Ifi
Amadiume: A teoria dos valores Matriarcais como base para a Unidade Cultural
Africana
Introdução do livro A Unidade Cultural da África Negra, de Cheikh Anta Diop, edição da Karnak House, 1989.
Ifi
Amadiume
Foi em 1983 que quase
me encontrei com Cheikh Anta Diop em uma comunidade sufi em Madina-Kaolack, no
Senegal. Sabendo dos meus interesses políticos e intelectuais, o Iman e Sheik dessa comunidade me disse, logo que cheguei, que por pouco eu
teria me encontrado com Cheikh Anta Diop. Adiante, em 1985, me vi bem próxima
do grande sábio Africano novamente. O organizador da conferência de 1985, logo
quando Cheikh Anta Diop havia feito uma publicação em Londres, sabendo de como
a notícia me afetaria, pediu-me para ir encontrá-lo. Mesmo que grávida na
época, eu rapidamente fui até ele. Direcionei-me para falar com ele. Ele
estendeu a mão retornando a saudação. Foi quando alguém apareceu entre nós para
conversar com ele, então deixei conversarem e voltei ao meu assento.
Mais tarde, em 1985,
escrevi Afrikan Matriarchal
Foundations: The Igbo Case [Base/Origem do Matriarcado Africano: O caso
Ibo] em que eu tentei comprovar algumas das ideias levantadas por Diop
em A Unidade Cultural da África
Negra: As Esferas do Patriarcado e do Matriarcado na Antiguidade Clássica.
Eu dediquei o livro em tributo a Diop em Ibo, Ebunu ji isi eje ogu, "Carneiro corajoso que luta com sua mente". Claro
que me referi lutar sem medo, com coragem e inteligência; o que Diop chamava “racionalização”.
Depois, em 1986, eu li um aviso em um jornal nigeriano que o nosso grande
filósofo tinha morrido de um ataque cardíaco e eu chorei. Ele tinha apenas 62
anos de idade. Ao ser convidada para escrever essa introdução do livro A Unidade Cultural da África Negra,
edição da Karnak House, eu me
encontrei novamente no caminho de Cheikh Anta Diop. Espero não me perder em
adulação cega, mas avaliar objetivamente os méritos deste livro, não só como
munição para lutar contra os racismos antiÁfrica, mas por sua relevância no
pensamento político contemporâneo Africano e para o desenvolvimento de um
programa de estudos africanos, de classe mais progressiva e de consciência de
gênero.
Diop escreveu este
livro durante as lutas nacionalistas dos anos 50 que foi um período de debate
pela independência Africana. Como um pan-africanista acima de tudo, atacou
aqueles que não poderiam conceber a ideia de uma Federação Africana
independente ou de um Estado Africano multinacional. Ele, dessa forma, se
comprometeu a demonstrar “nossa unidade cultural orgânica”, apesar de
uma “aparência enganadora da heterogeneidade cultural”. Por que Diop
adotou essa abordagem orgânica? Uma razão pode ser o fato de que aquele era o
período da abordagem orgânica (o conceito de homogeneidade de uma sociedade
específica que exclui as contradições sociais) seguido pelos formalistas nas
ciências sociais. Esta abordagem foi mais tarde negada pelos funcionalistas e
estruturalistas. No entanto, o trabalho de Diop faz mais sentido na escola
estruturalista, pois ele está basicamente tratando de ideias. A outra razão
pode ser que neste assunto em particular, Diop não estava simplesmente
preocupado com os acadêmicos puramente abstratos, mas tinha um compromisso
político de tentar reconstruir a história e a cultura do seu povo, que havia
sido submetido por cerca de 900 anos de pilhagem pelos árabes e os europeus,
isso nem mesmo inclui a destruição da antiga civilização egípcia africana.
Diop, não obstante, defendeu que aquilo que nos une é muito mais fundamental
que as nossas diferenças superficiais, e que estas diferenças foram impostas
externamente. Elas derivam da herança colonial.
O que Diop teve firme
controle e usou para discutir a “profunda unidade cultural” da África
foi a história do matriarcado Africano. Ele assim procedeu desde a análise da condição
material à superestrutura ideológica. Ao fazê-lo, Diop recuperou nossa história
Afrocêntrica, aplicando uma visão holística e uma análise estrutural do mito a
fim de expor as ideias por trás dos acontecimentos. O resultado foi um modelo compreensível
para uma história social Africana.
As forças racistas,
colonialistas e imperialistas que Diop estava confrontando naquele momento o
obrigou a não argumentar exclusivamente na análise do matriarcado na África.
Ele teve de enfrentar o mundo dos chamados “especialistas” sobre o assunto.
Diop, assim, passou a fazer uma crítica extensa e devastadora da teoria de
Bachofen sobre o matriarcado, e da teoria da família de Morgan.
A teoria evolutiva do
matriarcado de Bachofen baseou-se na análise da literatura grega clássica. A
partir desta fonte grega limitada, ele passou a generalizar toda a organização
social humana da evolução de um período em que não houve casamento, mas “barbárie”
e “promiscuidade sexual”, baseado em um sistema de descendência matrilinear até
um período de casamento e matriarcado baseados na supremacia da mulher. A fase
final foi o período do imperialismo masculino, isto é, o patriarcado. Como aponta
Diop, Bachofen não só criou esses períodos evolutivos, mas também impôs um
julgamento preconceituoso, concluindo que o patriarcado é superior ao
matriarcado.
Mesmo assim, o que é
interessante na análise da Oresteia,
de Ésquilo, feita por Bachofen não é tanto a derrota do matriarcado pelo
patriarcado, mas o fato de que para fazer essas alegações falsas de derrota ou
de superioridade, ele teve que inventar um tipo de pseudoprocriação em rituais
abstratos ou religiões e adequar o papel pro-criativo factual básico de maternidade
biológica natural e esse “laço mais íntimo
de amor” [‘closest bond of love’]. Isto é basicamente o que os papéis
de sacerdócio ou de iman têm feito. Desse
modo, os homens assumem a tarefa de criação que era da mãe; eles chegam até ao
ponto de imitar a vestimenta das mulheres. No ritual patriarcal em que esta
construção é mais evidente vemos homens vestidos como mulheres. É por isso que
as verdadeiras mulheres são banidas desses papéis. Esse foi o papel de Apollo e
Athena. Além disso, para que essa pseudoconstrução tivesse sucesso, dever-se-ia
reclassificar mulheres como traidoras a exemplo de Athena. Uma vez que podemos
compreender esta análise, então não precisamos ir à antiguidade para ver esta
luta ou disputa entre sistemas de pensamento matriarcais e patriarcais. Muitas
teorias feministas atuais também são incapazes de lidar com a questão do matriarcado,
pois elas estão ainda ancoradas na periodização de Bachofen. Ou talvez, porque
elas não têm nem memória histórica, nem cultural do matriarcado, e entendem o
matriarcado não tanto no sentido de instituições sociais, organizações de parentesco,
instituições culturais de mulheres, mas como uma sociedade totalmente governada
por mulheres. Quando elas não conseguem encontrar essa tal sociedade, descartam
a questão do matriarcado e o coloca como mito.
Diop ilustra como a
compreensão de Morgan acerca dos sistemas de casamento e parentesco permaneceu
caótica. A partir do estudo dos indigenas iroqueses da América do Norte, Morgan
tinha, com base em seus conceitos etnocêntricos da estrutura da família nuclear
da civilização europeia, postulado quatro estágios na evolução, desde o
matrimônio, família e o matriarcado dos povos “bárbaros”, até o patriarcado e a
monogamia de “civilizados” da Grécia e Roma. Como mostra Diop, a classificação
de Morgan era basicamente esta equação: arianos (Indo-Europeus) = brancos =
civilizados; e não-arianos = outros = selvagens. Morgan era um racista. Esta
teoria era racista.
Em suas teorias de um
matriarcado orgânico universal, tanto Bachofen como Morgan estabeleceram uma
hierarquia falsa e racista dos valores e sistemas sociais. O sujeito colonial
da antropologia reforçou essa divisão e o racismo como resultado de seu
zoneamento da humanidade em suas sociedades ditas primitivas = outros, e
modernas - a deles = sociedades civilizadas. Essas noções racistas e ignorantes
de civilizações culturais altas e baixas equiparou feudal, piramidal, sistemas
políticos burocráticos e imperialistas como cultura “alta” e os sistemas
políticos descentralizados e difusos como cultura “baixa” e primitiva. Como a
consciência política de hoje busca reverter essa falácia, é marcada pelos
movimentos de participação horizontal e descentralizada.
A posição de Diop revela
que o matriarcado é específico, e não geral, dado a influência da ecologia em
sistemas sociais. Ele, portanto, apresentou sua hipótese de berço duplo e seguiu
para discutir duas zonas geográficas, do Norte e do Sul. Sua tese é que o
matriarcado se originou no Sul agrícola, usando a África para ilustrar seu
argumento, enquanto que o patriarcado originou-se no Norte, sendo nômade. O
cinturão do meio era a bacia do Mediterrâneo, onde o matriarcado precedeu o
patriarcado. Considerando que na Ásia Ocidental, ambos os sistemas foram
sobrepostos um sobre o outro.
Comparando estas
culturas Norte e Sul com base na condição da mulher, no sistema de herança, pelo
dote e filiação de parentesco, Diop mostra como a cultura do Norte indo-europeu
negou os direitos das mulheres e subjugou-as sob a instituição privada da
família patriarcal, como foi argumentado por Engels. Os patriarcas do Norte
queriam as mulheres sob seus controles confinando-as em casa e negando um papel
público e de poder. Neste sistema, um marido ou um pai tinha o direito de vida
e morte sobre uma mulher. A viagem de mulheres para o casamento agravou este
controle patriarcal. Este sistema do Norte foi caracterizado por dote, adoração
ao fogo e cremação.
Em contraste, na
cultura matriarcal do Sul, tipificada pelo sistema agrícola e sistema de
sepultamento, os maridos vinham para as esposas. As esposas eram as donas das casas
e guardiãs da alimentação. A mulher era a agricultora. O homem era o caçador. O
poder da mulher foi baseado em seu importante papel econômico. Este sistema
também foi caracterizado por bridewealth
(riqueza da noiva) e o forte laço entre irmão e irmã. Mesmo no casamento onde
uma mulher viajava esse vínculo não era completamente rompido. A maioria das
regras de funeral prescrevia o retorno do cadáver da esposa para sua casa
natal. Trocas funerais também indicavam uma compensação pela perda de uma
mulher, como as minhas próprias pesquisas confirmaram.
Esse sistema
matriarcal do Sul também foi marcado pela sacralidade da mãe e sua autoridade
ilimitada. Havia juramentos invocando o poder da mãe, isto é, a ritualização
daquela matricêntrica, mãe e
filho, “o laço mais íntimo de amor” citado até mesmo em Eumenides. Este é o “espírito da
maternidade comum”, geralmente simbolizado nas religiões africanas. Em Ibo,
é Oma, Umunne, Ibenne. Neste
conceito religioso africano, é a mãe que dá aos seus filhos e à sociedade em geral
o dom do “pote da prosperidade”, que em Ibo é chamado de ite uba.
A mãe também concede
o pote de segredos/ mistério/ magia/ conhecimento sagrado/ poder espiritual. Em
Ibo, isso é chamado de ite ogwu. Em wolof, é demm. Todos os mitos, lendas e histórias
de heroísmos africanos não adulterados atestam isso. Como diz Diop, essas
ideias “remontam aos primórdios da mentalidade africana. São, portanto,
arcaicas e constituem, no presente, uma espécie de fossilização no campo das
ideias atuais. Elas formam um todo que não pode ser considerado como a
continuação lógica de um estado anterior e mais primitivo, onde uma herança
matrilinear teria governado exclusivamente.” (p.34) A construção social ou
cultural da paternidade nesses sistemas matriarcais levou os antropólogos sociais
preconceituosos e ignorantes a assumir que nossas sociedades não conheciam os
fatos da concepção!
Na teoria de Diop
esses dois sistemas são rígidos, “foi demonstrado que essas coisas ainda
ocorrem sob nossos próprios olhos, nos dois berços e com pleno conhecimento dos
fatos. Não é, portanto, lógico imaginar um salto qualitativo que explicaria a
transição de um para o outro”. (p.41) Diop, no entanto, insistiu em
atribuir a mudança social principalmente a fatores externos, como resultado de
sua visão orgânica da sociedade. Essa compreensão orgânica da sociedade e da
cultura contribuiu para que ele atribuísse os sistemas mistos das sociedades
oceânicas ao papel de migração e dispersão.
Essa atribuição de
mudança social apenas a fatores externos apresenta não apenas uma visão
orgânica, mas também estática da sociedade. Diop viu a África tradicional como
um continente onde as civilizações antigas permaneceram preservadas, já que a
África parecia mais substancialmente resistente a fatores externos. Assim, Diop
foi capaz de apresentar dois sistemas polares de valores para seus Berços Norte
e Sul. A África, como representante do Berço do Sul do matriarcado, valoriza a
família matriarcal, o estado territorial, a emancipação da mulher na vida
doméstica, o ideal de paz e justiça, bondade e otimismo. Suas literaturas
favoritas eram romances, contos, fábulas e comédias. Sua ética moral foi
baseada no coletivismo social.
O contrastante Berço
do Norte, como exemplificado pela cultura ariana da Grécia e Roma, valorizava a
família patriarcal, a cidade-estado, a solidão moral e material. Sua literatura
foi caracterizada pela tragédia, ideais de guerra, violência, crime e
conquistas. A culpa, o pecado original e o pessimismo, impregnaram toda a sua
ética moral baseada no individualismo.
Diop, tendo assim
contrastado um sistema com o outro, passou a fornecer uma história geral de
ambos os berços e suas áreas de influência. Para provar seu ponto de vista de
que as mulheres africanas já eram rainhas e guerreiras, participando da vida
pública e política, enquanto suas contemporâneas indo-europeias ainda estavam
subordinadas e subjugadas sob a família patriarcal, Diop nos apresenta uma
série de poderosas antigas rainhas africanas e suas conquistas. Na Etiópia,
houve a rainha de Sabá, a rainha Candace, que lutou contra o exército invasor
de Augusto César. No Egito, havia a rainha Hatshepsout, descrita como “a
primeira rainha da história da humanidade”. Cleópatra foi intitulada “Rainha
dos Reis”. Mesmo nos imensos e poderosos impérios de Gana, no século III
d.c., os valores matriarcais eram a norma. O mesmo acontecia no Império do
Mali.
Consistente com sua
teoria do fator externo na mudança social, Diop atribui a introdução da
patrilinearidade na África à vinda do Islã no século X. Mesmo assim, ele
argumenta que a patrilinearidade ficou na superfície e não penetrou
profundamente nos sistemas matriarcais de base. Ele atribui as mudanças mais
recentes em direção ao patriarcado a mais outros fatores externos como o
islamismo, o cristianismo e a presença secular da Europa na África, simbolizada
pela legislação colonial, direitos a terra, nomeação do pai, monogamia e a classe
das elites educadas no Ocidente e contato moral com o Ocidente.
A teoria de dois
sistemas rígidos de Diop me parece difícil de aceitar academicamente, dadas as
limitações impostas à abordagem orgânica das sociedades, que leva à
representação da sociedade como estática e não dinâmica em si mesma. No
entanto, aceito a irredutibilidade da unidade matriarcal como um fato
social. O patriarcado só pode se basear em uma negação desse fato, daí surge
suas falsificações. O patriarcado é tanto uma construção social quanto
cultural, consequentemente a equação do patriarcado com o controle e a opressão
das mulheres. O fato 'natural' e social da unidade matriarcal é base para todas
as sociedades, como simbolizado pela mulher grávida.
Consequentemente, a
questão é se essa estrutura básica da mãe e do filho é reconhecida na
organização social, cultural e política. Onde é reconhecido, as mulheres seriam
obviamente organizadas para garantir esse reconhecimento. Pelo que sabemos, as
mulheres foram organizadas em sociedades indígenas africanas. As mulheres Ibo,
por exemplo, ainda cantam: "a mulher é a principal, é a principal, é
a principal”, repetindo e repetindo a declaração e a mensagem. Assim também é a
sagacidade e infalibilidade de mães sendo clamada repetidamente - por mulheres.
As mulheres africanas eram aquelas socioeconomicamente organizadas que estavam
no controle de certas áreas e envolvidas nos processos de criação de
ideologias.
Todavia, é necessário
aplicar uma multiplicidade de abordagens teóricas para obter uma visão das
dimensões internas das relações sociais e de gênero. Seria necessário aplicar
teorias de processo social, conflito e dissensão, a fim de obter um quadro
muito mais completo de sociedades e culturas, não apenas um conceito orgânico
dado e imutável dos chamados sistemas formais. Homens e mulheres são animais
racionais, capazes de formar grupos de interesses políticos e conflitantes com
base no sexo, idade, classe, etc., diferenças ou semelhanças. Mesmo o indivíduo
pode estar em conflito com a instituição com o argumento de diferenças desconstrucionistas.
É por isso que tomei
uma posição diferente em Afrikan
Matriarchal Foundations e argumentei que, em todos os tempos da
história humana, os princípios matriarcais e patriarcais de organização social
ou de ideologias apresentaram dois sistemas justapostos e contestadores. Por
exemplo, se essas rainhas listadas por Diop estivessem atuando apenas em
sistemas matriarcais, ficamos imaginando por que precisavam usar símbolos
masculinos de autoridade, como Nzinga, de Angola, vestida com roupas
masculinas, ou Hatshepsout, no Egito, que usava barba? O masculinismo da maioria dessas rainhas guerreiras rendeu-lhes
descrições como ironmaidens (donzelas
de ferro) e Boadiceias.
Pode-se argumentar
que, como resultado das diferenças matriarcais básicas nos valores sociais, a
centralização e o feudalismo na África expulsariam as Rainhas que estavam confortavelmente
assentadas em sua feminilidade, enquanto os valores patriarcais e centralizados
indo-europeus produziriam as Boadiceias e donzelas de ferro, geralmente
alienadas de sua feminilidade. Nos tradicionais sistemas políticos
descentralizados africanos, a representação simbólica das deusas era simplesmente
em mulheres tituladas, que não eram nem Rainhas nem donzelas de ferro, como por
exemplo, Igo Ekwe titulava mulheres.*
Esse debate também
foi assumido por Diop, quando ele desconstruiu o mito clássico da Amazona,
mostrando como esse mito era derivado de um berço eurasiano, onde “reinava
um feroz patriarcado”. Foi a opressão patriarcal contra as mulheres,
fabricada no mito clássico da Amazona, que levou Diop a fazer essa
afirmação: “Matriarcado não é um triunfo absoluto da mulher sobre o homem;
é um dualismo harmonioso, uma associação aceita por ambos os sexos, para
construir uma sociedade sedentária, onde cada um pode desenvolver-se plenamente
seguindo a atividade mais adequada à sua natureza fisiológica. Um regime
matriarcal, longe de ser imposto ao homem por circunstâncias independentes de
sua vontade, é aceito e defendido por ele”. (p.108)
Como Diop diz
corretamente sobre contingentes femininos militantes ou militares na
África, “o ódio aos homens é estranho para elas e assim possuem a consciência
de 'soldados' lutando apenas pela libertação de seu país”.
O que é importante
para nós hoje não é o legado de rainhas guerreiras, mas uma análise minuciosa
do sistema primário de organização social em torno de uma unidade cultural
matrilinear economicamente autossuficiente e um sistema linguístico livre de
gênero, que é o legado do matriarcado africano. Precisamos entender suas
religiões e culturas associadas à deusa, que ajudaram as mulheres a se
organizarem efetivamente para lutar contra as forças controladoras do
patriarcado, alcançando assim uma espécie de sistema de freios e contrapesos.
Isso é basicamente o que as chamadas religiões monoteístas e abstratas do islã
e do cristianismo que governam a África hoje subvertem e continuam a atacar. A
questão fundamental para aqueles que propõem essas religiões como um possível
meio de alcançar uma unidade pan-africana de federação é: estas religiões são
capazes de aceitar e acomodar nossas deusas e nossos matriarcados, isto é, as
verdadeiras culturas primordiais das mulheres africanas na atual política de
primordialismo, manipulado por nacionalistas e fundamentalistas?
A África do interior
propriamente dita, que possuía estruturas tais que favoreciam o domínio das
deusas, matriarcas, rainhas, etc., ainda hoje estão presentes conosco. Mas
esses sistemas estão enfrentando erosão, enquanto homens africanos da elite
manipulam os patriarcados novos e emprestados para forjar o mais espantoso “imperialismo
masculino”, ainda desconhecido em nossa história. Como vamos subverter a isso,
já que a primeira baixa tem sido a autonomia e o poder da organização das
mulheres tradicionais?
Em contraste com o
aparente conluio das filhas africanas atuais com o establishment, a questão do papel e do status da mulher na sociedade, longe de ser um debate do século XIX,
desde os anos 60 reuniu uma nova força na literatura feminista e na erudição
ocidental. Na Alemanha, por exemplo, o inquérito sobre o matriarcado é levado
muito a sério. Nos EUA e na América Latina, a busca das mulheres pela
espiritualidade predomina. Na Grã-Bretanha, é uma busca por deusas antigas. Há
também um renascimento dos cultos de bruxaria. Todo o movimento Verde e
Ecológico deriva seu conceito e ideologia do chamado animismo africano, que
agora está sendo reconhecido como uma adoração da natureza. Em tudo isso, a
etnografia africana serve como um banco de dados, mas com pouco reconhecimento
por parte dos usuários. A história da apropriação grega da filosofia e da
ciência africanas no século XIX se repetiu nesta véspera do século XXI?
Ironicamente, em
todos esses movimentos, é nesse continente de matriarcados, a África, onde não
há tal preocupação por parte dos eruditos/intelectuais africanos. Seria devido
ao fato do controle de homens e mulheres da elite, cristãos e islamitas? Seria
também porque somos agora governados diretamente pelo Fundo Monetário Internacional
(FMI), pelo Banco Mundial e por agências de ajuda estrangeiras e os neomissionários
que nos 'arremessam' dinheiro, comida, roupas e seus livros/conhecimentos,
incluindo seus resíduos tóxicos? Numa espécie de negação abstrata da realidade
social e material da experiência de cada criança africana e sua mãe, como é
característico de novas invenções patriarcais masculinistas de homens africanos especialmente da elite, esta
contínua prática de cópia estrangeira e sua esquizofrenia sintomática continua
a ser o destino da mente de uma África colonizada.
Como Diop assumiu a
questão fundamental do matriarcado a partir de uma perspectiva africana, em
oposição a uma luta comprometida pelos direitos das mulheres nos sistemas
patriarcais, qual estudioso vai aderir ao matriarcado de Cheikh Anta Diop? Para
ele, o matriarcado é um “conjunto de instituições favoráveis à feminilidade
e à humanidade em geral”. Como ele disse, a ciência social controlada pelos
homens só viu “liberdade perigosa e quase diabólica”. Alguém pode se
perguntar, por que os teóricos matriarcais ocidentais não citam o trabalho de
Cheikh Anta Diop?
A raiva contra Diop tida
pelos intelectuais brancos e pelo próprio interesse ocidental não diminuiu. Na
verdade, é muito comum hoje em dia ser papagaiado por uma classe particular de
africanos, que ainda estão sob a tutela, a supervisão e o controle dos brancos.
Quanto aos homens africanos, eles se sentem contentes em citar apenas os
aspectos do trabalho do grande pensador que servem ao seu propósito,
especialmente a recuperação da antiga civilização egípcia. Contudo, a tese fundamental
do trabalho de Diop, que se dá no matriarcado africano, é encarada com uma
menor relevância.
Nas descobertas mais
recentes na busca ocidental por origens raciais humanas, uma invenção racista de
preocupação apenas do Ocidente, Diop é reivindicado repetidas vezes acerca do
papel principal da mãe africana, seja na herança do gene ou da linguagem para a
raça humana, que continua a ser “muito cientificamente provado”. Mas a
apropriação racista se consolida mesmo nesta época de desconstrução - se esses
mais jovens de nossos filhos não chamam a mãe africana da humanidade de Lucy,
eles a chamam de Eva! Então, vemos novamente a apropriação do século XIX. Para
os cientistas, é impensável que o fóssil da nossa mãe africana, encontrada no
continente africano, conserve um nome africano! Isso cristaliza e simboliza a
natureza da relação da civilização europeia com a da África. Essa estrutura de
apropriação pode ser encontrada em todos os outros campos de relações.
Diop enfatizou: “Que
esse trabalho pode contribuir para o fortalecimento dos sentimentos de boa
vontade que sempre uniram os africanos de um extremo ao outro e, assim, mostrar
nossa unidade cultural orgânica”. Ele tornou imperativo que um
conhecimento completo de nossos desafios devesse ser aprendido com o passado, a
fim de “manter a consciência de que o sentimento de continuidade histórica
é essencial para a consolidação de um Estado multinacional”. Como Cheikh
Anta Diop, por causa de nossa história do colonialismo, os intelectuais
africanos, se quiserem estar livres da autonegação, devem desconstruir,
invalidar e reconstruir. A imposição de uma moeda comum e uma linguagem comum
acima dos nossos idiomas locais é um imperativo. Não importa qual língua, desde
que sua morfologia e sintaxe tenham origem africana, especialmente sobre a
formação de gênero. Não adianta nos impor um crioulo que incorporou todas as
estruturas patriarcais e racistas na sua origem. Todos podem, de fato, começar
pelo mesmo ponto de partida, se escolher a língua africana mais remota de
dentro dos arbustos e a levar a crescer conosco. Nesse caso, não haverá dúvida acerca
de imperialismo e ou qualquer desconfiança.
Neste projeto de
reconstrução, uma história social com consciência de gênero e de classe é uma
prioridade. O termo racista antropologia, que realmente deveria ter sido chamado
de a História Social, deve ser totalmente banido. Devemos adotar e elaborar a
historiografia de Cheikh Anta Diop, usando sua abordagem multidisciplinar para escrever
uma história social africana e reforçar o ensino da história social em nosso
currículo. A erudição africana atual só conhece a história cronológica de reis,
rainhas e conquistas. Como em nossas escolas e faculdades, não há história
social, nem história de base e a partir da base, nem a história de nossas
instituições sociais indígenas, como então podemos começar a construir uma
história e unidade africana sem esse conhecimento? Como nosso grande filósofo e
ativista político africano disse, que o compromisso geral do ativismo
intelectual leve à liquidação de todos os sistemas coloniais do imperialismo.
Sua visão do universo de amanhã é aquela imbuída do otimismo africano. Diop
previu assim o movimento ecológico?
Este livro
permanecerá um clássico enquanto houver homens e mulheres neste mundo e
enquanto o Ocidente persistir em sua história do patriarcado, do racismo e do
imperialismo.
Introdução do livro "A Unidade Cultural da África Negra", de Cheikh Anta Diop, edição da Karnak House, 1989.
Traduzido por Carlos R. Rocha (Fuca) - Insurreição CGPP
(atualizado 2020)