva racial. Mas até nisso nosso povo ensina humanidade, e fui compreender a sensibilidade dessa carta biográfica um pouco depois no decorrer da leitura, daí me coloquei no meu lugar. (Muita calma nessa hora rs).

São 128 páginas separadas por 28 capítulos, pelo menos 3 deles nomeados em homenagem à outras valiosas mulheres pretas: sra. Fannie Lou Hamer, sra. Celia Cruz e sra. Coretta Scott King. Além de nos falar sobre sua avó e sua mãe.

Maya Angelou também citou alguns encontros com pessoas importantes de nossa história. E foi bem sucedida ao abordar a violência que sofreu, e já em outro instante poder descrever uma vivência que nos remete à gargalhadas. Mas que na sequência poderia vir uma legitima defesa na postura ou adiante, belos versos.

Enfim, esse não foi seu primeiro best-seller, que em breve quero encontrá-lo pra ler (a autobiografia  “I know why the caged bird sings” – “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, em português). Então, tem-se muito mais pra se ler da nossa gloriosa e premiada poeta, escritora, atriz e ativista, que fez sua passagem em maio de 2014, nos EUA, aos 86 anos de idade. 

Fuca CGPP

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Fannie Lou Hamer - Depoimento perante o Comitê de Credenciais, 1964


Fannie Lou Hamer* - Depoimento perante o Comitê de Credenciais, na Convenção Nacional Democrata 1964



22 de agosto de 1964

Sr. Presidente, e ao Comitê de Credenciais, meu nome é Sra. Fannie Lou Hamer, e moro no 626 East Lafayette Street, Ruleville, Mississipi, Condado de Sunflower, a casa do senador James O. Eastland e do senador Stennis.

Foi no dia 31 de agosto de 1962 que dezoito de nós viajamos vinte e seis milhas até o tribunal do condado de Indianola para tentar nos registrar para nos tornarmos cidadãos de primeira classe. Fomos recebidos em Indianola por policiais, patrulheiros da estrada, e eles só permitiram que dois de nós fizéssemos o teste de alfabetização/instrução na época. Depois que fizemos o teste e começamos a voltar para Ruleville, fomos detidos pela Polícia da Cidade e pelos Patrulheiros Estaduais e levados de volta para Indianola, onde o motorista do ônibus foi acusado naquele dia de dirigir um ônibus na cor errada.

Depois que pagamos a multa entre nós, seguimos para Ruleville, e o reverendo Jeff Sunny me transportou seis quilômetros na área rural, onde trabalhei como cronometrista e meeira por dezoito anos. Eu fui recebida lá por meus filhos, que me disseram que o dono da fazenda estava zangado porque eu tinha tentado me registrar.

Depois que me contaram, meu marido chegou e disse que o dono da fazenda estava bravo (raising Cain) porque eu tentara me registrar. E antes que ele parasse de falar, o dono da fazenda veio e disse: "Fannie Lou, Pap** lhe contou o que eu disse?"

E eu disse: "Sim, senhor".

Ele disse: "Bem, eu quero dizer que, se você não descer e retirar o seu registro, você terá que sair. Então, se você descer e retirar, você ainda pode ter que partir porque não estamos prontos para isso no Mississípi".

E eu me dirigi a ele e disse: "Eu não tentei me registrar para você. Eu tentei me registrar por mim."

Eu tive que sair naquela mesma noite.

Em 10 de setembro de 1962, dezesseis balas foram disparadas contra a casa do Sr. e Sra. Robert Tucker por mim. Naquela mesma noite duas garotas foram baleadas em Ruleville, Mississippi. Além disso, a casa do Sr. Joe McDonald foi baleada dentro.

E em 9 de junho de 1963, eu havia participado de uma oficina de registro de eleitores; estava voltando para o Mississípi. Dez de nós estávamos viajando pelo ônibus de Trailway Continental. Quando chegamos a Winona, Mississípi, que é o condado de Montgomery, quatro pessoas saíram para usar o banheiro, e duas das pessoas - para usar o restaurante - duas pessoas queriam usar o banheiro. As quatro pessoas que tinham entrado para usar o restaurante foram ordenadas a sair. Durante esse tempo eu estava no ônibus. Mas quando olhei pela janela e vi que elas tinham saído correndo, desci do ônibus para ver o que havia acontecido. E uma das senhoras disse: "Foi um policial rodoviário estadual e um chefe da polícia nos ordenou a sair."

Eu voltei pro ônibus e uma das pessoas que tinha usado o banheiro voltou pro ônibus também.

Assim que eu estava sentada no ônibus, vi quando eles começaram a pegar as cinco pessoas no carro de um policial rodoviário. Saí do ônibus para ver o que estava acontecendo e alguém gritou do carro em que os cinco trabalhadores estavam e disse: "Pegue aquele ali". E quando fui entrar no carro, o homem me disse que eu estava presa, ele me chutou.

Fui levada para a cadeia do condado e colocada na sala de reservas. Eles deixaram algumas pessoas na sala de reservas e começaram a nos colocar nas celas. Fui colocada em uma cela com uma jovem chamada Miss Ivesta Simpson. Depois que fui colocada na cela, comecei a ouvir sons de chutes e gritos. Eu podia ouvir o som de chutes e gritos horríveis. E eu podia ouvir alguém dizer: "Você pode dizer 'sim, senhor', 'nigger'? Você pode dizer 'sim, senhor'?"

E eles diziam outros nomes horríveis.

Ela dizia: "Sim, eu posso dizer 'sim, senhor'".

"Então, bem, diga."

Ela disse: "Eu não te conheço bem o suficiente".

Eles a espancaram, não sei quanto tempo. E depois de um tempo ela começou a orar e pediu a Deus que tivesse piedade daquelas pessoas.

E não demorou muito para que três homens brancos viessem à minha cela. Um desses homens era um policial rodoviário estadual e ele me perguntou de onde eu era. E eu disse a ele Ruleville.

Ele disse: "Vamos checar isso". E eles deixaram minha cela e não demorou muito para que eles voltassem. Ele disse: "Você é de Ruleville, tudo bem", e ele usou uma palavra de maldição. E ele disse: "Nós vamos fazer você desejar que estivesse morta".

Fui levada dessa cela para outra cela onde tinham dois prisioneiros negros. O patrulheiro estadual da estrada ordenou que o primeiro negro pegasse o porrete (blackjack). O primeiro prisioneiro negro me ordenou, por ordem do patrulheiro estadual, que eu deitasse o rosto em uma cama de beliche. E eu deitei meu rosto, o primeiro negro começou a me bater.

E fui espancada pelo primeiro negro até ele ficar exausto. Eu estava segurando minhas mãos atrás de mim naquele momento do meu lado esquerdo, porque sofri de pólio quando tinha seis anos de idade.

Depois que o primeiro negro bateu até que ele estivesse exausto, o patrulheiro estadual de estrada ordenou que o segundo negro pegasse o porrete.

O segundo negro começou a bater e comecei a agitar com os pés, e o patrulheiro estadual de estrada ordenou que o primeiro negro que tinha batido se sentasse nos pés - para impedir que eu agitasse com meus pés. Comecei a gritar e um homem branco se levantou e começou a me bater na minha cabeça e disse para me calar.

Um homem branco - meu vestido tinha subido - ele se aproximou e puxou meu vestido - eu puxei meu vestido para baixo e ele subiu meu vestido de volta.

Eu estava na prisão quando Medgar Evers foi assassinado.

Tudo isso por conta do desejo de nos registrar, de nos tornarmos cidadãos de primeira classe. E se o Partido Democrático da Liberdade não for estabelecido agora, eu questiono a América. Esta é a América, a terra dos livres e a casa dos bravos, onde temos que dormir com nossos telefones fora do gancho porque nossas vidas são ameaçadas diariamente, porque queremos viver como seres humanos decentes na América?

Obrigada!

fonte do depoimento: 




*Fannie Lou Hammer (1917 -1977), uma das lideranças do movimento por direitos civis, liderou a delegação do Partido Democrático da Liberdade do Mississípi à convenção do Partido Democrata de 64 exigindo ser reconhecida - o presidente Johnson convocou uma coletiva de imprensa "urgente" para que não houvesse cobertura televisiva de sua declaração. Mas a importância desse discurso fixou como denuncia na luta pelos direitos civis, mesmo com a tentativa de boicote de sua fala. Neste discurso ela também traçou um pouco da mudança de vida que ela teve a partir da campanha do SNCC de registrar o voto afro-americano.

**Perry "Pap" Hamer - marido dela desde 1944