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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Ngugi wa Thiong'o: Sobre Colonização, Linguagem e Memória. (+vídeo)

Em todas as relações entre dominantes e dominados num sistema colonial, cheguei à conclusão de que os dominantes sempre impuseram sua linguagem aos dominados. Eu ficava me perguntando o porquê.

 Isso me forçou a analisar todo o projeto colonial. E para mim, eu vi o colonialismo realmente como um processo de alienação. Como nos personagens do meu romance "Weep not, Child" (Não chore, criança), a terra foi tomada. Não apenas a terra, mas também a força de trabalho dos colonizados também é usurpada.

São recursos cruciais, terra e mão-de-obra dos colonizados. Isso me pertenceria, pois teríamos controle sobre. Agora não tenho controle sobre isso, o outro é quem controla. ok?

É alienação, mas de uma maneira que me faz olhar para mim e para meus recursos e ver minha terra e os produtos do meu corpo sendo controlados por outra pessoa. Mas não só isso. A própria linguagem,  qual o papel da linguagem?

A linguagem foi muito crucial na evolução econômica, política e psicológica de qualquer comunidade. A linguagem medeia os processos econômicos, políticos e psicológicos de qualquer comunidade. Sem linguagem não teríamos também a divisão do trabalho, que é a base da comunidade humana.

Por esta razão, os idiomas são muito importantes. Mas não apenas o idioma em si, a linguagem também é portadora de memória. Sem memória não podemos mediar nosso relacionamento com a natureza nem nossa relação um com o outro. Não podemos muito menos mediar nossa relação com nossos próprios corpos e nossas próprias mentes.

Portanto, enquanto houver um poder colonial, é necessário impor sua linguagem aos colonizados. Porque de certa forma, se você impõe um idioma sobre as pessoas, você está aplicando e consolidando todos os aspectos econômicos, políticos e sócio psicológicos dessa comunidade. Muito importante...

E o mais crucial, você também controla a memória dessa comunidade. A linguagem de fato faz parte de um vasto sistema de nomeações. Se você nomeia, você domina.

Nomeando você identifica, nomear é possível somente porque é nomeando que você identifica. E se você identifica, isola os diferentes elementos do ambiente.

Vocês se lembram, quem já conhece, o romance do Robinson Crusoé. Robinson Crusoé está naufragado em uma ilha e descobriu alguém chamado “Sexta-Feira”. E supõe-se no relacionamento deles que “Sexta-Feira” não tem linguagem.

Aí chega um momento em que Robinson Crusoe está ensinando uma linguagem a Sexta-Feira. Então a primeira coisa é a nomeação, ele diz: “seu nome é Sexta-Feira.” Note que ele não pergunta pra Sexta-Feira, “Qual é o seu nome?” Ele disse, “seu nome é Sexta-Feira. Eu te nomeio. E meu nome é Mestre.” Presumivelmente, sempre que alguém perguntar a Sexta-Feira, “Quem é aquele homem?” “Oh, ele é o Mestre.”

Veja, é Crusoé quem nomeia Sexta-Feira e também nomeia a si mesmo, e assim já estabelece uma subordinação na relação deles. Quem era Sexta-Feira? O que acontecerá então...

Sexta-Feira enterra suas memórias plantando a memória de Crusoé, no corpo que agora se chama “Sexta-Feira”. Mas possivelmente Sexta-Feira tinha um nome antes. No corpo de Sexta-Feira é plantada memória de Crusoé. E Crusoé é um inglês, o que está no corpo de Sexta-Feira agora é a memória Inglesa.

Então, seu corpo a partir de então carrega essa memória. Sempre que você o vê, será Sexta-Feira. Você não se direciona à pessoa que estava lá antes. Não importa o que ele era chamado. Ele agora é Sexta-Feira, nomeado por Crusoé.

Recentemente, em 2003, fui convidado pela Fundação Biko para dar uma palestra. Eu fui, Biko nasceu em Eastern Cape, uma área que produziu Mandela, Mbeki. Muitos dos intelectuais mais importantes da África do Sul e com um impacto muito grande no resto do continente.

Na cidade, todos os campos, onde a maioria deles nasceu. Viajando lá, primeiro vejo um lugar chamado “Queenstown”. Então, outro chamado “Kingstown” na mesma área. Depois eu vou para “Williams Town” ou algo assim. Eu vim para uma cidade chamada Berlin, Frankfurt? Os nomes das ruas eram os mesmos

Fico procurando em volta para ver algum outro nome que venha falar sobre qualquer um desses gigantes do pensamento africano oriundos daquela área. Nada!

A memória do lugar, a memória do que era, a memória do que teria sido produzido ali, essa memória é enterrada por outra. Presumivelmente, aquele lugar tinha nome antes e também produziu esse nome. Esse nome significava a memória desse lugar, agora enterrada pela memória europeia.

- Trecho de sua fala na Universidade de Oregon, em 2005. Vídeo completo: Planting African Memory: The Role of a Scholar




por Fuca Insurreição CGPP. 2020.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

Miguel Angelo Sena da Silva Junior 
Coordenador da Posse de Hip Hop “Entre o Céu e o Inferno” 
MC no grupo de rap Insurreição CGPP 
Graduando em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

1. INTRODUÇÃO 
1.1 - O SER HUMANO AFRICANO 

O psicólogo social experimental Wade W. Nobles (ou Nana Kwaku Berko em banco e Ifagbemi Sangodare, em ioruba de ifa) afirma que o povo africano em toda a diáspora precisa voltar atrás e reconstituir o que esqueceu. De modo mais preciso, o que foi esquecido seria o próprio significado do que vem a ser africano quando antes do contato com o opressor branco. Para Nobles, o opressor conseguiu alterar "a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse senso alterado da consciência é o problema fundamental dos africanos" continentais e diaspóricos, isso porém, ocorre sem que fosse possível destruir o africano dentro de nós. Nobles fala de um lugar que muito contribui para a compreensão dos fenômenos ligados ao que alguns chamam de "genocídio" e outros "extermínio" de jovens negros no país. Nobles fala de uma psicologia negra emergente de base afrocentrada que surge do questionamento das limitações da psicologia ocidental (branca) e da necessidade de abordar "às consequências psicológicas negativas de ser africano numa realidade anti-africana". Essa nova abordagem epistemológica reivindica a necessidade de uma articulação séria entre a "natureza fundamental de ser africano (negro), seus significados psicológicos e funções associativos ou a teoria (s) necessária (s) com respeito aos processos psicológicos africanos "normais". Dado que um dos maiores desafios para mobilizar a opinião pública contra o quadro de homicídios de jovens negros é a existência de uma desumanização da vítima, a psicologia negra que Nobles propõe contribui muito para a nossa questão. 

    Sakhu Sheti é um termo usado por Nobles para esclarecer o que viria a ser uma psicologia negra, o termo extraído do Medu Netcher [A escrita de Deus], a palavra sakhu "significa a compreensão, o iluminador, o olho e a alma do ser, aquilo que inspira", já sheti "quer dizer entrar profundamente num assunto; estudar a fundo; pesquisar nos livros mágicos; penetrar profundamente". A psicologia negra busca obter "parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia" que traga a "compreensão plena da pessoa africana mediante a pesquisa, o estudo e o domínio do processo de 'iluminar' o espírito ou a essência humanos". Só com o exame e a explicação do significado é possível o entendimento humano para o africano, incluindo aí o funcionamento da natureza (essência) do ser humano. Essência aqui difere da noção de "essencialismo" proveniente do pensamento ocidental. Em África, "essência" ou natureza humana é algo ainda a ser explorada e traduzida para termos africanos, ou seja, é necessário romper com a restrição que é posta ao conhecimento africano quando este e suas aspirações está preso ao campo de visão dos instrumentos e das interpretações europeus. 

    A busca do sakhu, ou iluminação do espírito, afro-brasileiro, seria essa imersão na ideia africana do que vem a ser um ser humano ou uma pessoa, assim o Sakhu Sheti é a exigência de interrogar a linguagem e a lógica dos povos africanos tradicionais e assim apreender de forma profunda e nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos. Isso implica dizer que, apesar de trazidos a força, preso a grilhões, ou seja, destituídos de liberdade, isso não significa que os africanos "chegaram destituídos de pensamento ou crenças sobre o que eles eram", pelo contrário, "nossos ancestrais vieram com uma lógica e uma linguagem de reflexão sobre o que significava ser humano e sobre quem eles eram, a quem pertenciam e por que existiam". Logo, a interpretação do maafa da escravidão só pode ser realizada a partir do sheti. Assim Nobles justifica o conceito de maafa; 

"Marimba Ani [...] introduz o conceito de maafa e o define como grande desastre e infortúnio de morte e destruição além das convenções e da compreensão humanas. Para mim, a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente." 

   Dado esse pressuposto faremos uma incursão descritiva dos povos banto-congo, certamente o povo que mantem o maior contingente de descendentes na cidade de São Paulo, cidade escolhida pelos pesquisadores para o estudo da mortalidade de jovens negros por homicídios, especificamente por ação policial. 

    No que diz respeito à língua e à lógica nossos ancestrais angolanos acreditavam que uma pessoa era um construto de energia, espírito e poder. Nessa filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica combinada a uma espécie de vitalismo "a noção de força toma o lugar do ser e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou diminuição". Essa ideia de vitalismo certamente se refere ao fato de que; 

"[...] na visão banto-congo, [ser humano] é ser uma 'pessoa' que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total, perceptível e ponderável. A pessoa é ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia e dos relacionamentos divinos. É a essência espiritual da pessoa que a torna humana. Como Ngolo (energia, espírito ou poder), a pessoa é um fenômeno de 'veneração perpétua'." 

    Dentro deste sistema, o ser humano é um espírito em contato constante com os poderes "espirituais" cujo entendimento pressupõe esses poderes como força e não como entidades estáticas. Os poderes "espirituais" habitam um reino invisível (que se denomina Orum para a tradição nagô-ioruba); "força espiritual" constituindo um híbrido cuja estrutura diferenciadora culmina em uma energia (força) em constante expansão. Esse todo é o Ser supremo, a sustentação da estrutura geradora desta força exige dos seres humanos;

"[...] como espíritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos (intra), a outros espíritos humanos (inter) e por fim ao Divino (supra)." 

    Na dinâmica das diferentes manifestações ou expressões do Divino temos os nhuyu (parentes mortos dos vivos), os simbi (ancestrais) e o NzambiMpongo (Ser Supremo) que podem ser invocadas para ajudar os vivos. Quando da morte, ocorre uma "diminuição" do ser, devendo assim, os vivos fazerem oferendas aos mortos transmitindo a eles um pouco de vida. Caso os vivos sejam negligentes os nhuyu lhes chamam atenção enviando-lhes doenças e dificuldades. Aqueles que morrem sem deixar parentes, acredita-se "está condenado à degradação final, espécie de segunda morte, desta vez definitiva." 

    Com base nessa noção africana de espiritualidade ou "força espiritual" a "pessoa" responde a uma crença complexa (material e imaterial) que lhe dá um valor intrínseco" e que a 'pessoa' é, na verdade, um 'processo' caracterizado pelas leis divinamente governadas da essência, do aperfeiçoamento e da compaixão". 

    Vemos, portanto, que da chegada em 1532 dos primeiros africanos bantos presos, escravizados e transportados pelo negreiro Jorge Lopes Bixorda para trabalharem no primeiro centro produtor de açúcar, Vila São Vicente, no atual Estado de São Paulo, até hoje muita coisa mudou quanto a maneira de conceber o ser humano africano, este perdeu sua capacidade de auto definição e passou por um processo que Nobles chama por; "Descarrilhamento e Desafricanização". Antes de ir para este tópico irei fazer duas citações diretas relacionadas com essa questão de autonomeação fundamentais para compreensão do que foi e do que é, assim como de o que pode ser este ser humano africano. A primeira de Ney Lopes e a segunda de Toni Morrison; 

"Um indivíduo se define por seu nome; ele é seu nome. E este nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome interior é indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser isolado. Toda a pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência." 
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra, pág. 145 

"Nasci e cresci em Vesper County, Virgínia, 1873. Num lugarzinho chamado Vienna. Rhoda e Frank Williams me pegaram na mesma hora e me criaram junto com os seis filhos deles. O último filho dela tinha três meses quando Mrs. Rhoda me pegou e ele e eu a gente era mais chegado que muitos irmãos que eu já vi. Victory era o nome dele. Victory Williams. Mrs. Rhoda me chamou de Joseph em honra do meu pai, mas nem ela nem Mr. Frank também pensaram em me dar um sobrenome. Ela nunca fingiu que eu era filho carnal dela. Quando ela dividia tarefas ou favores, dizia: 'Você é como se fosse meu mesmo'. Aquele 'é como', eu acho, foi que me fez perguntar para ela - acho que eu não tinha nem três anos ainda - onde estavam os meus pais de verdade. Ela me olhou lá do alto, por cima do ombro, e me deu o sorriso mais doce, só que triste de algum jeito e me disse: Ah, querido, eles desapareceram, sem nenhum traço. Do jeito que ouvi, achei que ela queria dizer que 'sem nenhum traço' era eu. 
'No primeiro dia que eu fui para a escola, tinha que ter dois nomes. Falei para a professora: Joseph Trace [Trace = Traço] [...]." 
Morrison, Toni. Jazz, pág. 122-3 

2. DESCARILHAMENTO E DESAFRICAZAÇÃO 

    Seguindo a ideia de maafa proposta pela filosofa e antropóloga Marimba Ani, devemos ao menos dar algumas indicações que apresentem a dinâmica deste processo na história localizando as raízes do mesmo ainda na Antiguidade como propõe o etnólogo Carlos Moore. 

    A escravização do africano foi a base de sustentação do projeto sobre o qual se levanta o que é comum denominar de "Novo Mundo". Este ponto se preocupa em assinalar alguns aspectos do custo do projeto de colonização para o desenvolvimento do ser humano africano, não apenas do ponto de vista das condições sob as quais aqui chegavam os africanos; que depois de meses de fome e tortura se encontravam despersonalizados e arrasados física e psicologicamente, mas também o que significou todos esses anos de repressão e opressão racial que ainda vigoram. 

   Nobles está convicto de que houve um descarilhamento que mudou o caminho do desenvolvimento africano quanto a sua socialização, vida familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo, pensamento filosófico profundo, invenções científicas e técnicas. Apesar de ainda não sabermos ao certo o real impacto desde descarilhamento iremos pontuar aqui alguns aspectos que certamente nos permitirá compreender em parte a aparente indiferença social quanto ao extermínio de jovens negros nas periferias da cidade de São Paulo. 

    A metáfora do descarilhamento é um recurso para explicar que houve uma alteração brusca de caminho no desenvolvimento africano, mas que, porém, esse descarilhamento cultural é de difícil identificação dado que "a vida e a experiência continuam". Esse aspecto é fundamental de ser reconhecido pois é em decorrência desde fato que o próprio africano não percebe que está percorrendo uma trajetória que o leva a desumanização e que poderia estar centrado, realizando uma experiência mais significativa em sua vida; humanizando-se. 

    Para a condição de coisificação que o maafa demandava o africano só dispunha do "mapa mental", a concepção de mundo descrita no tópico anterior, este "mapa mental" ao mesmo tempo que "serviu de filtro cultural da resistência à escravidão e ao colonialismo" foi o que, aparentemente, tornava o africano inadaptado ao regime de escravidão cabendo ao colonizador um processo de desafricanização de seu ser. A conclusão é que nem a escravização e nem a exploração contemporânea do africano seria possível sem a destruição e/ou redefinição do que Nobles chamou de "mapa mental" do africano. Logo, é a invasão do espaço mental do africano pelo colonizador e sua visão de mundo que, removendo os significados que constituíam o "mapa mental" do africano, possibilitou e segue viabilizando sua exploração no tempo, e aqui chegamos ao preceito fundamental da afrocentricidade, segundo Nobles. É, portanto, "esse processo de descentramento ou desafricanização [que] constitui a problemática psicológica-chave na compreensão da experiência dos africanos em toda a diáspora". 

3. EMBRANQUECIMENTO 

"[...] ela disse: 'Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?' 
'Do jeito que eu quiser?' 
'É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja alguma coisa mais do que ele é?' 
'Para quê? Não dá para mudar o mundo.' 
'Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.' 
'Estragou como?' 
'Esqueci.' 
'Esqueceu?' 
'Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para cima e para baixo querendo ser outra pessoa.' 
'Quem? Quem você queria ser?' 
'Não tanto quem, mas o quê. Branca. Leve. Moça de novo.'" 
Morrison, Toni.Jazz. 2009, pág 192. 

    O que mais caracteriza a experiência do africano diaspórico no Brasil é o processo de embranquecimento, que Nobles precisa melhor como eliminação do africano, que passa a ser uma política de Estado em 1850. Apesar da referência dada pelo autor quanto o momento em que a política de embranquecimento passa a vigorar sabemos que na verdade a construção do africano como inferior, ou seja, o argumento central de que era necessário branquear o país, já se expressa em políticas públicas ainda no período colonial brasileiro. É o caso, por exemplo, das políticas que se referem a ocupação de cargos públicos, civis, religiosos e militares, que trazia a ideia de pureza do sangue advinda da Idade Média como discurso oficial da igreja católica nos mostrando que o Brasil, também como os Estados Unidos, forjou um modelo de discriminação racial baseado em pigmentação da pele e também referente à origem. Roger Bastide, afirma que no século XVII em São Paulo "negros e brancos eram separados na capela diante de Deus, e nos cemitérios, diante da morte" e ainda que a Igreja visava "[penetrar] nas almas dos descendentes de africanos a noção de sua separação e da sua subordinação aos brancos" confirmando no tempo o processo de desafricanização do negro pela via da redefinição do "mapa mental" do africano. O fim do domínio português não representou mudança no teor das políticas públicas do Estado no que diz respeito ao seu conteúdo discriminatório dado que " (...) Em 5 de Dezembro de 1824, a Constituição brasileira em lei complementar proibia o negro e o leproso [assim denominado na época pessoas que conviviam com a hanseníase] de frequentarem escolas", lembrando que a esse período já tínhamos muitos negros manumitidos, estando ai evidencias de uma política anti-africano já antes da formulação de uma política definitiva de imigração, inclusive, consagrada pela constituição do país. Porém, o que ficou mesmo marcado como a consolidação de um projeto de embranquecimento, eliminação, genocídio do africano, foi a política de substituição racial da força de trabalho com a imigração europeia. Segundo o historiador Petrônio Domingues, a ideia de substituir a força de trabalho nacional se originou ainda no governo do Império e já nesse momento se visava a inserção de forma privilegiada de colonos provenientes da Europa. Cabe, porém, um pequeno balanço dos antecedentes históricos do projeto para melhor argumentar quanto ao caráter racista da política já que uma tese importante deste item é a de que 

"[A despeito do paradigma do branqueamento só ter adquirido vulto no final do século XIX, a transformação de negro em branco, segundo Andreas Hofbauer, é um] ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a história do Brasil." 
Hofbauer em Domingues, Uma História não contada. 2003, pág.38 

    Ainda na obra de Domingues, consta o caso do padre Antônio Vieira (1608-1697), o mesmo dizia em Epifania de 1662; "Um etíope que se lava nas águas do Zaire fica limpo, mas não fica branco; porém na do batismo, sim, uma e outra coisa", com isso podemos dizer que essa afirmação, entre outras, o consagra como percursor do embranquecimento. Importante também de sua afirmação é a ideia de que o batismo serviria como um dispositivo central do supremacismo branco, sendo a conversão ao catolicismo talvez o primeiro conjunto axiológico bem definido ao buscar a redefinição do "mapa mental" do africano. Esse aspecto se refere à cultura, à negação dos africanos como portadores de cultura (típico dos processos de desumanização) e a imposição da cultura "superior". Francisco Soares Franco (1772-1844) articula a questão do desenvolvimento econômico e social com a necessidade de branquear o país, sua proposta no terreno racial consistia em;   

"[...] Mandar que todos os mestiços não possam casar senão com indivíduos da casta branca, ou índia, e se proibir sem exceção alguma todo o casamento entre mestiços e a casta africana; no espaço de duas gerações consecutivas toda a geração mestiça estará, para me explicar assim, baldeada na raça branca. E deste modo teremos outra grande origem de aumento da população de brancos, e quase extinção dos pretos e mestiços desta parte do mundo; pelo menos serão tão poucos que não entrarão em conta alguma nas considerações do legislador" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39 

    Essa perspectiva raciológica, identificando o africano como uma substância antitética à condição humana está no bojo então de um processo nacional da qual seu produto viria a ser o mestiço. A pena de Franco apresenta no começo do século XIX, o que o pincel de Modesto Brocos y Gómes com a Redenção de Cam nos apresentaria no final do mesmo século. Seguimos com Franco; 

"Os mestiços só conservam metade, ou menos, do cunho africano; sua cor é menos preta, os cabelos menos crespos e lanudos, os beiços e nariz menos grossos e chatos, etc. Se eles se unem depois à casta branca, os segundos mestiços têm já menos da cor baça, etc. Se ainda a terceira geração se faz com branca, o cunho africano perde-se totalmente, e a cor é a mesma que a dos brancos; às vezes ainda mais clara; só nos cabelos é que se divisa uma leve disposição para se encresparem" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39

    Até a metade do século XIX, essa tese é consensual, seja entre aqueles a favor ou contra a escravização dos africanos nos debates relacionados à questão da nacionalidade. Houve mesmo, ainda segundo Petrônio Domingues, quem propusesse que ao mesmo tempo em que o Brasil realizasse um movimento político no sentido de importar uma mão de obra branca da Europa exportasse de volta à África os africanos libertos. A proposta de deportação em massa do contingente africano, apesar de muito pouco explorado pela historiografia nacional, realmente teve relevância em correntes de opinião da elite branca nacional e esse fato explica porque o governo da Bahia, entre 1820 e 1868, expediu mais de 2.000 passaportes para de os libertos retornassem à África.

    Nessa curta descrição que operamos buscamos apresentar alguns tópicos fundamentais, porém normalmente ignorados nas pesquisas sobre a violência policial contra o africano diáspórico no Brasil. Assim como as interpretações sobre o racismo sobrepôs um evento histórico, holocausto judeu, a outro, escravização africana, estamos mais acostumados a tratar o racismo como um fenômeno ideológico do que histórico. Carlos Moore nos mostrou como, em realidade, o fenômeno racismo não precisou da criação da categoria raça (do italiano razza, mas que tem origem do latim ratio) para de expressar, que este fenômeno não é uma produção exclusiva da Europa. Não iremos nos aprofundar muito em sua tese dado caráter desta introdução, porém cabe trazer uma contribuição fundamental deste ao nosso projeto, a noção de que a invisibilidade e a naturalização do quadro de violência contra o africano diásporico no Brasil é fruto do racismo; 

"A insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo, ou coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros fenotipicamente parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus cachorros, mas não desenvolver qualquer sentimento de comoção perante o terrível quadro de opressão racial. Em toda a sua dimensão destrutiva, está opressão se constitui em variados tipos de discriminação contra os negros. Não há sensibilidade diante da falta de acesso, de modo majoritário, da população negra aos direitos sociais mais elementares como educação, habitação e saúde [...]" 

    O Racismo é um sistema de poder. O que mostramos até aqui foi exatamente isso, um sistema de poder que produz a morte ontológica e física no tempo. Um poder político, econômico, social e cultural (sendo a opressão cultural uma realidade mental, espiritual, física e material) e isso ocorre antes da ação da polícia, pois quando a mesma ocorre, não existe a necessidade de justificações maiores. 

BIBLIOGRAFIA 

Domigues, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Editora Senac. São Paulo, 2004.  

Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011 
Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.). Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4). 

Morrison, Toni. Jazz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Trechos do livro "Textos Para o Movimento Negro" - Henrique Cunha Jr


Trechos do livro "Textos Para o Movimento Negro" - Henrique Cunha Junior





Percepção da Discriminação Racial na Escola pela Criança

(...) Os fatos
A denúncia da discriminação racial na escola, por parte da criança, somente ocorre nos casos de discriminação aberta. Dessa forma, não trataremos, aqui, de um conjunto de práticas discriminatórias sistemáticas que ocorrem no sistema educacional brasileiro, através do livro didático, da representação na história e geografia, da prática ideológica do (as) professores (as), diretores (as) e funcionários (as).
Os fatos denunciados pelas crianças podem ser agrupados em quatro níveis: no relacionamento com os colegas, no relacionamento com os professores e funcionários; quando da exposição de fatos quaisquer; e na proibição de participação em posição de destaque.

(...) Em todas as situações parece haver uma indecisão dos pais, devido, em parte, ao fato deles não acreditarem na existência do racismo brasileiro ou por procurarem sistematicamente negá-lo, pois, admiti-lo, é admitir a condição de ser inferior. Outro motivo de indecisão relaciona-se aos resultados do protesto motivado pela injustiça sofrida. Primeiro, porque a experiência mostra que tal protesto não levado em conta por ninguém. Segundo, porque ficam, por vezes, com medo da criança ficar marcada e ser perseguida.





(...) Bases do Sistema Educacional Brasileiro
Henrique Cunha Jr

(..) podemos notar nas ações desta elite nacional o desejo de branqueamento do país quer pelo esforço miscigenador ou pelo exterminador. Mas esta composição entre credo racial, mão-de-obra e conservação do poder que vai direcionar a elaboração dos sistemas educacionais brasileiros e nossa inserção no mundo do trabalho livre. Pela tradição escravocrata, nossa aptidão é para o trabalho e dele é excluída, na mesma visão, todo seu conteúdo intelectual. O trabalho que nos cabe é o trabalho pesado, tarefeiro. Por outro lado, o processo de industrialização implica um trabalho cada vez mais especializado, evoluindo numa das vertentes para um operariado treinado e um setor de serviços desenvolvido, demandando trabalho cujos níveis educacionais passam por constante aprimoramento. Sendo assim gera-se um processo de criação de moderno e uma sistemática exclusão nossa deste moderno.

(...)Dois Momentos- Dentro e Fora da Escola
(...) a educação numa sociedade racista possui conteúdo racista em todos os níveis e perfaz um processo de socialização excludente e inferiorizante. Neste sentido, a educação informação se completa ou se reforça com a educação formal.

(...) Esta ideia e pratica de conviver com a sociedade racista produz um conjunto de regras que vai desde driblar as dificuldades até comportamentos passivos de não deixar aflorar as dificuldades(...)

(...) A escola, por um lado vai proporcionar mais um aprendizado das relações raciais, sempre desvalorizando o negro e valorizando o branco.
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XIV - Reflexão sobre o 20 de novembro
(...) O primeiro sucesso do racismo no Brasil é o medo que muitos têm de ser negros,é a esclerose que muitos sofrem do significado objetivo de afirmar as nossas raízes comuns. Este medo e esta esclerose afetam a nossa consciência de direitos e de cidadania. Outro sucesso do racismo brasileiro é a farsa onde todos se declararam não racistas. Existe um medo da verdade que não atenua os fatos, que se confunde e não permite o desenvolvimento de uma consciência ativa de combate anti-racista.




Título Textos para o movimento negro
Editora Edicon, 1992
Original de Universidade do Texas
Num. págs. 142 páginas

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Todo dia, toda hora: é racismo

Numa conjuntura que nega a existência das várias formas que o racismo se manifesta é extremamente necessário apontar que infelizmente um povo vem sendo perseguido e exterminado; O POVO PRETO.

Por Fuca

Certa vez numa reunião duma grande empresa no Brasil, um gerente negro afirmou não haver racismo na empresa onde ele trabalhava, mesmo levando em consideração que ele era o único negro naquela sala com vinte pessoas que dirigiam e gerenciavam vários setores do topo do organograma da empresa. Para enfatizar sua posição, argumentou ter estudado e trabalhado muito para chegar onde chegou e que ocorre muito a questão do vitimismo quando se trata de racismo. Em contrapartida ele não desconsiderou que o racismo vigora, mas não lá, pois ninguém o xingou de macaco ou tacou banana nele, nem mesmo nunca o chamaram de negro fedido...

Todo dia temos situações como esta em vários locais. Em diversas instituições a representatividade do povo preto é irrisória evidenciando não apenas uma questão de preconceito ou discriminação, mas de racismo! Se preconceito é ter uma opinião e um conceito desfavorável a uma raça e discriminação é tratar de forma desfavorável uma raça, o racismo engloba os dois numa relação de poder*.

Então, além do povo preto ter acesso negado de forma peculiar (que não se enxerga fácil como nega) com um grande impacto (é nítida a negação), o que esse preto isolado disser vai equivaler a palavra ou a visão de todo um povo. Essa é uma das faces do racismo institucional! Diante disso, dentre outras coisas, percebe-se aí a importância de ser uma preta e um preto conscientes.

Não existe racismo apenas quando se xinga um preto ou uma preta. Mas a própria situação de haver apenas um preto no cargo de poder dessa empresa no Brasil. A situação de não poder falar das questões que seu povo vem sofrendo. A situação de não poder falar de um povo preto vitorioso, pois não teve nem acesso a linda história de seus ancestrais negros antes da escravidão e colonização europeia. A situação de não poder falar em protagonismo e muitas vezes ouvir o termo minoria que não faz sentido algum. A situação de não dispor de recursos psicológicos, culturais e epistemológicos necessários para sua emancipação quanto ser humano preto, diásporo Africano.

“Conceito de Racismo Institucional**
Racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa de sua cor. O termo foi utilizado de forma pioneira, em 1967, pelos ativistas Stokely Carmichael e Charles Hamilton, integrantes do grupo Panteras Negras, para especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições (Geledés, 2013, P.11). Foi empregado também, a partir de 1993, por instituições de combate ao racismo na Inglaterra, em particular na Comissão para Igualdade Racial – Comission for Racial Equality (CRE) – do Reino Unido (Sampaio, 2003). Manifesta-se por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios atuantes no cotidiano de trabalho das organizações, resultantes do preconceito ou de estereótipos racistas (Ipea, 2007). O racismo institucional não se expressa em atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, mas atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada, do ponto de vista racial, na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população (Silva et al. 2009) ”

No que tange a segurança pública o racismo anti negro age dessa forma sistêmica no Brasil. Em outras partes do mundo não deve ser muito diferente, independentemente se o povo preto seja maioria ou minoria. O cenário no país tropical do ‘(mito) democracia racial’*** é de total massacre. As maneiras as quais as vidas pretas são ceifadas é de total desumanização, da forma mais cruel dentro das possibilidades... não é uma analogia dos acontecimentos brutais da escravatura, até porque como C.L.R. James citou, “nenhum lugar na terra concentrou tanta miséria quanto o porão de um navio negreiro”. Mas as estruturas da escravidão permanecem a todo vapor, cheias de ódio.

Se a vida é um bem maior humano, então a vida deve ser a primeira pauta a se lutar, e se as vidas pretas que estão sendo aniquiladas tem que se lutar pelas vidas pretas primeiro. Primeiro Raça! Primeiro a Vida, para ainda assim sobreviver!

Numa conjuntura que nega a existência das várias formas que o racismo se manifesta é extremamente necessário apontar que infelizmente um povo vem sendo perseguido e exterminado; O POVO PRETO.

Será que a maldita farda estatal da polícia jamais cessará fogo contra o povo preto? Vejam bem, não é uma questão que teria que morrer mais brancos, entenda... Não dá pra aceitar o extermínio do nosso povo preto! Infelizmente essa é a regra, o combate deve ir em direção aos valores arraigados nessa regra, e a força da exceção não deverá ser mais forte do que a regra!

Como acabar com essas instituições que perseguem os negros? O que está em jogo é: a quem essas instituições servem? Pra quem é interessante a morte dos pretos? Quem detém todo esse poder é a Supremacia branca****.

É não enxergar isso e ver a escalada de violência subir mais e mais. Alguém lucra com isso? Sim, os privilegiados supremacistas brancos. Apenas os pretos são/serão atingidos? Não, mas a negação da existência do racismo não cabe nessa realidade, ou queriam que a letalidade da polícia fosse 100% de negros? Não basta de 70% a 80%?

Como aceitar que continuem surgindo movimentos intitulados pelos últimos dizeres da vida dos nossos mortos?

Os dados podem parecer frios, mas é o modo de se visualizar essa realidade que “oito em cada dez usuários regulares de crack são negros. Oito em cada dez não chegaram a ensino médio”.***** Desses, 40% vivem em situação de rua, 49% tem passagem pelo sistema prisional. O Brasil encarcera mais de 700 mil pessoas! O genocídio perpetrado pela supremacia branca é devastador!

É mais que necessário que visemos o direito de formar uma nação preta autônoma, pois o genocídio vai para além da morte física, atinge a natureza do ser, a cultura, a religião, a família, a existência, a alma e a nossa realidade!    
    


*Racismo: Relação de poder que inferioriza características físicas (fenótipo) e culturais de uma raça, “um sistema de pensamento, fala e ação operado por pessoas que se classificam como brancas, e que usam o engano, a violência, e/ou a ameaça de violência, para subjugar, usar e/ou abusar de pessoas classificadas como ‘não-brancas’ em condições que promovem a prática da falsidade, da injustiça e do erro, em uma ou mais áreas de atividade, com o objetivo último de manter, expandir e/ou aperfeiçoar a prática da supremacia branca (racismo).” (Neely Fuller Jr) ver artigo Primeiro Raça.link


** Extraído do artigo “Segurança Pública e Racismo Institucional” (Almir de Oliveira Júnior/ Verônica Couto de Araújo Lima)


*** ...o Brasil sempre se apresentou internacionalmente com a imagem de país modelo da harmonia racial, constituindo-se no exemplo de país em desenvolvimento e de perfeita convivência racial, conforme consta nos relatórios apresentados à ONU sobre a Convenção Internacional de Eliminação de Todas As Formas de Discriminação Racial.
“Tenho a honra de informa-los que desde então não há discriminação racial no Brasil (...) na legislação que especificamente lida com a discriminação racial. Nenhuma apresentação detalhada é determinada, porque o contexto histórico e cultural dos brasileiros é tal que esse tipo de preconceito é completamente estrangeiro a ele.” (CERD, 1970)
“A integração racial no Brasil, que é resultado dos quatros séculos de nosso desenvolvimento nacional, proporciona para o mundo contemporâneo uma experiência em harmoniosa vivência racial. Isso é infelizmente incomum em outros locais. Essa integração não originou de leis que estipulam que somos um, mas de um processo natural espontaneamente alcançado.” (CERD, 1971)
“Pareceria supérfluo aqui repetir o fato que no Brasil tolerância racial e miscigenação precedem qualquer estatuto legal que poderia ter tentado proibir ou suprimir a discriminação racial. É questão de registro que, embora a integração étnica tenha existido durante séculos no Brasil, a primeira lei para lidar especificamente com o assunto entrou em efeito em 1951. Essa é a razão pela qual o código penal não ataca a discriminação racial diretamente.” (CERD, 1974)
“Como país que consolidou sua identidade nacional em cima de um período longo de experiência étnica, marcado pela integração harmoniosa e congruência cultural de grupos raciais diferentes, o Brasil condena todos os atos de discriminação, dando seu apoio sem hesitar a todas as iniciativas empreendidas para combater o apartheid, especialmente para as resoluções pertinentes das Nações Unidas, da Assembléia Geral e do Conselho de Segurança” (CERD, 1980)

(O Movimento Negro e o Estado:1983-1987 – Ivair Augusto Alves dos Santos)


**** ...Em sua forma mais óbvia, a supremacia banca se expressa como um processo físico de pura violência, muitas vezes extremamente brutal. A escravização, pelos europeus, de milhões de africanos durante várias centenas de anos, o extermínio dos povos indígenas na América, assim como a matança e o aprisionamento de milhões de africanos durante o período de colonização, são apenas exemplos de uma lista aparentemente interminável de atos de terror perpetrados por supremacistas brancos em todo o planeta. A supremacia branca também pode ser um processo social e econômico pelo qual milhões perdem a soberania, muitas vezes em sua própria terra, sendo seus “recursos” (por exemplo, terra e trabalho) apropriados pelos europeus em função dos interesses destes. Mas a supremacia branca também pode ser um processo mental, mediante a ocupação do espaço psicológico e intelectual dos que devem ser submetidos, levando ao que Wade Nobles denominou, de forma certeira, “encarceramento mental”. A tomada do espaço mental africano ocorre por meio do disfarce de ideias, teorias e conceitos europeus como universais, normais ou naturais. Todos são “étnicos”, menos os europeus. Mas essa aceitação não questionada da Europa como normativa é altamente problemática para os africanos. Com efeito, a Europa forjou grande parte de sua identidade moderna à custa dos africanos, particularmente por meio da construção da imagem do europeu como o mais civilizado e do africano como seu espelho negativo, isto é, como primitivo, supersticioso, incivilizado, aistórico e assim por diante.

(A Afrocentricidade Como Um Novo Paradigma – Ama Mazama)


***** Oito em cada dez usuários regulares de crack são negros. Oito em cada dez não chegaram ao ensino médio. Essas proporções são bem maiores do que as encontradas no conjunto da população brasileira. Além disso, elas referem-se a características temporalmente anteriores ao uso de crack. Somavam-se a esses, outros indicadores de vulnerabilidade social, como viver em situação de rua (40%) e ter passagem pelo sistema prisional (49%). As mulheres usuárias regulares de crack têm o mesmo padrão de vulnerabilidade social, com o agravante que 47% relataram histórico de violência sexual (comparando a 7,5% entre homens). Outra pesquisa já havia indicado que a mortalidade de usuários de crack é 7 vezes superior à população geral, sendo os homicídios a causa de morte em 60% dos casos.
A relação entre exclusão social e uso do crack emergiu como um tema a ser aprofundado a partir da pesquisa de metodologia epidemiológica da FIOCRUZ.

quinta-feira, 31 de março de 2016

O Conteúdo Racista nas Alucinações dos Brancos: o fenótipo do medo

O que é fantástico, o que é temível ao homem branco do ocidente? Esse texto visa apresentar como o medo branco do fenótipo negro é apresentando no sub texto das alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas a partir de uma leitura lateral do texto "No Limiar do Sono in: Mente Assombrada" de Oliver Sacks.

Por Miguel Angelo*


O etnólogo africano-cubano, Carlos Moore, fez o que talvez tenha sido uma das maiores contribuições para a compreensão do racismo na contemporaneidade. Pesquisando esse fenômeno através da história ele apresentou o argumento de que o racismo não é uma mera produção da ideologia, mas sim uma consciência historicamente determinada contra o fenótipo do negro. Com isso o racismo não é produto de uma sistematização de ideias e valores europeus, não tem uma relação de causa-efeito com o conceito biológico de raça, logo não é uma produção apenas europeia. Sem negar a importância que o conceito biológico de raça teve para a justificativa de negar a humanidade do africano ele sozinho não criou o fenômeno, mas sim é produto de um critério fenotípico que já ocorria em escala planetária. Povos atravessaram a história realizando conflitos decorrentes de diferenças fenotípicas e são essas diferenças que sempre foram levadas em conta nas atribuições de qualidades positivas e negativas entre os seres humanos. Sendo o racismo uma realidade histórica, uma realidade social, cultural desde a antiguidade, assombrando o imaginário social, como seria possível ele não se expressar nas alucinações do homem branco europeu?

A abordagem sobre a questão da produção alucinatória do homem branco europeu realizada por Sacks está em um enquadramento conceitual iluminista/racionalista, que apesar de ser particular, reclama universalidade. Dado que a visão eurocêntrica do mundo tem valor de norma em nossa sociedade, ou seja, está naturalizada, isso precisa ser sempre reforçado. Logo deve-se reconhecer que as alucinações de que Sacks fala, só podem ser pensadas como alucinações no contexto branco-europeu com seus valores e cultura o que equivale dizer que as categorias "alucinação", "sonhos", conceitos como "hipnagógicas" e "hipnopômpicas" não podem ser aplicadas aos mais diversos povos e culturas pois os conteúdos desses termos são particulares e historicamente determinados. Concordando com Moore não irei afirmar que a crença de atribuição negativa do fenótipo africano é apenas um produto intelectivo dos europeus, minha intenção é apenas a de observar que, em decorrência de uma consciência historicamente determinada social e culturalmente o europeu tem uma moral que leva em conta o fenótipo e, entre outros, o fenótipo africano está ligado à qualidades negativas. Vamos aos casos citados nesse texto de Sacks;

Nabokov tem uma alucinação com; "(...) um anão de feições grosseiras e avermelhadas com nariz ou orelhas inchados"

Andreas Mavromatis cita um caso em que um homem teve alucinações com rostos; "(...) Antes eram rostos fascinantemente feios. Eram humanos, mas pareciam animais, porém esses animais não tinham semelhantes na criação, e sua aparência era diabólica. [...] Ultimamente os rostos têm sido de uma beleza primorosa. Formas e traços de impecável perfeição agora sucedem uns aos outros em variedade e números infinitos."

Dr. D; "Era uma noite tranquila de verão. Acordei por volta das duas da manhã, como às vezes me acontece no meio da noite, e em pé ao meu lado estava um índio americano de quase dois metros de altura. Era um sujeito enorme, de músculos esculpidos, cabelos e olhos pretos. Percebi, aparentemente ao mesmo tempo, que se ele quisesse me matar não havia nada que eu pudesse fazer, e que ele não podia ser real. No entanto, lá estava ele, como uma estátua, mas vivíssimo. Minha mente trabalhou depressa: como ele poderia ter entrado na casa?...Por que estava imóvel?...Isto não pode ser real. No entanto, a presença dele me dava medo. Ele se tornou diáfano depois de cinco a dez segundos, vaporizou-se delicadamente até se tornar invisível".

Na mesma linha do Dr. D estão as alucinações de Spinoza e Allan Kardec no entender de Sacks, Spinoza com o temor de africanos e Kardec com alucinações envolvendo espíritos, fantasmas e etc.

Em todos os casos a questão fenotípica é presente e determina a qualidade da alucinação em experiência positiva ou negativa. Nabokov parece ter tido uma alucinação com uma representação típica de um gaulês (povo celta), Andres teve uma alucinação primeiro com fenótipos distintos do padrão que ele reconhece como próprios da humanidade e posteriormente com uma "beleza primorosa" que não deixa dúvidas quanto o fato de que ele se refere muito provavelmente à sua imagem no espelho. O Dr D. ficou horrorizado com a possibilidade de ver um "índio americano", Spinoza viu um "negro leproso do Brasil" e Kardec alucinando ou não atribuía a qualidade dos fenótipos à qualidade das entidades.

Para aprofundar no exemplo, vou focar no caso de Spinoza e no de Allan Kardec. Para o primeiro caso vou utilizar o artigo: "Um Certo negro brasileiro" um sonho político-filosófico de Spinoza de Nicolás Alberto González Varela e em seguida o artigo: "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" do próprio Kardec. Trabalhar esses dois exemplos será uma forma de argumentar que, como afirma Carlos Moore, a questão do racismo se concentra antes no fenótipo dado que na época de Spinoza ainda não existia o conceito de raça e no de Kardec ele já vigora. Perceberemos como o central do discurso, da percepção que atribui qualidades negativas ao africano, ocorre independente do conceito de raça. 

"Digo-lhe que não é caso raro, e posso confirmar que se passou comigo algo semelhante no inverno passado em Rijnsburg, que explicarei. Quando, uma manhã, despertava de sono muito pesado, o céu já clareando, as imagens que que vira no sonho apareciam ante mim, como se fossem coisas reais, em particular a aparição de um certo negro brasileiro leproso, que nunca vira antes. Esta imagem desaparecia quase por completo quando, para distrair-me com alguma coisa e manter-me ocupado, meus olhos fixavam-se num livro ou em outra coisa; se tirava os olhos desse objeto e não fixava minha atenção em nada de especial, por momentos reaparecia a imagem do etíope (Æthiopis), com igual intensidade anterior, até que se ia desvanecendo até desaparecer. O mesmo que aconteceu nos meus sentido internos deve ter ocorrido ao seu ouvido."

Trate-se uma carta de Spinoza escrita em 1664 em resposta à seu amigo Peter Balling que acabara de perder um filho e dizia ter tido alucinações com vozes e gemidos que pareciam anunciar a fatalidade.

Essa é única referência feita, de forma explícita, à instituição escravidão e à escravidão do negro em particular feita por Spinoza. Da mesma maneira que o Dr. D, nem Spinoza nem Balling teriam dúvidas da negatividade da experiência de ter uma alucinação com o fenótipo negro. O medo do ser humano de fenótipo africano é algo realmente concreto tanto a Balling, patrício médio e comerciante transatlântico, como ao filósofo que aplica termos altamente negativos aos africanos para o padrão da época "nigri" (negro) e etiope (do grego etiop; cara queimada). Kant e Hegel (esse último mais abertamente racista com a tese de que a África era um continente sem história) utilizavam os termos no mesmo sentido. É evidente que essa alucinação é produto do próprio sistema de crenças do filósofo, para ele produto de uma realidade objetiva, uma orientação "inquestionável" do quadro axiológico que viviam, segundo Varela; 

"A causa imediata do sonho pode ter sido alguma forma de delírio, mas o conteúdo do sonho – quer dizer, a imagem aterradora de uma colônia nativa de escravos e trabalhadores braçais em rebelião contra seus amos europeus – não podia ser explicado por causas puramente físicas, mas, sim, pela confusa consciência mental de Spinoza, do capitalismo holandês, da própria empresa colonial em si mesma, do sonho imperial de uma Hollandas-Brasilis, de uma grande Nova-Holanda e das representações dessa empresa em sua cultura, calvinista e liberal, no núcleo mais duro e mais reprimido da Ideologia holandesa".

Inegavelmente o escravismo atravessava de maneira transversal a vida de Spinoza, dado ser o negócio local de Amsterdã onde os judeus controlavam 20% do comércio até 1630. Seu irmão, Gabriel, tinha plantações de açúcar e empregava trabalho de africanos escravizados em Barbados. Apesar do ponto de Varela ser mais sugerir que Spinoza teve uma alucinação bem semelhante Balling, no sentido que a alucinação representava um mal presságio sobre a campanha holandesa para estabelecer uma colônia no Brasil, fazendo um diálogo com Sacks inclusive, e compreendendo, aparentemente o racismo como um fenômeno da ideologia (seguindo uma lógica marxista) meu ponto é o de que é a questão do fenótipo que marca a experiência alucinatória de Spinoza.

Voltemo-nos agora para Allan Kardec. Em "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" de 1862, seu ponto é incorporar o espiritismo no contexto científico e assim demonstrar que o que a ciência vigente não pode explicar o espiritualismo pode. A questão colocada é se o africano está condenado a ser "uma espécie de animal doméstico, preparado para a cultura do açúcar e do algodão" pura ou simplesmente ou se seria possível aperfeiçoar a "raça". Para Kardec, respeitando as teses do racismo científico, em termos de corpo biológico é impossível aperfeiçoar o negro, de acordo com a frenologia materialista, mas para a frenologia espírita isso seria possível dado que de acordo com as reencarnações, em uma determinada etapa, o ser que antes possuiu o fenótipo negro pode vir a reencarnar no fenótipo do europeu. 

"(...) Por assim dizer, essa questão é resolvida pela precedente: apenas temos que deduzir algumas consequências. Elas são perfectíveis para o Espírito que se desenvolve através de suas várias migrações, em cada uma das quais adquire pouco a pouco as faculdades que lhe faltam; mas, à proporção que essas faculdades se ampliam, necessita de um instrumento apropriado, como uma criança que cresce precisa de roupas maiores. Ora, sendo insuficientes os corpos constituídos para o seu estado primitivo, necessitam encarnar em melhores condições, e assim por diante, à medida que progridem."

Seguindo a lógica de Hegel em "História da Filosofia" a África seria a terra da criancice. A humanidade encontra sua forma evoluída e acabada, na sua orientação teleológica, no caucasiano europeu;

"Assim, as raças são perfectíveis pelo corpo, pelo cruzamento com raças mais aperfeiçoadas, que trazem novos elementos, aí enxertando, por assim dizer, os germes de novos órgãos. Esse cruzamento se faz pelas migrações, as guerras e as conquistas. Sob esse ponto de vista, há raças, como há famílias, que se abastardam, se não misturarem sangues diversos. Então não se pode dizer que haja raça primitiva pura, porquanto, sem cruzamento, essa raça será sempre a mesma, pois seu estado de inferioridade se prende à sua natureza; degenerará, em vez de progredir, o que resultará no seu desaparecimento, ao cabo de certo tempo." [destaque do autor]

Seria então com o contato, com a transmissão via cruzamento que a tal "raça primitiva" iria se alterar, mas não necessariamente se aperfeiçoar. Está bem em evidência que o fenótipo é a marca da inferioridade natural para Kardec;

"Por isso as raças selvagens, mesmo em contato com a civilização, permanecerão sempre selvagens; porém, à medida que as raças civilizadas se espalham, as selvagens diminuem, até desaparecerem completamente, como aconteceu com a raça dos Caraíbas, dos Guanches e outras. Os corpos desapareceram; quanto aos Espíritos, em que se transformaram? Muitos deles, talvez, se encontrem entre nós (...)

(...) Em resumo, o homem atual quer compreender. O princípio da reencarnação ilumina o que estava obscuro. Eis por que dizemos que este princípio é uma das causas que faz com que o Espiritismo seja acolhido favoravelmente."

O artigo de Kardec nos dá uma visão bem acabada do fenômeno racismo. Sua posição expressa que o racismo anti-africano está também no que Sacks chama de dimensão alucinatória já presente no sub texto de seu texto.

Referências:


Kardec, Allan. Frenologia Espiritualista e Espírita. Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano V, Abril de 1862. Número 4. 


Moore, Carlos. Racismo & Sociedade. Novas bases epistemológicas para a compreensão do racismo na História. Belo Horizonte. Mazza Edições, 2007.


Sacks, Oliver. No Limiar do Sono in: Mente Assombrada. São Paulo, Companhia das Letras.


Varela, Nicolás González Varela. Racismo & Filosofia. “Cierto negro brasileño leproso”. Sobre un sueño de Spinoza. Copyleft 2013.


*Miguel Angelo é estudante de Saúde Pública na FSP-USP, membro fundador da Frente Negra Grajaú, e membro do Comitê Contra o Genocídio do Povo Preto e Periférico - SP.