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segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Estamos testemunhando o colapso da arquitetura neocolonial na França diz Alex Anfruns

Estamos testemunhando o colapso da arquitetura neocolonial na França diz Alex Anfruns

20 min de leitura (05/2024)

por Pascual Serrano

[Pascual Serrano (Entrevistador) é jornalista e escritor. ]

Fonte:https://globalter.com/en/alex-anfruns-we-are-witnessing-the-collapse-of-neocolonial-architecture-in-france/ 

Nos últimos anos, três países da África Ocidental, na região do Sahel, vivenciaram golpes de estado com um denominador comum: a revolta nacional e soberana contra a França, sua antiga metrópole, ainda dominante na economia, defesa e relações internacionais. Trata-se de Mali, Burkina Faso e Níger. Lá, líderes militares derrubaram governantes fantoches da França e estabeleceram governos provisórios, mas iniciaram processos de soberania forçados que provocaram indignação, sanções e ameaças de intervenção militar de potências ocidentais.

No Mali, um grupo de jovens soldados proclama uma revolta em agosto de 2020 e estabelece um governo de transição que questiona a presença de forças francesas no país. Vários descumprimentos nessa transição levaram a um novo golpe em maio de 2021, liderado pelo até então vice-presidente Assimi Goita. Em 21 de fevereiro de 2022, a carta de transição foi alterada para estender a duração da transição por um período indefinido de até cinco anos. Enquanto isso, o órgão legislativo que substitui a anterior Assembleia Nacional é o Conselho Nacional de Transição do Mali, onde diferentes representantes militares e da sociedade civil se reúnem.

Em Burkina Faso, o jovem capitão Ibrahim Traoré assume o poder interinamente em 6 de outubro de 2022, após substituir outro soldado, Paul-Henri Sandaogo Damiba, que se tornou presidente em janeiro do mesmo ano. Traoré participou daquele golpe de janeiro que derrubou o governo pró-francês, mas depois destituiu Damiba por considerá-lo incapaz de enfrentar o terrorismo jihadista. Em fevereiro de 2023, o governo de Traoré expulsou as forças francesas de Burkina Faso.

O último golpe de estado foi o do Níger, em 23 de julho de 2023, quando o presidente Mohamed Bazoum, próximo aos interesses franceses, foi deposto. Soldados da Guarda Presidencial tomaram o poder, o Brigadeiro-General Abdourahamane Tchiani foi proclamado chefe de estado e presidente do Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria. Um mês após chegar ao poder, a junta militar do Níger expulsou os embaixadores da França, dos Estados Unidos e da Alemanha de uma só vez. Burkina Faso e Mali apoiaram o governo do Níger e suas medidas contra a França.

Não é fácil obter informações rigorosas no Ocidente que estejam livres dos interesses das potências europeias nesses eventos. Daí o valor de Alex Anfruns Millán ao escrever o livro "Níger: outro golpe de estado... ou a revolução pan-africana?". Embora nascido na Catalunha, Anfruns vive entre a França e a África francófona, as duas regiões protagonistas das revoluções no Sahel. Durante quatro anos, publicou mensalmente o Journal de l'Afrique e traduziu e escreveu sobre as guerras e tentativas de golpe no Mali, Síria, Venezuela e Nicarágua, especializando-se em África e América Latina. Atualmente é professor em Casablanca e pesquisa o direito ao desenvolvimento a partir de uma perspectiva histórica ‘pan-africana’.

Conversamos com Alex Anfruns sobre seu livro e os eventos na região durante sua estadia em Barcelona:

Pergunta: Em julho de 2023, um grupo de soldados derrubou o Governo do Níger e estabeleceu um governo de transição. O que você acha que esse golpe significa para o país e a região?

Em 26 de julho de 2023, um grupo de militares bem conhecidos que fazem parte da Guarda Presidencial do Níger assume o poder. Essa data é o ápice de um processo de soberania regional que já começou em 2020 em um golpe de estado no Mali, que então teve outro golpe em 2021, e em 2022 em Burkina Faso também.

Ou seja, no espaço de cerca de 3 anos, temos uma série de golpes de estado militares que contradizem a visão dominante que afirma que o lugar onde o Exército deve estar é no quartel, e que ele não precisa se envolver na vida política. No caso desses países africanos no Sahel, na África Ocidental, o que acontece é que eles reagem a uma conscientização progressiva entre o povo. Muitos povos africanos, milhões de pessoas, têm se mobilizado por uma série de razões históricas. Por exemplo, no caso do Mali, após a guerra da Líbia em 2011, ocorre outra guerra, o papel da intervenção francesa na região e a desestabilização da Líbia pela OTAN é importante.

Nos últimos anos, houve um renascimento de um sentimento de dignidade e luta pela soberania entre a população, particularmente no Mali. Quando a rejeição da presença de tropas francesas no território começou, eles conseguiram expulsá-las e, então, progressivamente também em Burkina Faso e Níger. É todo um processo regional em que os militares intervêm no Níger por várias razões.

P: A luta contra o terrorismo é um dos elementos em que a presença militar estrangeira se justifica

De fato, uma delas é a luta efetiva contra o terrorismo. Você tem que saber que o Mali tem o que é conhecido como a tríplice fronteira, a região de Liptako-Gourma, onde todos os grupos terroristas circulam de um território para outro. Acontece que há mais de dez anos há domínio militar estrangeiro nesses países, especialmente a França. E um dos pretextos para essa presença foi a luta contra o terrorismo. As pessoas começaram a se perguntar como pode ser que uma presença de mais de uma década no terreno de milhares de tropas estrangeiras, com a tecnologia mais avançada dos exércitos ocidentais e com um orçamento de defesa impressionante, não consiga combater ou neutralizar esses grupos terroristas que se multiplicam ao longo dos anos.

Então, dois países, que rejeitam a presença militar estrangeira e que têm suas próprias forças militares, se rebelam e depois se juntam ao Níger. Então, tudo é uma mudança de perspectiva. Considero o golpe no Níger o ápice desse processo. Eles observam que houve conivência, ou pelo menos aceitação, por parte da França desses grupos terroristas islâmicos, porque eles não conseguiram erradicá-los.

As pessoas pensam que o terrorismo era um álibi ou uma desculpa simplesmente para justificar a presença militar estrangeira, mas então eles não erradicaram esses grupos terroristas. Isso faz parte do discurso do povo africano. Se ouvirmos os líderes do Mali, Burkina Faso e agora Níger, o discurso é que a fonte do terrorismo é ocidental.

Podemos concordar ou não, agora o que se trata é de buscar as informações, os elementos que nos permitam saber se o que eles estão dizendo corresponde à realidade ou é uma fantasia. Eu, no meu livro “Níger: outro golpe de estado… ou a revolução pan-africana?”, forneço alguns elementos, algumas citações para entender o contexto. Por exemplo, o Chefe do Estado-Maior do Exército Francês, que estava no comando das tropas francesas no Mali, disse que sua presença no país deveria ser de pelo menos 30 anos. Ninguém pode acreditar que o exército francês precise de três décadas para eliminar os grupos terroristas africanos.

Por outro lado, os responsáveis ​​pelo exército francês deram legitimidade aos grupos tuaregues como atores políticos que exigem uma independência que implica uma partição territorial do Mali, até mesmo a mídia francesa coleta as declarações de seus porta-vozes. Mas todos no Sahel sabem da relação próxima entre esses tuaregues e grupos terroristas.

P: Várias análises da região abordam o papel da CEDEAO/ECOWAS, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental. Você pode explicar?

A CEDEAO é um grupo regional de quinze países da África Ocidental fundado em 1975 cuja missão era promover a integração econômica da região. Era um projeto de desenvolvimento econômico, mas o problema é que, nos últimos anos, tornou-se uma ferramenta de interferência nas mãos da França. A França usa os aliados que tem na região, como Ouattara [Alassane Ouattara, presidente da Costa do Marfim] ou também o presidente Macky Sall, que recentemente saiu pela porta dos fundos no Senegal. Esses atores são acompanhados por Bola Tinubu, que está na Nigéria. São atores que se colocaram a serviço dos interesses franceses, e a CEDEAO se revelou nos casos do Mali, assim como de Burkina Faso e Níger, como uma ferramenta para exercer uma política de sanções. Essas sanções causaram sofrimento em populações com uma pobreza extrema incrível, e é então que se vê claramente que a CEDEAO não se importa com o sofrimento da população.

Eles são submetidos a um bloqueio de todos os tipos, de modo que a população não tem acesso à eletricidade, medicamentos e alimentos. Vê-se que esta associação não cumpre mais a função para a qual foi criada e estes três países tomam a decisão histórica no final de janeiro de uma saída definitiva e irreversível da CEDEAO. Então, a arquitetura neocolonial da França está sendo um pouco desmantelada.

No caso da CEDEAO, tem sido um ator cujo peso está agora em declínio. Ele provavelmente vai desaparecer, não sei. 

P: Você mencionou algo antes, mas eu gostaria que você explicasse um pouco mais sobre como a intervenção da OTAN na Líbia afetou a região.

A guerra no Mali já tem como origem a desestabilização na Líbia. Na verdade, tem sido uma lição que o povo e os líderes africanos aprenderam, porque perceberam seu erro histórico em não se opor de forma clara e frontal, e em não proteger Gaddafi, que também tinha uma visão pan-africana. Quer os políticos europeus e a opinião pública ocidental na mídia hegemônica gostem ou não, a Líbia de Gaddafi é percebida, incluindo seu legado, como uma contribuição histórica ao pan-africanismo.

Foi tão influente que, apesar da Líbia estar localizada no Norte da África, em dois pontos da história recente do Níger houve dois golpes de estado relacionados à Líbia. Um foi logo após o presidente do Níger estabelecer relações com a Líbia de Gaddafi, no caso de Hamani Diori, que sofreu um golpe em 1974. Poucos meses antes, ele havia feito um acordo de defesa com a Líbia. E no caso de Mamadou Tandja [presidente do Níger derrubado em 2010 por um golpe de estado], uma das razões pelas quais ele foi deposto foi porque ele se opôs claramente aos interesses da França e estabeleceu relações com a China, com o Irã, com a Venezuela e também acolheu Gaddafi.

Portanto, a guerra da OTAN na Líbia é percebida hoje como algo que não deve ser repetido e explica o fato de que a agressão imperialista agora está interrompida no Níger ao ver como a França concretizou seus planos de assassinar um líder como Gaddafi.

Essa mesma França que também ocupou grande parte do território do Mali e que não permitiu que o Exército Malinês resolvesse seus problemas de terrorismo, porque impediu que seu próprio Exército Nacional acessasse seu território, porque estava sob controle militar francês.

No caso do Níger, a estratégia imperialista francesa é interrompida e isso tem um significado histórico. Na minha opinião, isso tem uma carga simbólica muito forte, algo como a batalha de Dien Bien Phu na guerra entre a Indochina e a França. Ou seja, há uma consciência de que aquele momento em que o Vietnã derrotou o Exército Francês em 1954 está se repetindo. Estamos no 70º aniversário.

Então, criou-se a consciência no povo africano de que a derrota do homem europeu, o homem branco, era possível e a partir daí começou um movimento anticolonial que foi muito reforçado. Por exemplo, a FLN foi criada na Argélia e deu um impulso muito forte. Ou seja, em um nível simbólico, o Níger é importante por causa da esperança que também dá ao povo africano de ver que é possível derrotar essas ameaças de guerra e essas políticas de sanções.

P: E não há a possibilidade de que esses novos governos e movimentos, afastando-se da França, possam se aproximar dos Estados Unidos e acabar caindo em outro imperialismo?

Essa é uma das hipóteses. Na verdade, os Estados Unidos, quando ocorreu o golpe de estado no Níger, tinham uma posição pragmática e aceitaram. Não é um imperialismo tão desajeitado quanto o da França e tenta um pouco, digamos, não se opor muito a ele. Eles defendem claramente o regime derrubado, mas o fazem com um perfil discreto.

Eu destaco no meu livro sobre o Níger a possibilidade de que os Estados Unidos tentem recuperar essa dinâmica, mas os eventos estão mostrando que no Níger há uma visão clara de defesa da soberania. E a chave é o apoio popular e a mobilização.

Fiz essa pergunta a um colega nigerino, um professor em Niamey, a capital, porque era uma das minhas preocupações. Ou seja, eles enfrentaram um exército imperialista como o da França, mas eles vão parar aí? As coisas vão parar? Ele me respondeu, eles não vai parar aí, isso é só o começo, foi isso que ele me respondeu.

Então, eu acho que os fatos estão mostrando que no Níger há uma visão muito clara de considerar as tropas militares estrangeiras como uma ocupação, como neocolonialismo. E a demanda de que as bases militares dos EUA que existem na capital, e também no norte, com um investimento multimilionário, com uma base de drones, saiam e abandonem o território nigerino o mais rápido possível. Está mostrando que o povo não vai parar em uma única medida, há um verdadeiro plano de soberania e soberania popular. Não apenas no nível da defesa de cada nação, mas há o que eu considero um pouco a hipótese do livro, ou seja, que estamos caminhando para uma revolução pan-africana a partir do momento em que não se trata mais de defender simplesmente sua própria nação, mas de criar cooperação e colocar recursos em favor dos direitos dos povos da região.

[Poucos momentos após esta entrevista, soube-se que o Pentágono ordenou formalmente a retirada de 1.000 soldados de combate dos EUA do Níger]

P: Qual seria, na sua opinião, o papel nessa região daqui para frente? da Rússia, da China ou dos BRICS?

Acredito que estamos em uma encruzilhada e que, gostemos ou não, estamos em uma situação de uma nova guerra fria. Agora, a questão às vezes é um pouco tendenciosa porque quando a questão do papel da Rússia é levantada, o Ocidente diz que ela poderia tirar vantagem e ser o novo imperialismo. Ou seja, ela vai fazer a mesma coisa que a França ou os Estados Unidos fizeram. Mas do ponto de vista dos povos africanos, a perspectiva é muito diferente.

Por isso é importante focar nos fatos. Por exemplo, observando que a França tem primeiro uma política colonial e depois neocolonial na região, com uma série de mecanismos como a moeda franco CFA [moeda de curso legal dos países da África Ocidental e Central. Significa Franco da Comunidade Financeira Africana, embora na época de sua criação significasse “Comunidade Francesa Africana”, isso é sem dúvida uma limitação da soberania econômica desses países porque a moeda foi primeiro vinculada ao franco francês e agora ao euro], com os acordos de defesa que limitavam os países outrora colonizados de estabelecer livremente relações com outros países, que impunham a venda preferencial de materiais, que eram primos da França. Ou seja, há um fenômeno que é o neocolonialismo, que não é retórico.

Em segundo lugar, quando falamos de uma nova guerra fria, devemos saber quem está criando as condições dessa nova guerra fria. No caso da Rússia, está sendo um país atacado. Vimos como a extensão da OTAN em direção à fronteira da Rússia é uma ameaça contra esse Estado. Por outro lado, quando a União Europeia e os Estados Unidos estabelecem a política de sanções contra a Rússia, a decisão soberana dos países africanos é não aplicar essas sanções. Todos esses são fatos, que podem ou não agradar a quem os ouve. As relações russo-africanas são excelentes, a cooperação da Etiópia, Burkina Faso até Marrocos é muito boa.

Ou seja, temos uma série de programas de cooperação e é possível que também esteja aproveitando sua história, houve relações com a União Soviética entre países africanos que foram consideradas benéficas. Hoje em dia, nesse contexto da nova guerra fria, não é mais uma questão de necessariamente se alinhar ao Ocidente, acredito que os africanos têm bastante clareza sobre isso.

Todos nós sabemos que os Estados têm interesses, não é uma questão de amizade, mas há relações entre Estados que são respeitosas e que buscam benefício mútuo. E nesse sentido, as relações com a Rússia são muito boas, mas não apenas com a Rússia, mas também com a China, o Irã e a Turquia.

São relações em que esses países têm perspectivas diferentes da subjugação econômica e, acima de tudo, não impedem o desenvolvimento. Quando falamos de desenvolvimento, temos que saber quais são as condições de vida do povo nigerino. O Níger é um país entre os principais produtores de urânio do mundo e, por outro lado, com os menores índices de desenvolvimento humano. Na época do golpe de estado, a pobreza extrema era de 42%, com uma enorme falta de acesso à eletricidade e com grande parte da população vivendo da agricultura de subsistência, dependendo da chuva.

No Níger, os militares estão considerando e de fato estão avançando em uma série de projetos que permitirão mais renda para o Estado e acredito que eles alcançarão maior desenvolvimento e benefício social.

Essa é a próxima pergunta: quais seriam as medidas de desenvolvimento e soberania do Níger e, em geral, dos países do Sahel que estão se desenvolvendo em resposta às sanções ocidentais?

Em primeiro lugar, quando ocorrem as sanções, temos o envio de comboios humanitários do Burkina Faso para o Níger, com o qual vemos que, embora todas as fronteiras dos países da CEDEAO estejam bloqueadas, o fato de esses três países estarem unidos lhes permite, mesmo que não tenham acesso ao mar, uma certa solidariedade e cooperação interafricana.

No caso do Níger, depois desses meses de resistência, o que ele conseguiu é bom. Eles concluíram a construção de uma usina fotovoltaica e agora estão trabalhando na produção de petróleo, que vai aumentar muito. Isso tornou possível vender combustível para países vizinhos. Com a capacidade de desenvolvimento da indústria do petróleo, eles poderão reduzir sua dependência de energia.

Também em relação à sua indústria de extração de ouro, está planejado criar refinarias de ouro. Não só isso, mas há de fato uma série de iniciativas de industrialização e a soberania alimentar está sendo proposta, o que é algo que pode ser alcançado, não é uma utopia.

Mali, Burkina Faso e Níger são países onde ainda há insegurança alimentar. Há enormes recursos e agora, expulsando os atores neocoloniais, perspectivas muito positivas de mudança estão se abrindo.

A questão agora é o que você pode esperar? Eu respondo, você sempre pode esperar pelo melhor porque a partir de agora o rompimento é total.

P: Comparando esses três países que estão passando por essas mudanças, seus três governos não necessariamente têm uma ideologia similar, além de uma posição comum de recuperação de sua soberania e nacionalismo diante do colonialismo francês. Mas você veria diferenças ideológicas entre eles ou acha que isso é irrelevante?

É uma questão que está sendo debatida agora, já que esses governos são considerados governos militares de transição e, em algum momento, devem dar lugar a governos civis.

No entanto, a situação atual é que no Mali a atividade dos partidos políticos é proibida, porque se propõe que primeiro é necessário recuperar verdadeira e totalmente a soberania nacional. Acredito que para analisar o destino dessas nações, devemos ver as coisas de uma perspectiva muito, muito ampla. Ou seja, o desafio que enfrentam é comparável à luta de Libertação Nacional. A situação em que vivem é uma independência política nominal que poderíamos chamar de falsa independência.

O povo está chamando a era da independência na década de 1960 de produto do Pacto Neocolonial. Então, se considerarmos que estamos em uma fase de luta de Libertação Nacional, e como Ibrahim Traoré [oficial militar, atual presidente interino de Burkina Faso após o golpe de estado de 30 de setembro de 2022] disse, não é apenas uma luta contra o terrorismo, mas também uma luta pela descolonização.

Nesse sentido, acredito que a prioridade está em abordar o problema do terrorismo nesses três países, mas, ao mesmo tempo, lançar as bases para defender seus recursos estratégicos, decidir sobre eles e não depender tanto de importações.

P: Mas eu insisto se há uma diferença ideológica entre esses três governos. Porque você pode descolonizar e recuperar seus recursos para criar e distribuir riqueza com justiça social ou pode ser para o benefício de uma elite local.

Eu acho que são os eventos vindouros que permitirão que o povo e os líderes decidam e tragam esse debate, essa luta novamente. Na época da descolonização política, muitos dos líderes anticoloniais eram treinados no marxismo e tinham muito claro que uma nova burguesia nacional seria formada.

Vou contar algo muito simples para ilustrar onde as coisas podem ir. Ibrahim Traoré, no mês de outubro, teve uma reunião com os patrões de Burkina Faso, com os capitalistas do país. Ele disse a eles, até agora os produtos, os alimentos que o povo burkinabe está consumindo, são em grande parte importados, a produção nacional não está sendo apoiada. E ele acrescentou, de agora em diante vocês vão dedicar 10% do seu capital à produção nacional. O que Traoré estava fazendo, que, de certa forma, é o herdeiro das ideias de Thomas Sankara, porque é impossível não relacioná-lo ao líder pan-africano assassinado em 1987, era forçar os capitalistas do país a serem uma burguesia nacional e não uma burguesia que se dedica ao comércio com estrangeiros e que não contribui em nada para o desenvolvimento do país.

Do ponto de vista europeu é muito fácil dar lições, mas eu gostaria de ver quantos presidentes há que se sentam com os capitalistas e lhes dão ordens, porque normalmente é o contrário, são os poderes econômicos que comandam o poder político.

Aqui temos uma manifestação concreta de que são esses líderes que estão dando ordens, eles estão forçando que haja uma transformação da estrutura econômica. Mas isso vai levar tempo e acredito que são os próximos anos que nos permitirão ver se ela será transformada. Por exemplo, que entrem em cena as massas do povo, que são pessoas que vivem principalmente da agricultura e que historicamente foram excluídas da sociedade, do destino da nação.

Então, tudo isso ainda está em desenvolvimento, mas acho que, por enquanto, a revolução pan-africana é uma boa notícia.

 

Alex Anfruns

Pascual Serrano é jornalista e escritor. (Entrevistador)

https://globalter.com/en/alex-anfruns-we-are-witnessing-the-collapse-of-neocolonial-architecture-in-france/

 

 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Convite: Podcast Garvey Vive! – quinto episódio (23/02/2022)

Salve Povo Preto, anota na agenda aí.

Podcast Garvey Vive! – quinto episódio

No quinto episódio do Podcast Garvey Vive! vamo trocar uma ideia com os manos Fuca, ativista pan-africano e rapper, e Miguel Lil X, ativista e rapper também. O tema deste encontro é a discussão proposta pelo mais velho Chinweizu em seu artigo “Marcus Garvey e o Movimento de Poder Negro”, com traduções para o português do irmão Fuca e também pela AI-Brasil.

O episódio vai ao ar dia 23/02, às 20:30 no canal do YouTube da Afrocentricidade Internacional- Divisão Brasil. Garvey vive!

Um só Destino! ️🖤💚



Nesse link, bora! 
https://www.youtube.com/watch?v=1ElZujP9dQU

terça-feira, 27 de julho de 2021

Lançamento da Obra: Descolonização Mental, de Ngũgĩ wa Thiong’o

Segue lançamento: Descolonização Mental.

Uma série de magníficos ensaios de não ficção do escritor queniano Ngūgï wa Thiong'o. Sem dúvida um livro essencial para as pessoas pretas! E publicado por uma Editora Preta Independente. 

Vendas: R$25,00 + frete

Pelo whats: 11 - 9.7870.3640

Pelo instagram: https://www.instagram.com/editorafilhosdaafrica/

A Editora Filhos da África tem como objetivo a circulação de obras pretas e a construção de uma escola de formação para o povo preto - 11 978703640.


 *** 

Orelha do livro nesta edição, 2021.

Segundo o escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o: “O controle econômico e político de um povo nunca pode ser pleno sem o controle cultural, e aqui a prática de estudos literários, independentemente de qualquer interpretação e manejo individual ajustou bem o objetivo e a lógica do sistema como um todo. Afinal, as universidades e faculdades construídas nas colônias após a guerra pretendiam produzir uma elite nativa que mais tarde ajudaria a sustentar o Império”.

Isto é, para o autor desta obra-prima, as culturas brancas, e mais ainda as línguas e as literaturas europeias, impostas durante a colonização e deixadas pelos europeus após as lutas de libertação nacional, ainda hoje são instrumentalizadas pelas antigas metrópoles coloniais, com o auxílio das elites africanas que servem ao neocolonialismo e ao imperialismo, para cumprir uma função primordial na lógica de dominação externa e interna dos povos africanos, principalmente dos camponeses, trabalhadores explorados e demais excluídos da terra, ao promoverem e reproduzirem a colonização mental.

Para Ngũgĩ wa Thiong’o, a descolonização territorial e econômica da África e dos africanos só será efetiva e autêntica no momento em que ocorrer anteriormente a descolonização mental (a rejeição dos valores brancos/europeus/ocidentais) e a manutenção, resgate e adoção orgânica e política dos valores africanos, principalmente da linguagem e de todas as manifestações culturais oriundas desta faculdade humana.

Neste livro, Thiong’o estabelece uma crítica contundente aos autores africanos que não abandonaram a linguagem do colonizador, e ao mesmo tempo exalta a cultura tradicional do povo africano, conclamando intelectuais e escritores a fazer, por meio de suas produções intelectuais e artísticas, o mesmo.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Trechos do livro: Quando a África Despertar – Hubert Harrison

Este livro, apesar de pequeno, abrange muitos assuntos de uma perspectiva radical, comprometida e com os pés no barro, pois aborda temas como a primeira guerra europeia da perspectiva racial tanto quanto fala sobre as contradições do movimento ‘compre preto’; desmascara o movimento organizado dos trabalhadores brancos e também incentiva a valorização da mulher preta e do jovem preto; trata sobre nosso elo imperecível com a África tanto quanto não deixa de salientar que temos problemas a tratar aqui; resolve a questão cunhada em nosso tempo como ‘colorismo’ e também critica as velhas lideranças pretas; defende a política preta de Raça Primeiro e nos mostra que o mundo não-branco age sempre a partir da raça; advoga a rebelião preta para cessar com a invasão estadunidense no Haiti e também faz resenhas de livros, entre tantos outros assuntos de seu tempo e além. (pág.30)

(...)

No plano pessoal, Hubert Harrison deixou sua esposa irene e seus cinco filhos para trás. No campo político, Harrison deixou um escopo bem definido para a nova movimentação preta. Como legado à posterioridade, deixou as ferramentas de luta política preta utilizada por um amplo espectro de lutadores pretos, desde o movimentos pelos direitos civis radicais e moderados até Malcolm X e sua notável utilização das ruas do Harlem como púlpito. Ao movimento Pan-Africanista Nacionalista, deixou bem fundamentado o conceito Raça Primeiro, da autodeterminação preta, da cooperação entre povos de cor do mundo, da excelência cultural e intelectual preta e da autodefesa armada preta. (P.34)

(Prefácio: Ammit Garvey em Quando a África Despertar- Hubert Harrison, Editora Filhos da África, 2020) 

***

(...)

Uma cura para a Ku-Klux.

Foi na cidade de Pulaski, no condado de Giles, Tennessee, que a Ku-Klux Klan original foi organizada na última parte de 1865. A guerra mal havia sido declarada oficialmente terminada quando os covardes "caipiras", que não podiam vencer os ianques, começaram a se organizar para tirar vantagem dos Negros. Eles aprovaram leis declarando que qualquer homem preto que não pudesse mostrar trezentos dólares deveria ser declarado vagabundo; que todo vagabundo deve ser posto a trabalhar nos serviços públicos de suas cidades; que três Negros não deveriam se reunir a menos que um homem branco estivesse com eles, e outros métodos foram usados conforme necessário para manter a "supremacia branca". Quando o congresso nacional se reuniu em dezembro de 1865, olhou para essas tensões leves com um olhar hostil e, já que nada menos que a re-escravização dos Negros poderia satisfazer os "caipiras", mantiveram eles fora do congresso até que concordassem em fazer algo melhor. Descobrindo que eles eram teimosos, o congresso aprovou a 14ª e 15ª emendas e colocaram os estados “caipiras” sob regime militar até que aceitassem as alterações. O resultado foi que o Negro obteve o voto como proteção contra “as pessoas que o conhecem melhor”.

Enquanto isso, a Ku-Klux, depois do rompante sob a liderança daquele traidor, o general Nathaniel B. Forrest, foi derrubada - nocauteada, como se pensava. Hoje, depois que o Negro foi despojado da proteção do voto pela conivência de republicanos brancos em Washington e democratas brancos no sul, a Ku-Klux ousa levantar sua cabeça feia em seu estado ancestral do Tennessee. Desta vez, eles querem aumentar o excelente tipo de democracia que todos os editores covardes sabem que os Negros estavam recebendo quando lhes era pedido para que fossem patrióticos. A Ku-Klux irá matá-los e submetê-los à tortura e terrores antes que eles mostrem suas feridas e solicitem o voto como recompensa.

Nesta crise, o que os "líderes" Negros têm a dizer em nome do seu povo? Onde está Emmet Scott? Onde estão o Sr. Moton e o Dr. Du Bois? O que a NAACP fará além de escrever cartas frenéticas? Tememos que eles nunca possam ultrapassar o nível da apelação. Mas suponha que o Negro comum do Tennessee decida participar do jogo? Suponha que ele deixe saber que, ao tirar a vida de qualquer soldado ou civil Negro, dois “caipiras” morrerão? Suponha que ele os informe que será tão caro matar Negros quanto é matar pessoas reais? Então, de fato, a Ku-Klux seria enfrentada em seu próprio terreno. E porque não?

Todas as nossas leis, mesmo no Tennessee, declaram que linchamento e racismo são crimes contra a pessoa. Todas as nossas leis declaram que as pessoas individualmente ou em grupos têm o direito de matar em defesa de suas vidas. E se a Ku-Klux impede os oficiais da lei de fazer cumprir essa lei, cabe aos Negros ajudar os oficiais, fazendo cumprir a lei por conta própria. Por que eles não deveriam fazer isso? Chumbo, aço, fogo e veneno são tão potentes contra os “caipiras” quanto aos alemães, e vale lutar pela democracia no Tennessee tanto quanto nas planícies da França. Se os Negros do sul não reconhecerem essa verdade, ninguém mais a reconhecerá por eles. (pp. 77,78,79)

Quando a África Despertar - Hubert H. Harrison

Capítulo III - O Negro e a Guerra.

Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2020. 1ª edição. 215 Páginas.

 [agora em A nova consciência da Raça]

 (...)

Nos bons e velhos tempos, os brancos derivavam seu conhecimento do que os Negros estavam fazendo através daqueles Negros mais próximos deles, geralmente seus próprios expoentes selecionados da atividade dos Negros ou do seu ponto de vista branco. Uma ilustração clássica desse tipo de conhecimento foi fornecida pelo Partido Republicano; mas a Igreja Episcopal, a Liga Urbana ou o Governo dos EUA também serviriam. Hoje o mundo branco é vagamente, mas inquietantemente, ciente de que os Negros estão acordados, diferentes e desconcertantemente incertos. No entanto, o mundo branco pelo qual estão cercados mantém seu método tradicional de interpretar a massa pelo Negro mais próximo de si em afiliação ou contrato. O partido socialista insiste em pensar que a “inquietação” agora aparente nas massas Negras se deve à propaganda que seus adeptos apoiam e acredita que essa revolta funcionará em grande parte nos moldes do pensamento político socialista. Os grandes jornais, preocupados principalmente com a tarefa escolhida de serem os mensageiros mentais da multidão, gritam “propaganda bolchevista” e se lisonjeiam por terem encontrado a verdadeira causa; enquanto os agentes não confiáveis do governo a encaram como “deslealdade”. A verdade, como sempre, pode ser encontrada nas profundezas; mas aí estão todos impedidos de passar pela preguiça mental, pelo desprezo tradicional e fraqueza com que homens brancos na América, de estudiosos como Lester Ward a palpiteiros como Stevenson, decidem considerar uma população de cor de doze milhões.

Em primeiro lugar, a causa do “radicalismo” entre os Negros americanos é internacional. Mas é necessário estabelecer distinções claras desde o início. A função da igreja cristã é internacional. Assim como a arte, a guerra, a família, a alienação e a exploração do trabalho. Mas nada disso possui o direito especial de ampliar o manto de seu próprio “internacionalismo” peculiar para cobrir o caso atual do descontentamento dos Negros – embora isso tenha sido constantemente tentado. O fato internacional ao qual os Negros na América estão reagindo agora não é a exploração de trabalhadores pelos capitalistas; mas a sujeição social, política e econômica dos povos de cor pelos brancos. Não é a linha de classe, mas a Linha de Cor, que é a expressão incorreta, embora aceita, a Linha Pétrea da inferioridade racial. Esse fato é um fato na consciência dos Negros e também nas dos outros. A Linha de Cor Internacional é ambos, a prática e a teoria, dessa doutrina que sustenta que os melhores quadros da África, China, Egito e Índias Ocidentais são inferiores aos piores quadros da Bélgica, Inglaterra e Itália e devem manter suas vidas, terras e liberdades sob os termos e condições que a raça branca decidir conceder.

Hubert Harrison - Quando a África Despertar.

Capítulo VI.

 [mais sobre Raça Primeiro]

(...)

Agora que seu partido encolheu consideravelmente em apoio popular e apreço popular, eles estão dispostos a defender nossa causa. (...) Enquanto eles estavam se recusando a diagnosticar nosso caso, nós mesmo o diagnosticamos e, agora que prescrevemos a cura – Solidariedade Racial – eles vêm até nós com sua prescrição – solidariedade de classe. É tarde demais, senhores! ... E se você é simplório o bastante para acreditar que aqueles, dentre nós, que atendem aos seus interesses à frente dos nossos, têm algum monopólio do intelecto ou da informação ao longo das linhas da aprendizagem moderna, então vocês são, realmente, monumentais idiotas. (...) Falamos Raça Primeiro, porque vocês insistiram o tempo todo em Raça Primeiro e classe depois quando não precisavam de nossa ajuda. ...pp.139-130(...)

Durante a recente guerra mundial [1914-1918], ensinou-se aos Negros da América que, enquanto os brancos falavam em patriotismo, religião, democracia e outros temas, eles permaneciam leais a um conceito acima de todos os outros, e esse era o conceito raça. Mesmo no meio da guerra e nos campos de batalha da França, havia “raça primeiro” entre eles. p.132(...)

Mas vamos nos aproximar de casa. (...) Você encontrará um Harlem Negro Renascido, com empresas e arranjos culturais...

Todas essas coisas são produtos recentes do princípio de “Raça Primeiro.” Entre elas, a maior é a Universal Negro improvement Association (Associação Universal para o progresso do Negro), com seus órgãos associados, a Black Star Line (Linha Estrela Preta) e a Negro Factories Corporation (Corporação de Fábricas do Negro). Nenhum movimento entre os Negros americanos, desde a abolição da escravidão, alcançou essas proporções gigantescas. (p.134)

 (Quando a África Despertar – Hubert Harrison, Editora Filhos da África, 2020.)

  [orientação de busca constante por conhecimento]

Orientamos às massas de nosso povo: Leia! Adquira o hábito de leitura; gaste seu tempo livre não treinando tanto os pés para dançar, como treinando a cabeça para pensar. E, desde o início, trace a linha entre livros de opinião e livros de informação. Sature suas mentes com estes últimos e você formará suas próprias opiniões, que valerão dez vezes mais do que as opiniões das maiores mentes da Terra. Vá para a escola sempre que puder. Se você não puder ir durante o dia, vá à noite. Mas lembre-se sempre de que a melhor faculdade é aquela em sua estante de livros: a melhor educação é aquela em sua mente. (...) e se nós, da raça Negra, pudermos dominar o conhecimento moderno – do tipo que conta – seremos capazes de conquistar, por nós mesmo, os inestimáveis presentes da liberdade e do poder, e seremos capazes de defende-los contra o mundo. Hubert Harrison. P.184.

 



 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Quênia: vídeo homenagem Dedam Kimathi e trecho de Ngũgĩ wa Thiong'o, (1986).


(...) A questão da terra é básica para a compreensão da história e da política contemporânea do Quênia, como na verdade é da história do século XX onde as pessoas tiveram suas terras tomadas pela conquista, pelos tratados desiguais ou pelo genocídio de parte da população. A organização militante Mau Mau, que liderou a luta armada pela independência do Quênia, foi oficialmente chamada de Exército por Terra e Liberdade do Quênia. A peça de teatro, Ngaahika Ndeenda, em parte se baseou muito na história da luta por terra e liberdade; particularmente no ano de 1952, quando a luta armada liderada por Kimathi começou e os regimes coloniais britânicos suspenderam todas as liberdades civis ao impor um estado de emergência; e em 1963, quando a KANU [União Nacional Africana do Quênia] sob Kenyatta negociou com sucesso o direito de arvorar uma bandeira nacional, de cantar um hino nacional e de chamar as pessoas a votar em uma assembleia nacional a cada cinco anos. A peça mostrou como aquela independência, pela qual milhares de quenianos morreram, havia sido sequestrada. Em outras palavras, mostrou a transição do Quênia de uma colônia com os interesses britânicos dominantes, a uma neocolônia com as portas abertas aos interesses imperialistas mais amplos, do Japão à América do Norte. Mas a peça também retratou as condições sociais contemporâneas, particularmente para os trabalhadores das fábricas e das plantações multinacionais. (...)

(...)

Os participantes [da peça] foram mais específicos sobre a representação da história, sua história. E eles foram rápidos em apontar e argumentar contra qualquer posicionamento incorreto das várias forças - até as forças inimigas - trabalhando na luta contra o imperialismo. Eles comparavam notas de sua própria experiência real, seja na fabricação de armas nas florestas, no roubo de armas do inimigo britânico, no transporte de balas pelas linhas inimigas ou nas várias estratégias de sobrevivência. Terra e liberdade. Independência econômica e política. Esses eram os objetivos da luta e eles não queriam que Ngaahika Ndeenda distorcesse isso. As armas de imitação para a peça em Kamirithu foram feitas pelas próprias pessoas que costumavam fazer armas de verdade para os guerrilheiros Mau Mau nos anos cinquenta. Os trabalhadores estavam ansiosos para que os detalhes da exploração e as duras condições de vida nas fábricas multinacionais fossem revelados...

(Ngũgĩ wa Thiong'o, 1986)

No vídeo uma homenagem ao grande guerrilheiro Dedan Kimathi Waciuri (outubro 1920 – Fevereiro 1957) com músicas nativas dos Mau Mau. Emocionante!

https://www.youtube.com/watch?v=zqK8hky6A30


sexta-feira, 19 de março de 2021

África Difícil – Raimundo Souza Dantas – Breve Nota/trechos

 I- África Difícil

- Experiência Africana de um Embaixador Negro, livro publicado em 1965.

- Relato pessoal em forma de diário no período de dois anos em que foi embaixador do Brasil em Gana.

- Sendo Gana o epicentro das lutas revolucionárias pela independência, um período de mudanças rápidas onde exigia uma constante transformação, Gana encarava bem essa época conseguindo avanços em diversos setores e aspectos, apesar de ainda, no geral, ser pouco para os desafios postos de pobreza e subdesenvolvimento da maioria da população ganense.

- Mas a busca era constante por autonomia e formas autênticas de resolução de seus problemas (Gana). A tentativa existia mesmo tendo que recorrer em alguns aspectos aos ‘ex-colonizadores’. Pois, novamente, o desenvolvimento deveria ocorrer num curto espaço de tempo, sendo uma experiência única também para a África Preta.

- Inegável a presença de ajuda estrangeira, o autor destaca algumas presenças, Israel, Eua, França, Alemanha e Rússia. Evidenciando um certo distanciamento no convívio com os africanos desta última.

(...) “Contudo, não é pequena a influência comunista na África, embora já tenha sido maior. Dizia-se, por exemplo, que países como Gana, do grupo dos revolucionários agressivos, marcados pela influência comunista, pressagiavam dependência crescente face à Moscou, Pequim e Havana, apesar de sua ambição de vestir conforme figurino próprio. O exemplo de Gana, de cujo processo fui testemunha por mais de dois anos, prova que a influência em questão diminuiu muito, bastante mesmo, merecendo uma retificação no que tange ao julgamento das tendências dominantes. Vejamos os fatos históricos: apesar do decantado neutralismo, Gana realmente esteve muito mais voltada para o mundo comunista. Houve momentos em que os observadores consideraram Nkrumah completamente irrecuperável, exatamente na época em que iniciava eu a missão diplomática de que me honrarei para sempre. Foi nos fins de 1961, o dirigente voltava de longa viagem pelo mundo socialista, tendo se demorado na Rússia e na China, onde deu largas à sua admiração pela rapidez do progresso naquelas áreas. Retornou à Gana profundamente impressionado, mas muito vacilou, embora tenha assumido algumas posições e adotado soluções bastante características. O seu partido, o CPP, enveredou por uma ação socializante e mais ampla possível. Como se sabe, a base comunitária africana favorece, por si só, um sistema de vida mais próximo ao socialismo, mas está muito longe de facilitar o comunismo. Dessa realidade comunitária aproveitaram-se os ideólogos do CPP, para desencadear sua ação de propaganda de um ideário radical. Reconheceu porém Nkrumah, após vacilações e recuos, a impossibilidade de promover o desenvolvimento de seus país seguindo semelhante caminho. Recentemente, informações que nos chegaram, muito precárias, como tudo que sobre a África colhemos de terceiros, porque manipuladas ou distorcidas, dão conta de retificações levadas a efeito por Nkrumah, retificações essas sob o argumento de que Gana não possui atualmente os meios de realizar o socialismo. Assim é que, entre outras, adotou recentemente medidas econômicas liberais, fazendo inclusive o elogio do capitalismo. Conforme essa nova orientação, Gana terá uma economia mista, não pensando impor qualquer limitação aos investimentos privados. Justificando-se, acentua o líder ganense que, antes de promover o socialismo, para o qual o seu país não possui ainda os meios necessários, prefere preocupar-se agora em possibilitar os fundamentos reais sobre os quais poderá erigi-los, que são a modernização da agricultura e a industrialização de Gana. O que prova tudo isso é que os africanos buscam mesmo, cometendo erros e acertos, de experiência em experiência, ao longo de sua revolução, a conquista de um equilíbrio, repito, para substituir o que lhe foi destruído pelas forças e a prática colonialistas. (...)” pp.19-20.

 

II- Missão Condenada: Diário

- O autor inicia seu relato pelo seu retorno à África relembrando sua primeira estada em 1961. Agora de volta, em fevereiro de 1963, após a renúncia de Jânio Quadros, transformando em pesadelo o que outrora fora conquista. Foram 14 meses duros na África. Eis sua volta de férias.

- Adiante o autor relata sua rotina de embaixador, suas pretensões de leituras e releituras além de possibilidade de dedicação à escrita literária, apesar de parco tempo livre. Na sua volta de 2 meses de férias percebe uma atmosfera diferente em Acra.

- “Sem data — Encontro Acra diferente, sem a atividade e a animação que lhe davam ares de grande capital; Parece vencida, para não dizer morta. Como que existe um esmorecimento geral, perdeu o dinamismo, não mais existe a vitalidade antiga. O ritmo é outro, tudo marcha lentamente. A Acra de hoje não é nem a sombra daquela cidade movimentada, alegre, espírito triunfal, de quando aqui cheguei pela primeira vez. Talvez seja consequência dos momentos difíceis passados com o clima de terror inaugurado por elementos da oposição fantasma a Nkrumah, os quais atentaram vezes seguidas contra a sua vida, no ano passado. Predomina a incerteza, algum medo, existe sem dúvida retraimento e aguarda-se modificações de métodos e linguagem. Mas, não nos precipitemos.” (p.30)

 

- Acra certamente era a capital das lutas e o autor compara a cidade com Dakar e Lagos, mas certamente menos moderna, depois da comparação diz um ponto que acho interessante.

“Acra, pois, feia e desarmônica, é mais genuína do que outras capitais, além de ser mais representativa, sendo como foi, e como ainda o é, o grande centro irradiador do nacionalismo africano, cenário das conferências e dos encontros que mais influíram no aceleramento do processo de descolonização. Não é uma cidade sem história, tem um passado que lhe empresta orgulho e substância. Muito antes dos europeus se instalarem em suas praias, com os seus castelos e fortes, o que começou a ocorrer no Século XIV, Acra já tinha história, era um dos centros mais importantes do período pré-colonial, ainda agora insuficientemente conhecido, pois muitos historiadores europeus consideram a história africana apenas a partir da presença dos ocidentais no Continente Negro. Para eles a África não tem História a não ser a partir da colonização, considerando-a antes daquele período apenas como terra de tribos incapazes de progresso, em perpétuas guerra de destruição, A verdade, porém, é muito outra. Graças aos esforços de pesquisadores da História africana, destacando-se entre eles estudiosos nascidos na própria África, começamos a conhecer as grandes civilizações que se desenvolveram no Continente Negro, seus períodos de grandeza e de declínio.”

(...)

 

- “13, fevereiro — Compareci esta tarde à minha primeira recepção diplomática, após reassumir o posto. Foi no Alto Comissariado do Canadá, onde encontrei praticamente os personagens de sempre. Conheci porém o famoso Martin Appiah Danquah, o cérebro da política cacaueira de Nkrumah. É um homem simpático, sorridente como todo ganense. Falou de seu desejo de nova visita ao Brasil, dizendo guardar boas recordações da Bahia. Esteve ele em Itabuna e Ilhéus, correndo parte da zona cacaueira. Conversamos longo tempo, perguntando-me ele, a certa altura, se era verdade o que diziam sobre os meus antepassados. Queria, aliás, saber ao certo se realmente os meus bisavós foram ewes ou ashantis, respondo-lhe eu ignorar se procediam mesmo de uma das duas raças.

— De qualquer forma, deve sentir-se em casa, não? — indagou, com uma gargalhada”

 

- Contudo, apesar da ancestralidade, o autor se vê oriundo duma civilização diferente, apesar de reconhecer certos laços.

- O autor continua seu diário onde perpassa pelos eventos diplomáticos, onde visita um professor que de certa maneira se opõe a Nkrumah, outro lhe pergunta se há discriminação racial no Brasil e seu gesto mesmo não muito enfático na resposta demonstra que sim, e isto de certa maneira o atormenta, relatando desanimo em sua missão por diversas vezes e por variados motivos.

- Apesar de citar o temperamento difícil de Vivaldo Costa de Lima, relata seus avanços nos estudos culturais e religiosos, mas destaca os africanos Nana Kobina Nktsia, da Universidade de Gana e Kofi Antubam, do Achinota College.

 

***

- E já em outro encontro...

 

“O professor Ciril Fiscian relembrou-me a homenagem prestada pela comunidade ‘Tá-bom’ ao Embaixador do Brasil e respectiva família, dizendo não ter comparecido por motivo de doença. Vale a pena rememorar a recepção, pelo significado de que se revestiu. Tudo correu assim: um ganense falando excelente português, cujo nome me escapa no momento, procurou-me certa manhã na Chancelaria, para informar-me do desejo da comunidade brasileira em Acra. Combinamos, para o dia seguinte, encontro com um personagem devidamente credenciado do chamado povo ‘Tá-bom’, o Reverendo G. K. Nelson, capelão do Exército de Gana, que me ofereceu breve informe sobre a fundação e desenvolvimento da nossa comunidade”... p.44 (...)

 

- página 47 – discurso Nelson...

 

"Excelências. Em nome do Chefe, da Rainha e do povo que formam esta comunidade, em Acra, sinto-me honrado em dar as boas-vindas ao Senhor Embaixador R. Souza Dantas, do Brasil, a esta comunidade e também a Gana.

"Já é por demais sabido que a comunidade brasileira de Acra se compõe de descendentes dos imigrantes brasileiros que saíram da Bahia e aqui chegaram em 1836. E como não poderia deixar de ser, foi logo desde o início nossa grande vontade, ao oferecer uma homenagem ao Senhor Embaixador, aproveitar a ocasião para render sincero tributo ao Nii Ankrah de Obtoblohum. Pois foi ele o nosso grande anfitrião, vez que hospedou em seu palácio os nossos antepassados que pisaram pela primeira vez em solo ganense (na ocasião a antiga Costa do Ouro).

"Nossos bisavós, por sua vez, logo adquiriram a amizade e logo se tornaram merecedores da grande estima do povo Ga, pois que muito ajudaram este povo financeiramente e na luta contra os outros povos da terra.

"Nossos antepassados também contribuíram de maneira decisiva para o engrandecimento da vida social de Acra e de Gana, e foram eles que introduziram aqui muitos hábitos civilizados, como, por exemplo, o uso das roupas europeias, o querosene.

"É bem verdade que nenhum de nós aqui presente já visitou o Brasil, mas isso não importa: continuamos a considerar o Brasil a nossa terra-mãe, e esperamos ansiosamente, Senhor Embaixador, por esta oportunidade de congraçamento, em Gana. E digo mais: nós nos sentimos no dever de lhe oferecer esta recepção, vez que o Senhor Embaixador é o representante legítimo de um país que nós consideramos, como já disse, nossa terra-mãe.

"E esperamos assim que, enquanto o Senhor Embaixador permanecer em Gana, possa contar com a nossa sincera ajuda a qualquer momento, mas logicamente, sem infringir de leve sequer, a nossa lealdade ao Governo de Gana. E esperamos, também, que o Senhor Embaixador possa ajudar a qualquer membro desta comunidade, se aparecer ocasião para tal.

"Senhor Embaixador: o Chefe, a Rainha e os membros da comunidade brasileira em Acra lhe desejam uma estada feliz em Gana. Muito obrigado, Fortunato Antônio Nelson, Nii Azumah III”.

 

 

- página 50 – 25, fevereiro...Lendo Os Condenados da Terra...

 

25, fevereiro — Leitura de Les Damnés de Ia Terre. Muito se escreverá ainda sobre o processo de descolonização, mas acredito que nenhum outro livro como este de Frantz Fanon. Além de terrificante, pelos aspectos que passa em revista e analisa, como também pelos problemas que examina, é uma verdadeira apologia da violência. Para Frantz Fanon, a violência é a única arma viável contra o colonialismo. Através da introspecção e da observação, cheio de cólera e paixão, êle apresenta um quadro que se poderia dizer apocalíptico. Para ele, só há um valor, só uma arma, só um princípio: a violência. Afirma que a violência dos colonialistas só pode ser vencida pela violência. Livro terrível, que arrepia e arrebata. Realmente, a atmosfera da descolonização foi a da violência, continua sendo a da violência, será a da violência, mesmo quando ela pareça ausente.”

 

-  página 52 – 1º março..

 

1º, março — Começam a enfeitar a cidade, para as comemorações da Independência. As mesmas decorações dos anos anteriores, mal apercebidas pelo povo. Mas não será de outra natureza, essa indiferença? A verdade é que alguma coisa mudou. A vida torna-se cada vez mais cara, a miséria cada vez maior. Contudo, Gana é o país mais bem aparelhado, aquele que oferece melhores perspectivas. As dificuldades passarão, pois além de ser bastante rico, imensas as suas possibilidades de desenvolvimento econômico, os seus dirigentes empenham-se, com energia, comandados por Osagyefo, em plantar uma indústria verdadeiramente africana. Para isso, porém, tornam-se necessários sacrifícios imensos. Entre os projetos em realização, o que maiores sacrifícios têm reclamado é o da barragem do Rio Volta, que fornecerá energia para uma indústria nascente e diversificada.”

 

***

- página 65 – li entre outros...

 

“Li, entre outros documentos, breve depoimento de Silvanus Olympio, Presidente da República do Togo. Fala aquele descendente de brasileiro, com um toque quase patético, sobre o que, na sua opinião, deveria ser a unidade africana. Avistei-me com Silvanus Olympo por três vezes, em Lomé, por ocasião das festividades comemorativas da Independência do Togo, em 1962, às quais compareci como representante do governo de meu país, na qualidade de Embaixador. Deram-se assim os três encontros: o primeiro, na mesma tarde em que cheguei a Lomé (era a minha segunda viagem à capital togolesa). Foi em seu gabinete de trabalho, no Palácio Governamental, quando o sondei sobre a possibilidade de uma viagem sua ao Brasil, dando-lhe ao mesmo tempo ciêncía do interêsse do meu país em manter relações diplomáticas com o seu, aquele da área atlântica onde a comunidade brasileira é mais numerosa. A segunda vez foi no desfile da Independência e, o terceiro, no banquete oferecido no Benin Hotel. Falando para a esposa, dissera ele, sorrindo para minha mulher, ao ser-lhe ela apresentada:

- Veja você como nos parecemos todos. Em tudo, mas em tudo mesmo. Na côr, no gosto pela vida, na gentileza. Em tudo, em tudo mesmo. Somos irmãos, estamos apenas separados pelo oceano — e riu, o seu riso simpático e aberto.

No Rio, oito meses depois, num tórrido fim de tarde de janeiro, escutei pelo rádio a notícia de sua morte, assassinado por um dos que sustentaram o golpe de Estado que o derrubou do poder.”

(...)

 

- página 72 – 13 de março...

 

13, março — Grande sensação na cidade de Acra. Os responsáveis pelos atentados à bomba, ocorridos no ano passado, estão em julgamento. Os nomes de Adamafio e Ako-Adjei aparecem como autores e animadores do plano de derrubada do regime de Osagyefo. São aqueles dois antigos Ministros, e mais o Secretário administrativo do Partido da Convenção Popular, Coffie Grable, acusados diretamente, constando o processo, inclusive, haver o primeiro fornecido as bombas para os atentados contra Nkrumah. Enquanto lia o relato da Suprema Corte, tinha presente ao espírito a figura arrogante, antipática e grosseira do antigo Ministro das Informações, Adamafio. Lembro-me da primeira visita que lhe fiz, acompanhado de homens de negócios do Brasil. Recebeu-nos éle com manifesta má-vontade, sequer levantou-se. Ouviu-nos com impaciência, passando um olhar indiferente pelos planos que lhe foram exibidos, para terminar desencorajando-nos com a seguinte frase:

— Dentro de um ano seremos uma República Socialista e então enxotaremos todos os estrangeiros exploradores de Gana. Por conseguinte, não há muita oportunidade para negócios desse tipo.

Ê um personagem antipático e antipatizado. O povo tinha-lhe horror — e ninguém mostrou surpresa na madrugada em que correu a notícia de sua prisão, como traidor. Ninguém entendeu foi estar Ako-Adjei envolvido na trama. Quase todos mostraram-se perplexos. Com desprezo, alguns tentaram explicar a sua traição:

— Trata-se de um intelectual.

Acredita-se que os implicados nos atentados, em atendimento ao que exigem as multidões do CPP, serão condenados à morte.”

(...)

 

- pág 90 – 24 abril...

“..decisão de deixar o posto. Espero fazê-lo em agosto. Impossivel ficar mais tempo. As divergências são grandes. Seria inútil permanecer. Não concordo em que sejamos apenas informantes. Nossa presença deveria ser marcada pela agressividade, através uma ação positiva. Da maneira que vamos, transformamo-nos numa repartição puramente burocrática. Para que serve a presença do Embaixador? Apenas para mostrar-se nos coquetéis e nas recepções?”

(...)

 

- pág. 95 sem data... final do diário e retorno...

 

Sem data — Penso regressar em definitivo, ao Brasil, dentro de mais um mês. Já tenho inclusive os termos da carta ao Presidente Goulart, solicitando exoneração do honroso posto. Pretendo acentuar que não foi feito muito, tendo como objetivo o incremento de nossas relações comerciais, apesar das inúmeras solicitações no sentido de providências que, sem dúvida, reconheço não poderiam ser tomadas sem maiores estudos, relacionados com problemas de trocas, pagamentos, tarifas e fretes. É meu dever registrar que a nossa Embaixada jamais esteve devidamente aparelhada para funcionar eficazmente. Nada foi, realmente, feito para o incremento de nossas relações comerciais, tarefa que requereria atuação agressiva, na base de esquema inspirado no esforço coordenado e conjunto das diversas representações brasileiras nos países africanos, com o auxílio dos vários órgãos oficiais e privados que, direta ou indiretamente, influem no processo da produção exportável e sua comercialização. Não penso em escusar-me pelas coisas que deixaram de ser feitas, mesmo sem contar com a devida aparelhagem, mas não poderei deixar de referir-me ao que poderia ter sido a nossa ação em Gana, caso realmente tivéssemos tido condições de realizar tudo quanto foi planejado. Sei que não farei nenhuma carta nesses termos. Vai ser um pedido de exoneração puro e simples, alegando motivos de saúde. A verdade é que tudo não passou de um drama, que infelizmente não sei se o poderei dar aqui como encerrado para sempre.

Mas esse é o meu desejo. Mais do que isso, é o meu propósito.

(Acra, Gana, África Ocidental)”

 

***

Notas e trechos

Fuca, Insurreição CGPP

 

Perfil – Raimundo Souza Dantas

Fonte:  http://www.acordacultura.org.br/herois/heroi/raimundodantas

Nasceu em Estância/SE, em 11 de fevereiro de 1923. Filho de família humilde, de mãe lavadeira e pai pintor de parede. Raimundo desde muito cedo teve de trabalhar, aprendendo vários ofícios. Foi aprendiz de ferreiro e de marceneiro, e, ainda em Estância, foi entregador de embrulhos de uma casa comercial. Aos dezesseis anos foi trabalhar numa tipografia. Foi nessa tipografia que começaria o seu processo de alfabetização. Mudou-se para Aracaju passando a trabalhar na tipografia onde eram publicados os jornais de Estância e da própria capital sergipana.

Foi nessa época, já nas oficinas do Correio de Aracaju, ouvindo várias leituras de textos de Jorge Amado, Machado de Assis e Marques Rebelo, feitas com o auxílio do amigo Barbosa, um amante da literatura moderna, que consolidou seu letramento. Com ajuda do amigo Armindo Pereira, passaria a escrever no periódico Símbolo.

Aos dezoito anos (1941), chegou ao Rio de Janeiro onde começou a trabalhar no semanário Diretrizes, depois passou a colaborar nos periódicos Vamos Ler, Carioca e Diário Carioca, onde atingiu o posto de redator. Em 1944 escreveu seu primeiro livro, o romance, “Sete Palmos de Terra”, com uma linguagem simples e repleta de recordações de Estância.

No Rio, tornou-se amigo de grandes escritores, como Graciliano Ramos. No ano seguinte, em 1945, lançava seu segundo livro, de cunho autobiográfico, e fundava o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com Solano Trindade, Aladir Custódio e Corsino de Brito. Essa associação lutava pela inserção da população afro-brasileira no processo de redemocratização, através da luta pela melhoria das condições de trabalho e de educação.

Já como jornalista consagrado casou-se com Idoline com quem no ano seguinte teve seu primeiro filho, Roberto. Em 1949 publicaria mais um livro, desta vez para a Campanha de Educação de Adultos do Ministério da Educação e Saúde, onde relatava toda a sua trajetória de vida.

Foi nomeado oficial de gabinete do governo de Jânio em 1961, para em seguida ser designado a Gana como o primeiro embaixador negro do Brasil, em já nos anos 70, assumiu a embaixada da Argentina (1976).

Entre as duas nomeações, trabalhou no serviço público federal como técnico de assuntos educacionais, cabendo-lhe organizar no MEC o Setor de Relações Públicas. Foi membro do Conselho Nacional de Cinema, INC, e integrou a comissão para criação de serviços educacionais nos Museus; participou também do Conselho Estadual de Cultura, no Rio de Janeiro.

Obras publicadas: Sete palmos de Terra, 1944. Agonia, 1945. Bernanos e o problema do romancista católico, 1948. Solidão nos campos 1949. Vigília da Noite, 1949. Um Começo de Vida, 1949. Reflexões dos 30 anos, 1958. África Difícil, 1965.

Faleceu no Rio de Janeiro em 2002.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Mogobe Ramose: Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana – breve nota

Este artigo de Mogobe Ramose tem como objetivo assegurar a legitimidade da Filosofia Africana assim como de Filosofias próximas que sofreram a deslegitimação a partir dos ideais do Ocidente de colonização, escravidão e o violento racismo. E ainda evidencia essas filosofias silenciadas como libertadoras, a exemplo da Filosofia Ubuntu.

O Significado da Dúvida.

O autor revela que dois pilares, em suma, ancoravam a colonização: a religião que através do cristianismo visava converter o mundo ou todo o dito novo mundo. E segundo, a ideia filosófica de que somente o Ocidente seria dotado de racionalidade, tal alegação personificada na afirmação aristotélica “o homem é um animal racional”, ou depois por Papa Paulo III que declarava que “todos os homens são animais racionais”. Não considerando assim, nessa afirmação, os africanos, os ameríndios, os australasianos e, muito menos, as mulheres como seres humanos racionais. Isso se caracteriza na negação Ontológica dos Africanos, a negação da humanidade e, portanto, a dúvida sobre a existência de uma Filosofia Africana.

Sobre o Significado de Filosofia.

O autor aponta que etimologicamente a filosofia significa amor à sabedoria, e é o ser humano que está associado à busca dessa sabedoria.  Sendo assim, ela é onipresente e pluriversal. Pode-se então dizer que a Filosofia Africana remonta de tempos imemoriais até nossos dias. E mais, ela surge através do fundamento e da perspectiva pertencente à autoridade. “O exercício desta autoridade situa a questão no contexto de relações de poder. Quem quer que seja que possua a autoridade de definir, tem o poder de conferir relevância, identidade, classificação e significado ao objeto definido.” (Ramose:2011, p8) Desse modo, o poder do ocidente, através da brutalidade do colonialismo, estabeleceu a perspectiva ocidental como universal.

Pluriversalidade e Exclusão Filosófica.

Dessa forma, o autor propõe uma mudança de paradigma e trata de pluriversalidade ao invés de universalidade. E que essa universalidade se faz na prática de uma particularidade a fim de excluir outras, eliminando a pluriversalidade do ser. Neste trecho se postula que, “Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser. (Bohm, 1980, 30-31).”

Contudo, a particularidade é uma premissa para a filosofia apenas se for reconhecida como uma forma de compreender e interagir com a pluriversalidade do ser, e não para excluir outras filosofias.

As Implicações da Exclusão Filosófica.

- Anular a validade da particularidade como o ponto de partida da filosofia.

- Esta exclusão está em busca de outros fins que não a própria filosofia. Trata-se de uma tentativa de reivindicar para os protagonistas da exclusão o direito de ser o solo determinante do significado da experiência, do conhecimento e da verdade para todos.

-A obrigação moral de reconhecer a legitimidade da necessidade ontológica de continuar sendo (ser-sendo) para contrapor a morte ontológica programada pelo poder da universalidade.

-esse reconhecimento ontológico é o convite para estudar outras filosofias a fim de atingir a pluriversalidade do ser na filosofia.

- “A quinta implicação derivada da filosofia da exclusão é que títulos como A História da Filosofia (Copleston), Filosofia, História e Problemas (Stumpf and Fieser, 2002) deveriam ser ajustados por especificidades como em Uma História Crítica da Filosofia Ocidental (O’Connor, 1964). A atenção voltada para a história da filosofia deveria sempre lembrar cuidadosamente da dívida da filosofia grega para com o antigo Egito africano. Ela deveria também levar em consideração o mercado escravocrata transatlântico que separou forçosa e fisicamente povos da África de sua terra natal e seus parentes. A diáspora africana é, portanto, parte integrante da história da filosofia Africana.”

Filosofia Africana.

Aqui o autor indica que o uso da terminologia África (ou Africana) não se dá sem ressalvas quanto à sua origem estrangeira. E ao afirmar que não há bases ontológicas para negar a existência de uma filosofia africana e que a definição de filosofia perpassa uma narrativa de poder epistemológico, então se difere o filosofo profissional, que nasceu na África mas que possui um pensamento calcado nas epistemologias do Ocidente, como não sendo uma filosofia africana. Em suma, a filosofia não está dissociada do contexto histórico-intelectual em que ela pertence e nem do contexto social em que ela nasceu. E que o objetivo primordial da filosofia é a libertação humana.

O Reino Político na África

Antes de abordar a filosofia ubuntu, Ramose trata da questão do Reino político trazida por Kwame Nkrumah, que ao enunciar e enfatizar a consolidação do “reino político,” Nkrumah estava de fato tratando da necessidade da liberdade econômica da África colonizada, ou seja, independência econômica, para além da independência nominal de Gana e de outros países africanos. Em suma, criou-se um outro cenário no qual as riquezas e recursos naturais, minerais e humanos ainda estavam sob o domínio estrangeiro do colonizadores, mas agora de uma forma indireta. O que foi denominado de Neocolonialismo.

Com isso, deve-se ter ressalvas aos ‘pós’ no campo intelectual, a exemplo filosofia “pós-colonial”, (pois ainda se está, na verdade, no contexto de neocolonialismo.)

Filosofia Ubuntu

Ubuntu é um gerundivo (gerundive) abstrato que exprime a filosofia praticada pelos povos da África falantes do Bantu. Ele compartilha o caráter de gerundivo (gerundive)– isto é, a ideia de tornar-se, Ser (be-ing) e ser como manifestações do movimento como princípio do Ser- (be-ing)- com os verbos egípcios antigos, wnn(unen) “existir”, d d (djed) “ser estável”, “durável” e hpr (kheper) “tornar-se” (Obenga, 2004, 37-39). Como os antigos verbos egípcios referidos, a concepção filosófica ubuntu do mundo é que “Coisas não tem a fixidez e inflexibilidade que acreditamos que elas tenham. As coisas são mutáveis e em movimento na Terra, no céu, em baixo d’água, etc. A Terra e o céu, eles mesmos se movem” (Obenga, 2004, 39; Ramose, 1999, 50-53). Um dos problemas com as muitas definições e descrições do ubuntu é que ele é apresentado como uma filosofia da paz, ou mais especificamente, da submissão e infinita capacidade de perdoar (Daye, 2004: 160-65) sem considerar a violência como uma condição de possibilidade herdada ontologicamente para a sobrevivência dos adeptos da filosofia ubuntu. Esta omissão na realidade descaracteriza o ubuntu tornando-o suscetível a experiências de pensamento, por vezes muito estranhas que o retratam sem qualquer fundamento em sua antropologia, cultura e história. Esta tendência é dominante na África do Sul. 
(Ramose:2011, p16) 


Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana

(On the legitimacy and study of African Philosophy)  

M. B. Ramose, University of South Africa, Pretoria 

Tradução: Dirce Eleonora Nigro Solis/ Rafael Medina Lopes/ Roberta Ribeiro Cassiano

RAMOSE, M. B. Ensaios Filosóficos, Volume IV - outubro/2011

“Mogobe Ramose obteve primeiramente o título de bacharel em Artes na University of South Africa. A isto se seguiram os títulos de bacharel, licenciado e doutor em Filosofia obtidos na Leuven University (Katholieke Universiteit Leuven) na Bélgica. Possui também o título de mestre em Relações Internacionais da London University. Suas áreas de especialidade e principais interesses são Filosofia Africana, Filosofias da religião e do direito, defesas étnicas e filosofia das relações internacionais. Possui uma publicação vasta nas áreas mencionadas e seus trabalhos continuam a atrair a atenção de muitos estudiosos. Lecionou em duas universidades europeias e quatro universidades africanas, incluindo dois seminários católicos. Atualmente é professor extraordinarius na University of South Africa.”


nota por Fuca, insurreição cgpp. 2020.