Nascida no ano de 1964 em Mangula, Zimbabue (na época ainda
Rodésia). J. Nozipo Maraire fez o ensino primário em seu país de origem, mas
depois foi estudar no exterior. Nos primeiros anos da luta pela independência, sua família
se mudou para fora do país e retornou no auge da guerra nos anos 1970. Muitos
de seus familiares estavam diretamente envolvidos pela libertação das garras
dos brancos, tanto os internos quanto os externos (rodesianos e britânicos).
Maraire viveu na Jamaica, Canada e nos Estados Unidos. Graduou-se
em Biologia pela Universidade de Havard, fez Medicina pela Universidade de
Columbia e se especializou em neurocirurgia em Yale. Focada em levar algo de retorno para África,
tem projetos de construir um hospital em Harare e trabalha no desenvolvimento
de aplicativos de incentivo a jovens neurocirurgiões, além de prestar seus
serviços de Médica. Coadunando com seus escritos, ou melhor dizendo, com seu grande
livro "Zenzele: Uma carta para minha filha", que em 1996 ganhou prêmio de
destaque.
O livro, um romance biográfico, rememora vivências,
tradições e vários aspectos da comunidade familiar africana. A autora idealiza,
protesta, e dispara a voz de uma jovem mulher africana que não pretende se desvencilhar
das origens de nosso povo e se posiciona firmemente anticolonialismo. Com
momentos de amor, de sonhos, de liberdade, de cultura, assim como de ódio e de
racismo, os capítulos fluem numa leveza indescritível. Por fim, ficam alguns
trechos que separei.
(Fuca -2018)
(...) Toda a geração que viveu o período da independência partilhou
a visão comum de uma vida melhor. Infelizmente, muitos de nós traduziram isso
como uma definição material de sucesso. Desenvolvemos todos os sintomas da
Síndrome Pós-Colonial, endêmica a África: aquisição, imitação, e pobreza de
imaginação. Simplesmente nos apressamos em garantir para nós o que os
colonialistas haviam possuído. Compramos as casas deles, frequentamos as
escolas deles, praticamos os esportes deles e cortejamos a companhia deles.
Negamos nossa própria cultura, contribuímos para manter a distância, em alguma
aldeia esquecida, nossas primitivas origens. E assim nos acreditamos finalmente
sofisticados, integrados à corrente dominante da cultura cosmopolita. (p.33)
(...)
– Mamãe, o que você acha que significa ser uma mulher
africana?
- É ser forte, Zenzele. É estar em paz consigo mesma. Você
deve ouvir sempre uma voz interior e não permitir que outros a sufoquem. É
medir palavras; equilibrar cuidadosamente suas tarefas com seus dons; de certa
forma é ser desprendida, servir a outros, sem deixar de conhecer e defender
incansavelmente seus direitos. Lembre-se de que foi uma mulher africana, Mbuya
Nehanda, que desencadeou a luta zimbabuana pela independência, quando combateu
a Companhia Britânica da África do Sul, na década de 1890. Pense em Cleópatra e
Nefertiti. Veja as mulheres da África do Sul. As estudantes de Soweto, as
combatentes de Maputo, as mjibas, jovens combatentes do Zimbábue. Mulheres
fortes e heroicas, que descobriram o equilíbrio entre causa, cultura e vida
pessoal. Ser uma mulher africana é o que você fizer de tudo isso, Zenzele. Mas
nunca esqueça que, para a maioria, também significa pular da cama antes dos
outros, aquecer a cozinha, trabalhar no campo sob um calor abrasador, andar
vários quilômetros por caminhos poeirentos, carregando água na cabeça, madeira
nos braços e um bebê nas costas. (p.59)
*uma fala do pai de Zenzele
(...) – Nunca vou esquecer aquela época, anos atrás, quando
eu era dirigente da União dos Estudantes Africanos, organismo ativo, dedicado e
eclético que representava praticamente todos os países, do Lesoto ao Mali.
Estávamos no apogeu da Consciência Negra e do poderoso Movimento da Negritude
de Senghor. Nenhuma das mulheres se atreveria a trançar o cabelo com apliques
louros ou a usar lentes de contato azuis, como agora fazem aqui, num esforço para
passarem por brancas. Como se a palidez fosse uma espécie de passaporte para a
terra prometida da assimilação. Não, certamente não. Na época, preto era
bonito. Dashiki e afro eram emblemas do afrochique. Escutávamos James Brown e
Aretha Franklin, líamos Fanon, Nkrumah, Davis, Baldwin, Angelou, e ostentávamos
distintivos de negros nas jaquetas jeans desbotadas. Nossos irmãos e irmãs
americanos davam aos filhos os nomes de Omaju, Kumati, e se reuniam em jantares
improvisados com o que havia em casa. Mantinham a cabeça erguida e falavam de
poder negro. Tínhamos unidade, tínhamos visão. Agora, tudo o que lemos ou vemos
é sobre integração, assimilação e mobilidade social. Aquela época foi outra
coisa. (p.94)
Mjiba
Por este termo coloquial, o povo da aldeia designava as
jovens revolucionárias. Eram mulheres de uma nova geração, que usavam calças
como homens e sabiam fazer pontaria com igual firmeza. Mulheres que matavam.
Fortes e saudáveis, corriam pelos matos, brandindo fuzis AK-47 e metralhadoras.
Mulheres que se esgueiravam para a aldeia nas parcas horas de descanso e
rodeavam a fogueira junto com os companheiros homens, armas pousadas ao lado,
atraindo-nos com canções revolucionárias. Às costas não carregavam bebês de
nariz escorrendo, mas a esperança de uma geração diferente, sob a forma de
montes de munição, mapas, códigos e suprimentos para abastecer a batalha que
nos iria finalmente levar à independência. Para a imagem tradicional que fazíamos
das mulheres, pareciam tão estranhas quanto esquimós. Eram um produto da luta
armada. Moldavam também sua própria identidade. Eram temidas e admiradas, pois,
dizia-se, em combate podiam ser mais aguerridas do que todos. As tropas
rodesianas chamavam-nas de bobcats, porque as mulheres chonas eram ferozes como
leoas acossadas. (p.197)
Fuca CGPP