quinta-feira, 31 de março de 2016

O Conteúdo Racista nas Alucinações dos Brancos: o fenótipo do medo

O que é fantástico, o que é temível ao homem branco do ocidente? Esse texto visa apresentar como o medo branco do fenótipo negro é apresentando no sub texto das alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas a partir de uma leitura lateral do texto "No Limiar do Sono in: Mente Assombrada" de Oliver Sacks.

Por Miguel Angelo*


O etnólogo africano-cubano, Carlos Moore, fez o que talvez tenha sido uma das maiores contribuições para a compreensão do racismo na contemporaneidade. Pesquisando esse fenômeno através da história ele apresentou o argumento de que o racismo não é uma mera produção da ideologia, mas sim uma consciência historicamente determinada contra o fenótipo do negro. Com isso o racismo não é produto de uma sistematização de ideias e valores europeus, não tem uma relação de causa-efeito com o conceito biológico de raça, logo não é uma produção apenas europeia. Sem negar a importância que o conceito biológico de raça teve para a justificativa de negar a humanidade do africano ele sozinho não criou o fenômeno, mas sim é produto de um critério fenotípico que já ocorria em escala planetária. Povos atravessaram a história realizando conflitos decorrentes de diferenças fenotípicas e são essas diferenças que sempre foram levadas em conta nas atribuições de qualidades positivas e negativas entre os seres humanos. Sendo o racismo uma realidade histórica, uma realidade social, cultural desde a antiguidade, assombrando o imaginário social, como seria possível ele não se expressar nas alucinações do homem branco europeu?

A abordagem sobre a questão da produção alucinatória do homem branco europeu realizada por Sacks está em um enquadramento conceitual iluminista/racionalista, que apesar de ser particular, reclama universalidade. Dado que a visão eurocêntrica do mundo tem valor de norma em nossa sociedade, ou seja, está naturalizada, isso precisa ser sempre reforçado. Logo deve-se reconhecer que as alucinações de que Sacks fala, só podem ser pensadas como alucinações no contexto branco-europeu com seus valores e cultura o que equivale dizer que as categorias "alucinação", "sonhos", conceitos como "hipnagógicas" e "hipnopômpicas" não podem ser aplicadas aos mais diversos povos e culturas pois os conteúdos desses termos são particulares e historicamente determinados. Concordando com Moore não irei afirmar que a crença de atribuição negativa do fenótipo africano é apenas um produto intelectivo dos europeus, minha intenção é apenas a de observar que, em decorrência de uma consciência historicamente determinada social e culturalmente o europeu tem uma moral que leva em conta o fenótipo e, entre outros, o fenótipo africano está ligado à qualidades negativas. Vamos aos casos citados nesse texto de Sacks;

Nabokov tem uma alucinação com; "(...) um anão de feições grosseiras e avermelhadas com nariz ou orelhas inchados"

Andreas Mavromatis cita um caso em que um homem teve alucinações com rostos; "(...) Antes eram rostos fascinantemente feios. Eram humanos, mas pareciam animais, porém esses animais não tinham semelhantes na criação, e sua aparência era diabólica. [...] Ultimamente os rostos têm sido de uma beleza primorosa. Formas e traços de impecável perfeição agora sucedem uns aos outros em variedade e números infinitos."

Dr. D; "Era uma noite tranquila de verão. Acordei por volta das duas da manhã, como às vezes me acontece no meio da noite, e em pé ao meu lado estava um índio americano de quase dois metros de altura. Era um sujeito enorme, de músculos esculpidos, cabelos e olhos pretos. Percebi, aparentemente ao mesmo tempo, que se ele quisesse me matar não havia nada que eu pudesse fazer, e que ele não podia ser real. No entanto, lá estava ele, como uma estátua, mas vivíssimo. Minha mente trabalhou depressa: como ele poderia ter entrado na casa?...Por que estava imóvel?...Isto não pode ser real. No entanto, a presença dele me dava medo. Ele se tornou diáfano depois de cinco a dez segundos, vaporizou-se delicadamente até se tornar invisível".

Na mesma linha do Dr. D estão as alucinações de Spinoza e Allan Kardec no entender de Sacks, Spinoza com o temor de africanos e Kardec com alucinações envolvendo espíritos, fantasmas e etc.

Em todos os casos a questão fenotípica é presente e determina a qualidade da alucinação em experiência positiva ou negativa. Nabokov parece ter tido uma alucinação com uma representação típica de um gaulês (povo celta), Andres teve uma alucinação primeiro com fenótipos distintos do padrão que ele reconhece como próprios da humanidade e posteriormente com uma "beleza primorosa" que não deixa dúvidas quanto o fato de que ele se refere muito provavelmente à sua imagem no espelho. O Dr D. ficou horrorizado com a possibilidade de ver um "índio americano", Spinoza viu um "negro leproso do Brasil" e Kardec alucinando ou não atribuía a qualidade dos fenótipos à qualidade das entidades.

Para aprofundar no exemplo, vou focar no caso de Spinoza e no de Allan Kardec. Para o primeiro caso vou utilizar o artigo: "Um Certo negro brasileiro" um sonho político-filosófico de Spinoza de Nicolás Alberto González Varela e em seguida o artigo: "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" do próprio Kardec. Trabalhar esses dois exemplos será uma forma de argumentar que, como afirma Carlos Moore, a questão do racismo se concentra antes no fenótipo dado que na época de Spinoza ainda não existia o conceito de raça e no de Kardec ele já vigora. Perceberemos como o central do discurso, da percepção que atribui qualidades negativas ao africano, ocorre independente do conceito de raça. 

"Digo-lhe que não é caso raro, e posso confirmar que se passou comigo algo semelhante no inverno passado em Rijnsburg, que explicarei. Quando, uma manhã, despertava de sono muito pesado, o céu já clareando, as imagens que que vira no sonho apareciam ante mim, como se fossem coisas reais, em particular a aparição de um certo negro brasileiro leproso, que nunca vira antes. Esta imagem desaparecia quase por completo quando, para distrair-me com alguma coisa e manter-me ocupado, meus olhos fixavam-se num livro ou em outra coisa; se tirava os olhos desse objeto e não fixava minha atenção em nada de especial, por momentos reaparecia a imagem do etíope (Æthiopis), com igual intensidade anterior, até que se ia desvanecendo até desaparecer. O mesmo que aconteceu nos meus sentido internos deve ter ocorrido ao seu ouvido."

Trate-se uma carta de Spinoza escrita em 1664 em resposta à seu amigo Peter Balling que acabara de perder um filho e dizia ter tido alucinações com vozes e gemidos que pareciam anunciar a fatalidade.

Essa é única referência feita, de forma explícita, à instituição escravidão e à escravidão do negro em particular feita por Spinoza. Da mesma maneira que o Dr. D, nem Spinoza nem Balling teriam dúvidas da negatividade da experiência de ter uma alucinação com o fenótipo negro. O medo do ser humano de fenótipo africano é algo realmente concreto tanto a Balling, patrício médio e comerciante transatlântico, como ao filósofo que aplica termos altamente negativos aos africanos para o padrão da época "nigri" (negro) e etiope (do grego etiop; cara queimada). Kant e Hegel (esse último mais abertamente racista com a tese de que a África era um continente sem história) utilizavam os termos no mesmo sentido. É evidente que essa alucinação é produto do próprio sistema de crenças do filósofo, para ele produto de uma realidade objetiva, uma orientação "inquestionável" do quadro axiológico que viviam, segundo Varela; 

"A causa imediata do sonho pode ter sido alguma forma de delírio, mas o conteúdo do sonho – quer dizer, a imagem aterradora de uma colônia nativa de escravos e trabalhadores braçais em rebelião contra seus amos europeus – não podia ser explicado por causas puramente físicas, mas, sim, pela confusa consciência mental de Spinoza, do capitalismo holandês, da própria empresa colonial em si mesma, do sonho imperial de uma Hollandas-Brasilis, de uma grande Nova-Holanda e das representações dessa empresa em sua cultura, calvinista e liberal, no núcleo mais duro e mais reprimido da Ideologia holandesa".

Inegavelmente o escravismo atravessava de maneira transversal a vida de Spinoza, dado ser o negócio local de Amsterdã onde os judeus controlavam 20% do comércio até 1630. Seu irmão, Gabriel, tinha plantações de açúcar e empregava trabalho de africanos escravizados em Barbados. Apesar do ponto de Varela ser mais sugerir que Spinoza teve uma alucinação bem semelhante Balling, no sentido que a alucinação representava um mal presságio sobre a campanha holandesa para estabelecer uma colônia no Brasil, fazendo um diálogo com Sacks inclusive, e compreendendo, aparentemente o racismo como um fenômeno da ideologia (seguindo uma lógica marxista) meu ponto é o de que é a questão do fenótipo que marca a experiência alucinatória de Spinoza.

Voltemo-nos agora para Allan Kardec. Em "Frenologia Espiritualista e Espírita - Perfectibilidade da Raça Negra" de 1862, seu ponto é incorporar o espiritismo no contexto científico e assim demonstrar que o que a ciência vigente não pode explicar o espiritualismo pode. A questão colocada é se o africano está condenado a ser "uma espécie de animal doméstico, preparado para a cultura do açúcar e do algodão" pura ou simplesmente ou se seria possível aperfeiçoar a "raça". Para Kardec, respeitando as teses do racismo científico, em termos de corpo biológico é impossível aperfeiçoar o negro, de acordo com a frenologia materialista, mas para a frenologia espírita isso seria possível dado que de acordo com as reencarnações, em uma determinada etapa, o ser que antes possuiu o fenótipo negro pode vir a reencarnar no fenótipo do europeu. 

"(...) Por assim dizer, essa questão é resolvida pela precedente: apenas temos que deduzir algumas consequências. Elas são perfectíveis para o Espírito que se desenvolve através de suas várias migrações, em cada uma das quais adquire pouco a pouco as faculdades que lhe faltam; mas, à proporção que essas faculdades se ampliam, necessita de um instrumento apropriado, como uma criança que cresce precisa de roupas maiores. Ora, sendo insuficientes os corpos constituídos para o seu estado primitivo, necessitam encarnar em melhores condições, e assim por diante, à medida que progridem."

Seguindo a lógica de Hegel em "História da Filosofia" a África seria a terra da criancice. A humanidade encontra sua forma evoluída e acabada, na sua orientação teleológica, no caucasiano europeu;

"Assim, as raças são perfectíveis pelo corpo, pelo cruzamento com raças mais aperfeiçoadas, que trazem novos elementos, aí enxertando, por assim dizer, os germes de novos órgãos. Esse cruzamento se faz pelas migrações, as guerras e as conquistas. Sob esse ponto de vista, há raças, como há famílias, que se abastardam, se não misturarem sangues diversos. Então não se pode dizer que haja raça primitiva pura, porquanto, sem cruzamento, essa raça será sempre a mesma, pois seu estado de inferioridade se prende à sua natureza; degenerará, em vez de progredir, o que resultará no seu desaparecimento, ao cabo de certo tempo." [destaque do autor]

Seria então com o contato, com a transmissão via cruzamento que a tal "raça primitiva" iria se alterar, mas não necessariamente se aperfeiçoar. Está bem em evidência que o fenótipo é a marca da inferioridade natural para Kardec;

"Por isso as raças selvagens, mesmo em contato com a civilização, permanecerão sempre selvagens; porém, à medida que as raças civilizadas se espalham, as selvagens diminuem, até desaparecerem completamente, como aconteceu com a raça dos Caraíbas, dos Guanches e outras. Os corpos desapareceram; quanto aos Espíritos, em que se transformaram? Muitos deles, talvez, se encontrem entre nós (...)

(...) Em resumo, o homem atual quer compreender. O princípio da reencarnação ilumina o que estava obscuro. Eis por que dizemos que este princípio é uma das causas que faz com que o Espiritismo seja acolhido favoravelmente."

O artigo de Kardec nos dá uma visão bem acabada do fenômeno racismo. Sua posição expressa que o racismo anti-africano está também no que Sacks chama de dimensão alucinatória já presente no sub texto de seu texto.

Referências:


Kardec, Allan. Frenologia Espiritualista e Espírita. Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano V, Abril de 1862. Número 4. 


Moore, Carlos. Racismo & Sociedade. Novas bases epistemológicas para a compreensão do racismo na História. Belo Horizonte. Mazza Edições, 2007.


Sacks, Oliver. No Limiar do Sono in: Mente Assombrada. São Paulo, Companhia das Letras.


Varela, Nicolás González Varela. Racismo & Filosofia. “Cierto negro brasileño leproso”. Sobre un sueño de Spinoza. Copyleft 2013.


*Miguel Angelo é estudante de Saúde Pública na FSP-USP, membro fundador da Frente Negra Grajaú, e membro do Comitê Contra o Genocídio do Povo Preto e Periférico - SP.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Mais um abuso da PM paulista na zona leste de SP - Vídeo

No Dia 07/03/2016 Policiais Militares espancaram um rapaz após uma discussão numa abordagem feita por PMs da viatura M-51315. Isso aconteceu na zona leste de SP no Jd Piratininga, Cangaíba. O rapaz foi levado para o hospital desmaiado e liberado no dia seguinte. A população do local sofreu agressões após a chegada de outra viatura (M-51304) conforme mostra no vídeo. 
Absurdo, essa é a forma que o Estado insiste em chegar nas quebradas de SP. Eis a política de segurança pública para o povo preto!!!