quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Metrópoles: a paz atrás da cerca elétrica

Metrópoles: a paz atrás da cerca elétrica

“Se conforma com a paz atrás da cerca elétrica

Se por o pé pra fora plá plá já era.”

(Há Mil Anos Luz da Paz, Facção Central)

 

O objetivo nesta nota é avaliar os “possíveis” conflitos de classe nas cidades, apenas como nota do texto “Alguns Aspectos da Dinâmica Recente da Urbanização Brasileira”, de Marcelo Lopes de Souza. Por isso omiti a questão racial aqui.

Ao tratar a urbanização brasileira não se pode deixar de analisar o fenômeno da metrópole, principalmente no que tange a metropolização de São Paulo assim como a do Rio de Janeiro. É possível apontar que após a consolidação da urbanização e dessas duas grandes metrópoles na década de 70, vem ocorrendo uma involução metropolitana, que se dá não pela redução do tamanho urbano, mas, sobretudo, pela precarização das condições gerais de vida e habitação que abrange a dimensão espacial e sociopolítica das cidades.

Desde a fase do capitalismo industrial, constata-se que as cidades se tornam o berço da burguesia e mais adiante, como consequência da industrialização, o berço do proletariado industrial. E se o baluarte do capitalismo está no seu desenvolvimento geográfico desigual, é na cidade que se acirra os conflitos de classes. (na sociedade moderna) “A história de qualquer sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”. Pois cada classe deverá agir conforme seus interesses.

São inúmeros os desdobramentos dessa equação conflituosa, em suma, para apontar dois deles: a extrema concentração riqueza para a minoria que detém os meios de produção; e a pobreza para a maioria, que se dá na classe trabalhadora que por vezes não encontra demanda onde possa vender sua força de trabalho. As metrópoles mencionadas (RJ e SP) aglutinam essas duas faces socioespaciais.

O grandes centros urbanos industrializados também são minoritários e maioria das pessoas, para sobreviver, necessita migrar para esses centros para vender sua força de trabalho. Ora, se a liberdade que a classe trabalhadora detém é a de “escolher” onde empregar sua força de trabalho, neste sistema não se vê, enquanto classe, na liberdade de não empregar sua força de trabalho, que acaba por ser uma liberdade contraditória. Se torna necessário assim obter uma “aptidão” de mobilidade (qualificação) para escapar do Exército Industrial de Reserva e por vezes do “lumpemproletariado”, que cada vez cresce mais nas grandes metrópoles. Quando uma pessoa ou uma família migra, carrega também sua condição de classe, devido a isso deve-se compreender tal situação como um desdobramento coletivo e inserido num contexto de crise global do trabalho e das migrações.

Os conflitos urbanos estão longe de serem pacíficos, contudo cria-se regionalizações no sentido de conter a sensação de insegurança, exemplo disso são os condomínios fechados, que representam a autossegregação, uma maneira ilusória de solução para o problema das cidades, mas que ancorados nos valores capitalistas, é exemplo de excelência numa redoma. A favelização se torna uma saída mais barata e plausível de habitação para quem detém menor poder econômico, e muitas vezes, são territórios não assistidos pelo Estado, gera-se assim um comando interno para além do Estado. Já nos espaços neutros que estão a mercê da segurança pública, com seus espaços públicos ou privados, ocorre a conexão de todas as mazelas, pois muitas vezes cada território está interligado e mesmo para os que se auto segregaram, ao sair do portão automático poderá se deparar com algumas consequências desses conflitos.

Contudo, apenas para provocar, e ainda no âmbito desse conflitos (que não foram elencados aqui), estaria hoje a burguesia mais protegida do que as regiões periféricas das cidades? A cerca elétrica de fato funcionou nesses grandes centros e que não detém tais meios fica a mercê das consequências? Pode ser um convite pra mim mesmo de aprofundar e continuar essa nota pra um texto.

 

Carlos R. Rocha (Fuca),

Insurreição CGPP, 2019!

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O Estado Absolutista do Ocidente - Breve nota

 Fichamento 2: ANDERSON, P. O Estado Absolutista do Ocidente. In: Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. Cap.1, p.15-41.

1º parte: As Estruturas iniciais do Estado Absolutista no Ocidente 

O Estado Absolutista surge no século XVI após uma longa crise econômica na sociedade europeia no decorrer dos séculos XIV e XV. Com a relação à estrutura do absolutismo, o autor desvela uma controvérsia na passagem do feudalismo para o capitalismo, baseando-se no que Engels postulou em ter havido um equilíbrio de classe entre a antiga nobreza feudal e a nova burguesia urbana, é apontado que tal classificação culmina na designação de um tipo de Estado burguês ou então se chega a uma dominação direta do capital, argumento que parece plausível. “No entanto, um estudo mais detido das estruturas do Estado absolutista no Ocidente invalida inevitavelmente tais juízos. Pois o fim da servidão não significou aí o desaparecimento das relações feudais no campo” (ANDERSON, 1985, p.17)

As relações de produções rurais ainda eram feudais, pois o trabalho não foi separado de suas condições sociais de existência, assim como a relação do proprietário com a terra não foi alterada, visando sempre a sujeição das massas camponesas. A aristocracia feudal, portanto, era a classe dominante tanto na época medieval como durante toda a fase inicial da época moderna.

Não obstante, as alterações das formas de exploração feudal foram significantes, mas o autor revela que a primeira geração de cientistas do materialismo histórico não fez uma teorização direta das novas monarquias centralizadas no intuito de compreender a importância na transição do feudalismo para o capitalismo. Outra geração o fez e assim evidenciou a nova forma de poder da nobreza, tal forma política foi concebida através da difusão da produção e troca de mercadorias.

2º Parte: O Processo de Evolução do Absolutismo (§7-12)

O poder político e econômico no feudalismo era definido por uma unidade orgânica, onde instituía o trabalho servil para a extração de excedentes. O advento das rendas monetárias desencadeou no desaparecimento gradual da servidão pelo trabalho livre e o contrato salarial ameaçando a unidade de opressão política e econômica da classe dominante, que resultou então em mais repressão aos camponeses, atingindo ainda alguns agentes da nobreza.

Com a diluição do primitivo sistema feudal, a propriedade da terra tornou-se menos “condicional” e a soberania mais “absoluta”, tendo em vista que as concepções medievais de vassalagem estavam enfraquecendo atuando em dois sentidos: ao mesmo tempo que conferia novos poderes à monarquia, emancipava os domínios da nobreza das restrições tradicionais. Os membros individuais da classe aristocrática perderam direitos políticos de representação na nova época, mas registraram ganhos econômicos na propriedade, pois como cita o autor, “os Estados monárquicos da Renascença foram em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos modernizados para a manutenção do domínio da nobreza sobre as massas rurais”. (ANDERSON, 1985, p.20)

A aristocracia tinha outro antagonista: a burguesia mercantil das cidades medievais. Durante a depressão feudal, teve-se um crescimento das indústrias urbanas e o desenvolvimento de novas técnicas que melhoraram o processo de produção ainda no século XV. Assim, portanto, o autor aponta que, “ quando os Estados absolutistas se constituíram no Ocidente, a sua estrutura foi fundamentalmente determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato, após a dissolução da servidão; mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que, depois de uma série de avanços técnicos e comerciais, evoluía agora em direção às manufaturas pré-industriais numa escala considerável”.

3º Parte: O Direito Romano nas Monarquias da Europa Renascentista

O reflorescimento do direito romano correspondeu ambiguamente às necessidades tanto da burguesia urbana como da aristocracia, cuja posição e poder desiguais moldaram as estruturas do Estado absolutista no Ocidente. Essa concepção de direito agia economicamente de acordo com a propriedade privada absoluta e incondicional quando a produção e troca de mercadorias atingiram níveis globais, seja pela agricultura ou pela manufatura, correspondendo aos interesses vitais da burguesia comercial e manufatureira. No que tange a visão política é citado pelo autor da seguinte maneira. “Politicamente, o reflorescimento do direito romano respondia às exigências constitucionais dos Estados feudais reorganizados da época. Com efeito, não restam dúvidas de que, na escala europeia, a determinante primordial da adoção da jurisprudência romana reside na tendência dos governos monárquicos à crescente centralização dos poderes. ” (ANDERSON, 1985, p.26)

Este sistema jurídico era dividido em dois setores que de certa forma se contrastavam, o direito civil e o direito público, enquanto um enfatizava a propriedade privada o outro consolidava a centralização do poder da classe aristocrática.

“O efeito supremo da modernização jurídica foi, portanto, o reforçamento da dominação da classe feudal tradicional. O paradoxo aparente de tal fenômeno refletiu-se em toda a estrutura das próprias monarquias absolutistas – combinações exóticas e hibridas cuja ‘modernidade’ superficial trai frequentemente um arcaísmo subterrâneo. Este traço aparece claramente a partir de um analise das inovações institucionais que anunciaram e caracterizaram o seu aparecimento: exército, burocracia, tributação, comércio e diplomacia. Vale considera-los sumariamente nesta ordem. ” (ANDERSON, 1985, p.29)

4º Parte: A Política da Guerra e a Burocracia 

No feudalismo a guerra era tida como o modo mais viável de se extrair excedentes para a classe de proprietários de terra. A competição no capitalismo se caracterizava economicamente, já na rivalidade inter-feudal, a estrutura militar era quem definia uma batalha, pois a nobreza buscava a aquisição de terras. Com isso, a classe dominante feudal tinha a mobilidade mais aparente do que a classe dominante capitalista, já que a terra é imóvel e necessitava-se de locomoção para exercer o domínio. Então o instrumento clássico para a aquisição de terras no feudalismo era por meio da força, por vezes a motivação se disfarçava em religiosidade ou em genealogia. Os Estados absolutistas refletiam esta racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura, sendo que, a criação dos primeiros impostos foi para subsidiar os aparatos militares para a guerra.

A burocracia na Renascença era tratada como propriedade vendável a indivíduos privados, a nobreza feudal se integrava ao Estado absolutista através da aquisição de cargos. A venda de cargos era um meio indireto de aumentar os rendimentos procedentes da nobreza e da burguesia mercantil, no entanto, a tributação ocorria para os pobres principalmente os impostos de guerra.

Enquanto o laissez-faire (burguês) era voltado ao pacifismo o mercantilismo (feudal) era fortemente belicista, enfatizando a necessidade da guerra.

5º Parte: A Questão Diplomática 

Em acréscimo às atividades do comércio e da guerra, outra atividade externa nasceu no Estado absolutista do Ocidente, a diplomacia. Tal atividade consistia na sondagem dos perigos e pontos fracos de outros Estados, sempre com um caráter de preservação e engrandecimento do próprio Estado. A diplomacia só pôde ser exercida após a demarcação mais homogênea das unidades políticas, algo que não se tinha na Europa medieval.

6º Parte: O Dois Sistemas no Estado Absolutista

O autor conclui que o sistema feudal, ainda que em declínio, se apresentava como dominante no Estado absolutista. Predominância tida numa relação complexa e híbrida como citado pelo autor. “Com efeito, o paradoxo aparente do absolutismo na Europa ocidental era que ele representava fundamentalmente um aparelho para a proteção da propriedade e dos privilégios aristocráticos, embora, ao mesmo tempo, os meios através dos quais tal proteção era promovida pudessem simultaneamente assegurar os interesses básicos das classes mercantis e manufatureiras emergente. ” (ANDERSON, 1985, p.39)

Essa junção pôde se dar devido a não exigência de uma produção de massa como da indústria mecanizada, assim não se precisava ter uma ruptura radical com a ordem agrária feudal vigente. “A centralização econômica, o protecionismo e a expansão ultramarina engrandeceram o Estado feudal tardio, ao mesmo tempo que beneficiaram a burguesia emergente. Expandiram os rendimentos tributáveis de um, fornecendo oportunidades comerciais à outra. ” (ANDERSON, 1985, p.40)

Contudo, na época de transição para o capitalismo, o domínio do Estado Absolutista era o da nobreza feudal.


Por Carlos R. Rocha (Fuca)

Insurreição CGPP, 2018.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Migrar e Estar Ausente: O Abismo das Almas Vendidas e o Pessimismo de Luigi Damiani

Migrar e Estar Ausente: O Abismo das Almas Vendidas e o Pessimismo de Luigi Damiani

“Migrar temporariamente é mais do ir e vir – é viver, em espaços geográficos diferentes, temporalidades dilaceradas pelas contradições sociais. Ser migrante temporário é viver tais contradições como duplicidade; é ser duas pessoas ao mesmo tempo, cada uma constituída por especificas relações sociais, historicamente definidas; é viver como presente e sonhar como ausente. E ser e não ser ao mesmo tempo; sair quando está chegando, voltar quando está indo. E necessitar quando está saciado. E estar em dois lugares ao mesmo tempo, e não estar em nenhum. E, até mesmo, partir sempre e não chegar nunca.” (MARTINS:1986, p.45)

Ao cair na cilada de tentar definir as migrações, José Martins de Souza, em “O Voo das Andorinhas”, aborda o conceito de ausência que pode se fazer tranquilamente um paralelo com os artigos da revista travessia, Literatura i/e Migração de 1999, que já na sua apresentação, feita por Carlos Eduardo Schmidt Capela, demonstra a dificuldade de definir imigrantes e emigrantes, além de perpassar pela sensação de ausência do migrante, que traz consigo características de nacionalidade.

Apesar de Martins em seu texto não focar especificamente nas migrações estrangeiras, seu conceito de ausência cabe a esse tipo de migração que está sendo desenvolvida nos artigos da revista, pois, sobretudo, o assunto tratado não deixa de ser migrações temporárias, já que o tempo em questão é considerar-se ausente, ausência que é medida pela não ocorrência da dessocialização do local de partida e da ressocialização no lugar chegada, o migrante se vê num sentimento de estar “fora de casa”, “fora de seu lugar”. Essa situação não pode ser entendida como um processo de progresso civilizatório, todavia, como um processo violento de expulsão das pessoas de seus lugares de origem através da acumulação primitiva e da imposição da mobilidade do trabalho. Em tempos atuais, a crise que gera migração é global e ocorre simultaneamente em diversos espaços, pois os trabalhadores não conseguem mais vender sua força de trabalho.

Mesmo quando se fala de uma “migração permanente”, ainda pode se ter incutido o imaginário de ausência, contudo a posição de migrante permanente não foi o caso de um grupo de migrantes, em sua maioria italianos, que tinham compromisso com uma ação cultural libertária junto a classe trabalhadora do Brasil nos finais do século XIX e início do século XX. Sendo assim, acabaram expulsos e quando não, desencantados com os obstáculos tidos no Brasil que assegurava apenas uma exploração crescente dos imigrantes italianos e condições insalubres de trabalho nas mãos dos fazendeiros e industriais em São Paulo. Umas das figuras mais emblemáticas foi Luigi Damiani, de acordo com o artigo de Antônio Artoni Prado em “Sobre as imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani”, publicado na revista travessia, edição de número 35. Em um trecho sobre Damiani é apontado que o seu “(...)inconformismo e a luta contra a dura realidade do Brasil, mais do que o desengano, trouxe-lhe a prisão e em seguida o banimento. Os depoimentos que escreveu entre 1920-21 para o jornal Volonta, de Ancona – depois portanto de sua expulsão, que se deu em 1919 – servem como exemplo oportuno do grau de veemência com que repudiou as condições desfavoráveis ao avanço da emancipação social no Brasil.” Damiani em seus escritos apresentava uma posição de ruptura com a ordem estabelecida e assim sua obra passou a aguçar um certo pessimismo intelectual diante das possibilidades de emancipação da classe trabalhadora no Brasil, que não sinalizava uma quebra da ordem vigente. Sobre os ideais anarquistas, confessou frustrado, que nem mesmo em sonho poderia ser atingido, pois, “comer e ter direitos mínimos, se isso fosse possível, seria aqui uma façanha notável.”

Por vezes para muitos, ancorados em premissas do senso comum, o ato de migrar poderia estar atrelado a algo inerente do ser humano, na sua condição ontológica, e não parte de uma crise ou mesmo imposição feita com maior veemência a partir da consolidação da sociedade moderna, onde se torna obrigatória a mobilização geral em busca de trabalho. Cabe, portanto, abarcar alguns aspectos das migrações tendo como referência a crise do sistema global da economia de mercado.

Tal crise é estrutural no mundo contemporâneo que gera desemprego em massa e pobreza, e exige-se, então, de quem queira oferecer sua força de trabalho ao mercado, a constante mobilidade do trabalho em um cenário que já não aponta saída de trabalho para todos. Em suma, além do trabalhador moderno ser obrigado, numa espécie de coerção silenciosa, a se submeter ás relações econômicas de mercadoria, não se tem garantia de que os trabalhadores possam de fato exercer tal liberdade de vender sua força de trabalho.   

Os países do chamado Terceiro Mundo em geral passam por um processo de crescimento da urbanização mas contando com uma constante desindustrialização, os países centrais aparecem assim como a grande saída, o oásis para os trabalhadores, que tem como maior anseio, dentro dessas condições, encontrar um lugar que possa comprar sua força de trabalho.

“Eu quero trabalhar o dia inteiro, nem que seja pra ganhar um tostão

Eu já não posso mais e voltar atrás eu não quero não”

(Poeira do Norte, Gordurinha)

O ponto de partida dessa imposição do trabalho pode ser estabelecido com o advento da sociedade moderna e em sua transição do feudalismo para o capitalismo assentado nos valores sociais e culturais do Iluminismo e da Revolução Burguesa. Tais aspectos caracterizam a base para uma primeira humilhação da classe trabalhadora que teve sua humanidade transformada em material de mercadoria, que fora coisificada para gerar valorização. Se levarmos em conta que toda mercadoria se aufere no trabalho abstrato despendido em sua produção, considerando como simples gasto de energia humana, física e intelectual, e que o trabalhador se encontra alienado do controle e do produto do trabalho, são as coisas, então, que usam os trabalhadores através dos meios de produção para agregar acumulo e aumentar o valor. O desdobramento dessa engrenagem posta de maneira simplificada aqui, pode ser caracterizada como uma humilhação primária.

Dentro desses parâmetros, os fluxos migratórios contemporâneos e a maioria das lutas travadas pelos trabalhadores, seja em movimentos sociais ou políticos, são pautados tendo como base os princípios que fundaram a própria humilhação primária, ou seja, se almeja a consolidação de uma mínima dignidade humana para escapar de uma humilhação secundária que empurra o trabalhador despossuído para as margens da sociedade e da vida humana.

O cenário é caótico, a competitividade é esmagadora, a luz no fim do túnel praticamente não existe, o que resta é ter a esperança de manter a condição mínima de sobrevivência e nisso vale tudo pelo capital. Então migrar para os grandes centros, (que na verdade são minoria no mundo), que provocaram a pauperização da maioria, é uma saída plausível nesse contexto. Mas mais do que nunca, (e a tendência é aumentar o abismo para os despossuídos), é necessário romper com esses parâmetros da sociedade moderna ocidental para pensar e construir um novo mundo. Tal embate não se tem como evitar apenas adiá-lo e assim assistir o capitalismo se reinventar de período em período mantendo sua hegemonia no mundo.   

O capitalismo se reinventou através do neoliberalismo desde pelo menos os anos 1970, e o que fazia parte de uma agenda implícita de desmonte de direitos e políticas públicas timidamente conquistadas, já após a queda da União Soviética marcando o fim da Guerra Fria, se mostra tanto uma agenda implícita como explicita, se tornando assim uma armadilha para os trabalhadores organizados em diversos movimentos, no sentido de pretender almejar simplesmente a sobrevivência e a dignidade humana sem qualquer compromisso com uma agenda de ruptura perante o sistema capitalista imposto. Se busca a máxima de igualdade, alicerçada nos direitos do homem, da propriedade privada, do individualismo, afim de fazer valer os valores da revolução burguesa.

Tal armadilha chega ao ponto de instituições que explicitamente favorecem o aumento da pobreza e da miséria, principalmente nos países do chamado Terceiro Mundo, se intitularem como altruístas e se postarem como solução de desenvolvimento e de redução das desigualdades. A exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, que através de seus empréstimos a juros elevados, para que os países do terceiro mundo fiquem endividados, intervém nas estruturas políticas desses países visando nitidamente implantar uma reestruturação neoliberal, tendo como orientação uma reforma fiscal, a abertura de mercado, políticas de privatizações, dentre outras medidas. O neoliberalismo está no mundo inteiro e a maioria das forças progressivas em todo o mundo se encontra a mercê dessas ações ao clamar simplesmente por democracia, mas uma democracia burguesa, vazia de qualquer controle popular e de transformação social, pois é exatamente essa democracia que serve como intervenção do Imperialismo Capitalista de hegemonia norte-americana, que atualmente não financia as ditaduras, no entanto, se apresenta como promotores da democracia.    

 Assim, mesmo o caráter de denúncia dos maus tratos e de péssimas condições de trabalho, tidos também nas obras de Luigi Damiani, já passam a ser minimizados pela busca de qualquer espaço para exercer a liberdade de venda da força de trabalho da classe trabalhadora, além de em síntese nem serem mais a solução para a diminuição dos fluxos migratórios. Mesmo num mercado regulado, já não se pode mais apostar num sistema do mundo do trabalho assalariado, pois tal forma já se mostrou como causa das fugas em massa de quem necessita vender sua força de trabalho. E, assim, o pessimismo ainda cabe, de certa forma, pois se tem um distanciamento enorme com os ideais de ruptura da ordem estabelecida e para que se vise a construção de um novo mundo.

Referências:

HEIDEMANN, D. “Os migrantes e a crise da sociedade do trabalho: humilhação secundária, resistência e emancipação”. In: Migrações: discriminações se alternativas. São Paulo: Paulinas/SPM, 2004.

KURZ, R. “Barbárie, migração e guerras de ordenamento mundial”. In: Serviço Pastoral do Migrantes, Travessias na Desordem Global. Porto Alegre: Paulinas, 2005.

MARTINS, J.de S. ”O voo das andorinhas”. In: Não há terra para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes, 1986.

ANTONIO ARNONI PRADO, Sobre as imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani. In: TRAVESSIA-revista de literatura- n.39 -UFSC -FIorianopolis-jul-dez.l999; pp J9.55

por Carlos R. Rocha (Fuca), Insurreição CGPP

2018



quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Abdias Nascimento sobre Marcus Garvey em 05/06/1997 - Pronunciamento no senado.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, SRªS E SRS. senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

 

Acontecimento mais relevante da história deste milênio, a invasão do Continente Africano por europeus a partir do século XVI, com a escravização e migração forçada de milhões de seus filhos e a transformação dos restantes em súditos coloniais, alterou para sempre a face do planeta. Pode-se afirmar, sem medo de exagero, que o transplante de enormes contingentes de africanos para o outro lado do Atlântico não apenas moldou a face das sociedades americanas, mas constituiu o principal motor de processos fundamentais, como a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, responsáveis pela configuração do mundo, tal como hoje o conhecemos. Dentre as consequências negativas desse fato histórico encontram-se os principais vetores da instabilidade de que padece não apenas a África mesma, mas igualmente boa parte das Américas, sem esquecer a própria Europa. Questões como o racismo e a xenofobia, que têm nos descendentes de africanos no Novo e no Velho Mundo seus alvos preferenciais, encontram-se nas raízes de problemas como a violência urbana, as crianças de rua, a favelização das metrópoles. Ao mesmo tempo, as sequelas do colonialismo se espelham com clareza no empobrecimento e nas sangrentas lutas fratricidas que nos acostumamos a associar a determinadas regiões da África, frutos da atomização e do artificialismo que presidiram à imposição das atuais fronteiras dos países africanos pelos centros político-militares europeus de força.

Com todo o sofrimento e toda a dor que constituíram parte integrante desse processo cruel, a história da resistência africana na própria África e nas Américas é também uma saga repleta de heroísmo, bravura, determinação e criatividade. Qualidades que possibilitaram que um povo dominado pelo poder das armas, reforçado por toda espécie de ideologia mistificadora, conseguisse impor boa parte de sua cultura, de seus valores, de sua arte, de sua religião aos seus dominadores, a despeito da suposta superioridade por estes autoproclamada. Tudo isso não aconteceu de graça, mas em resultado de uma luta tão multifacetada quanto as próprias estratégias de dominação elaboradas pelos escravizadores europeus e seus descendentes. Uma luta a um tempo nos planos material e ideológico, envolvendo não somente as armas convencionais de cada época e lugar em que tem sido travada, mas igualmente a palavra e o pensamento, tendo por meta a derradeira conquista das consciências e mentes de europeus, africanos e seus descendentes. Objetivo último dessa luta: a supremacia final, para uns, ou a plena liberdade, para outros.

Uma das noções mais antigas entre os povos africanos escravizados nas Américas é a de que sua liberdade não se resgataria com simples apelos emotivos ao coração do dominador. Mais do que isso, a percepção de que uma África unida, livre da hegemonia europeia, constituiria uma fonte de força e apoio aos negros em todo o mundo. Essa visão, raiz mais profunda daquilo que viria a ser conhecido como pan-africanismo, encontra-se presente, mesmo que de forma incipiente, no ideário dos principais movimentos de luta organizada contra a escravidão nas Américas. Estava presente em Palmares, que congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe, os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti.

O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do mundo africano. Não há nenhuma conotação racista nessa unidade, que se baseia não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída, fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do Caribe.

O primeiro registro histórico de uma reivindicação de caráter tipicamente pan-africano data de meados do século XVIII, na forma de uma petição em que escravos da colônia inglesa que um dia se transformaria nos Estados Unidos da América pleiteavam a volta à África depois de libertados. A mesma ideia presidiu à fundação em 1787, por um grupo de afro-americanos, da cidade de Freetown - que mais tarde viria a ser a capital da Serra Leoa -, revertendo um projeto originalmente racista e paternalista que só ganhou força quando ressuscitado e recuperado por africanos e descendentes oriundos do Caribe e da América do Norte.

O século XIX assistiu ao crescimento e consolidação do ideal pan-africano, impulsionado, nos Estados Unidos, por nomes como Prince Hall, John Russworm, o Bispo McNeil Turner e o grande ativista Edward Blyden. O mesmo ideal que, sob diferentes formulações, propelia ao mesmo tempo os movimentos anticoloniais africanos. Na África do Sul, por exemplo, desde a sua criação, no início deste século, o Congresso Nacional Africano, que décadas mais tarde concretizaria o sonho aparentemente utópico de um governo de maioria negra, incorporou integralmente ao seu programa o ideal pan-africano. Como se percebe no profético discurso do nacionalista sul-africano Isaka Seme, proferido em 1905 na Columbia University:

O gigante está acordando! Dos quatro cantos da terra os filhos da  África marcham em direção à porta dourada do futuro, carregando o registro de proezas de valor realizadas.

Dentre os inúmeros intelectuais e ativistas dedicados à causa pan-africana nestes últimos dois séculos, um nome se destaca: o de Marcus Garvey, responsável pela fundação do principal movimento internacional negro em toda a história - a UNIA (Universal Negro Improvement Association, Associação Universal para o Avanço Negro), organização que chegou a ter 35 mil militantes inscritos nos Estados Unidos, 52 filiais em Cuba, oito em Honduras, oito na África do Sul, 47 no Panamá e 25 na Costa Rica -, onde tive a oportunidade de visitar o casarão histórico em que funcionou seu quartel-general para a região, ainda preservado na Província de Limón. Além de sucursais no Brasil, Equador, Nigéria, Porto Rico, Austrália, Nicarágua, México, Barbados, Serra Leoa, Inglaterra e Venezuela. 

Marcus Garvey nasceu em St. Ann's Bay, na Jamaica, a 17 de agosto de 1887. Filho de um pedreiro do mesmo nome, descendente dos aguerridos maroons, que desafiaram - por vezes com sucesso - a ordem colonial britânica na Jamaica e em todo o Caribe, cedo demonstrou uma aguda inteligência e uma inquietação em face de problemas sociais e raciais que iria acompanhá-lo até a morte. Já aos 16 anos, como aprendiz de gráfico, seu primeiro emprego, o jovem Garvey iniciava sua atuação como ativista político, participando de uma greve de sua categoria. Pouco depois, publicou seu primeiro jornal, The Watchman (O Vigilante), em que expunha suas ideias e preocupações sobre temas vinculados a raça e classe.

Essas preocupações o levariam em frequentes viagens ao exterior, nas quais a visão dos descendentes de africanos ocupando em toda parte a base da pirâmide social acabaria consolidando suas posições ideológicas e forjando os elementos essenciais de sua plataforma anti-racista, antiimperialista e anticolonialista. Assim foi no Panamá, porto de destino de milhares de jamaicanos atraídos pelos empregos oferecidos com a construção do Canal, mas discriminados em favor dos operários brancos. Também no Equador, na Nicarágua, em Honduras, na Colômbia e na Venezuela, onde os negros, empregados na mineração ou nas plantações de tabaco, pareciam incapazes de melhorar as humilhantes condições em que viviam. 

Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 de idade, chega a Londres, onde vai trabalhar, estudar e desenvolver-se na percepção de novas dimensões da luta negra. A capital do Império Britânico, ainda nos picos de seu poderio, era o ponto focal da efervescente atividade intelectual e política que marcou o período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, em 1911, a cidade abrigara um Congresso Mundial sobre Raça, organizado sob os auspícios do Movimento Inglês de Cultura Ética - o mesmo Congresso em que o representante brasileiro declarou candidamente estar o Brasil resolvendo seu problema racial por meio da miscigenação, que acabaria com os negros dentro de um século. À miscigenação, acrescente-se, devemos somar as péssimas condições de vida que ajudariam a liquidar o povo afrodescendente neste país. A literatura, as atitudes e os debates relativos a esse Congresso ainda eram motivo de acesas polêmicas quando Marcus Garvey chegou a Londres. Igualmente importante era a nova literatura anticolonial produzida na África Ocidental.

As ideias do jovem Garvey sobre a redenção africana ganharam contornos definitivos quando se associou ao intelectual nacionalista Duse Mohammed Ali, um egípcio de ascendência sudanesa que publicava o jornal mensal The African Times and Orient Review. O período londrino completou a educação política de Marcus Garvey. Ele estava pronto para a sua tarefa. Em 1914, retornou à Jamaica e fundou uma organização, que denominou Associação Universal para o Avanço Negro e Liga das Comunidades Africanas. Dois anos depois, encorajado pelo líder afro-americano Booker T. Washington, desembarca em Nova York. No Harlem, toma contato com as especificidades da questão racial nos Estados Unidos. Os negros do Sul fugiam para o Norte, deixando atrás de si o sistema aparteísta do Jim Crow, os linchamentos, a falta de direitos políticos, a servidão e a miséria. No Norte, ganhavam melhores salários nas fábricas, que agora tinham de alimentar a máquina de guerra, mas eram obrigados a viver em casas caindo aos pedaços, em bairros miseráveis, e seus filhos frequentavam escolas precárias, tanto nas instalações quanto no ensino. Os poucos que ousavam usar estratagemas para comprar residências em bairros de brancos viviam apavorados pela possibilidade de bombas racistas explodirem em suas casas ou de suas famílias serem ameaçadas na rua.

Não existia nessa época uma organização verdadeiramente negra em Nova York. As que havia eram multirraciais, dirigidas por brancos e mestiços de pele clara. Garvey começou sua pregação discursando nas esquinas do Harlem. Logo precisou ocupar espaços maiores, na medida em que crescia o público interessado em sua mensagem positiva, que falava de uma ação internacional em favor do negro. Essa reação estimulou Garvey a instalar nos Estados Unidos a sua UNIA, que se distinguia das demais organizações por ser exclusivamente negra e defender um programa ousado e radical. Categorizando a luta negra como de direitos humanos, e não somente de direitos civis, o que implicitamente estabeleceria seu caráter internacional, já em 1920 Marcus Garvey articulava a distinção fundamental assinalada por Malcolm X nos anos 60, contribuindo para elevar a luta negra a um patamar superior ao do integracionismo liberal.

Garvey compreendeu três necessidades básicas do negro em todo o mundo: a de dignidade e auto-respeito como povo unido; a de uma África independente e unida como base de força central; e a de instituições autônomas para impulsionar a vida das comunidades negras. Além disso, como nenhum outro, antes ou depois dele, Marcus Garvey percebeu a importância das comunidades negras das Américas Central e do Sul para a luta pan-africanista internacional, inspirada no lema "A África para os africanos, na própria pátria e no exterior".

Em 1920, no auge do prestígio de Garvey, a UNIA organizou a I Convenção dos Povos Africanos do Mundo, com a presença de 25 mil representantes e delegados de todos os continentes. O produto mais importante dessa Convenção foi a Declaração de Direitos dos Povos Negros do Mundo, que condenava o colonialismo, afirmava o "direito inerente do negro de governar a África", instituía o vermelho, o preto e o verde como as cores simbólicas do pan-africanismo, e exigia o fim dos linchamentos e da discriminação racial nos países da diáspora africana, bem como o ensino da História Africana nas escolas públicas.

A independência econômica era outro fator enfatizado no programa da UNIA. Garvey exortava seus seguidores a "comprar de negros", a preferir negociantes de sua própria raça. Atendendo o apelo de Booker T. Washington à auto-suficiência, a UNIA iniciou diversos projetos na área empresarial, incluindo a Corporação de Fábricas Negras, destinada a ajudar empresários da comunidade. O que é mais importante, Garvey fundou a Black Star Steamship Line, para funcionar como laço comercial e espiritual entre os negros de todos os lugares que seus navios alcançassem. Para surpresa de seus críticos, entre 1919 e 1925 Garvey juntou dinheiro suficiente para adquirir quatro navios e estabelecer ligações comerciais com o Caribe.

Embora os navios da Black Star Line transportassem tanto carga quanto passageiros, o objetivo não era um retorno físico de todos os negros à África, que ele sabia ser impossível, mas antes um retorno de caráter simbólico e espiritual. Garvey acreditava, contudo, ser dever dos descendentes de africanos contribuir, com seu trabalho, conhecimento e tecnologia, para o fortalecimento do Continente-Mãe, tendo em vista uma futura derrubada de fronteiras e a criação de uma nação unificada. Nesse sentido, chegou a estabelecer negociações com o Governo da Libéria. 

Se granjearam uma legião de seguidores, as ideias de Garvey também o fizeram colecionar desafetos, entre brancos e negros, à direita e à esquerda do espectro político. Creio não ser preciso enfatizar o perigo que ele representava para o establishment, com suas ideias de autonomia, dignidade e auto-respeito. Problemas com a administração da Black Star Line acabaram fornecendo o pretexto para que o FBI o prendesse, em 1923, sob falsas acusações, o que causou uma gigantesca passeata de protesto, que reuniu 150 mil pessoas, de várias nacionalidades, nas ruas do Harlem. Deportado para a Jamaica em 1927, Garvey foi recebido pelo povo de Kingston, a capital, como um verdadeiro chefe de estado - mas como uma ameaça pela elite, branca e negra. Essa oposição, materializada sob a forma de dificuldades jurídicas, não o impediu de se eleger, na capital, para um cargo correspondente ao de vereador, nem de publicar um novo jornal, The New Jamaican (O Novo Jamaicano).

Em 1935, ano em que a Itália de Mussolini invade a Etiópia, então a única nação independente da África, provocando um acirramento das discussões sobre colonialismo e racismo, Garvey retorna à Inglaterra, onde passará seus últimos anos. Seu propósito era cobrar diretamente do Império Britânico a redenção do Continente Africano. Os ingleses não se preocuparam muito. O Império vivia seu último período de esplendor, dominação e arrogância. Não estava, assim, inclinado a dar ouvidos a esse súdito da Coroa que agia como um cidadão, exigindo os direitos básicos da cidadania. Era também a época da Grande Depressão, cujas consequências se abatiam com maior impacto sobre os descendentes de africanos. Garvey viveu seus últimos anos na pobreza, embora sem perder o orgulho de maroon que o projetara mundialmente nas décadas precedentes. Em janeiro de 1940, um ataque de paralisia o pôs de cama, e alguns jornais publicaram que ele havia morrido na miséria. Cartas e telegramas choveram sobre seu escritório. A secretária evitava que essa correspondência chegasse a suas mãos, mas ele acabou tendo acesso a ela. As manchetes falando de sua morte causaram-lhe um choque do qual não se recuperou, vindo a falecer no dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorridos 57 anos de sua morte, sua mensagem ao mundo continua válida:

Ó África, acorda

A aurora está chegando

Não mais és maldita

Ó bondosa Terra-Mãe 

De longe teus filhos e filhas

Se dirigem de volta a ti

Sobre as águas ressoam seus gritos

De que a África será livre.

A filosofia de Garvey não é perfeita, nem fornece uma base adequada para a moderna teoria e prática da luta africana. Em consequência, é fácil e legítimo levantar críticas construtivas às suas ideias e ao seu movimento. Mas não se pode negar o legado que ele deixou como fundamento essencial à organização política do negro. Seu espírito continua vivo, apesar dos incansáveis esforços de seus adversários em destruí-lo. Em seu livro The Black Jacobins (Os jacobinos negros), o intelectual antilhano C.L.R. James - que em vida foi meu amigo e apoiou as reivindicações do Movimento Negro brasileiro ao VI Congresso Pan-Africano, realizado em 1974 na Tanzânia - observa que dois caribenhos, "usando a tinta da Negritude, inscreveram seus nomes de maneira indelével na história de nosso tempo". James está se referindo a Aimé Césaire e Marcus Garvey. Para ele, Garvey está na vanguarda do grupo de negros radicais do século XX cujas ideias e programas ainda reverberam nos movimentos de libertação de nossos dias. Isso se deve, em grande medida, ao trabalho incansável daquela que por décadas o acompanhou na luta e que, depois de sua morte, dedicou a existência à preservação de sua memória e à divulgação de suas ideias. Estou falando de sua viúva, Amy Jacques Garvey, por quem tive a honra de ser recebido em minha passagem pela Jamaica, em 1973. 

O garveísmo inspirou muitos líderes africanos, como o ganês Kwame Nkrumah, apóstolo do pan-africanismo, bem como a jovem liderança que, nos anos 60, faria avançar a um ponto sem precedentes a luta dos afro-americanos. Sua preocupação com a auto-imagem dos negros, com o valor do ensino da História Africana, com a unidade dos povos da África e da diáspora, mas sobretudo sua disposição de homem simples e prático, capaz de traduzir para as massas negras despossuídas a mensagem do pan-africanismo, e de tomar medidas práticas para concretizá-la - tudo isso fez de Marcus Garvey um homem que merece a admiração e o respeito, não apenas dos africanos e seus descendentes, mas de todos aqueles comprometidos de coração com a mudança efetiva das relações sociais e raciais.

Axé, Marcus Garvey!

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