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segunda-feira, 24 de junho de 2019

TRABALHAR O SAL E AS MIGRAÇÕES INTERNAS


TRABALHAR O SAL E AS MIGRAÇÕES INTERNAS

“Trabalhando o sal
É amor, o suor que me sai
Vou viver cantando
O dia tão quente que faz
Homem ver criança
Buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro
Pra vida de gente levar”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

No intuito de estabelecer uma relação entre migração e a obrigatoriedade de venda da força de trabalho por parte dos trabalhadores, este texto visa abarcar o contraste capitalista entre cidade e campo e o âmbito das migrações internas brasileira, e como neste sistema capitalista o trabalhador se torna submetido ao capital através da sua mobilidade da força de trabalho.
Para evidenciar esses paralelos será utilizada a música Canção do Sal, de Milton Nascimento, em conjunto com dois textos estudados em sala de aula, um de Jean-Paul de Gaudemar, O conceito marxista de mobilidade do trabalho e outro de Paul Singer, Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo.
A música, neste caso, pode ser engendrada como uma representação social das realidades e dos conflitos vividos seja na cidade ou no campo e, sobretudo, pode reforçar a perspectiva legitima do espaço vivido para além ou conectado com o espaço percebido e concebido.
A música Canção do Sal relata o trabalho na salina, onde se é submetido a uma jornada de trabalho extensa para, quiçá, se obter os meios de subsistência tanto do trabalhador em si como de sua família. Pode-se perceber que há uma divisão do trabalho reduzida na descrição contida na letra, algo mais típico nos campos onde o mesmo trabalhador geralmente desenvolve e realiza diversas funções e etapas na fabricação de um mesmo produto. Parte do processo deste trabalho se encontra no trecho a seguir:

“Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Existe um conjunto de disparidades entre cidade e campo que culmina, entre outras coisas, na desvalorização do trabalho no campo, seja região litorânea ou rural, devido a concentração de capital nas cidades industrializadas e urbanizadas. A questão da divisão social do trabalho configura uma das diferenças entre cidade e campo.
A introdução de uma adequada divisão do trabalho com funções imbricadas entre si gera um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. De acordo com Adam Smith, a agricultura não comporta muitas subdivisões do trabalho como a manufatura pode proporcionar, e com base nisso Smith julgava, ainda, que uma sociedade estaria num estágio primitivo se sua divisão de trabalho fosse reduzida, pois a agricultura não conseguiria acompanhar o aprimoramento das forças produtivas da manufatura rumo a aquisição de riquezas.
A propensão do ser humano em realizar trocas está na origem da divisão do trabalho, no caso do trabalhador deve-se vender uma grande quantidade de sua força de trabalho como mercadoria de troca no sistema capitalista.
Existem diversos condicionantes para que os trabalhadores possam vender sua mercadoria, a força de trabalho. Gaudemar evidencia que a mobilidade do trabalho é algo crucial que o trabalhador deve obter para vender sua mercadoria já que é inerente ao capitalismo a constante mutação espacial em busca de capital. O sustentáculo do capitalismo se dá na perpetuação de desigualdades geográficas onde por um lado gera fatores para aglomeração de capital, que assim necessita de maior abundância de força de trabalho nesses espaços, ocorrendo o movimento oposto/inverso em outros espaços, que por vezes já foram explorados.
Para se adaptar a essa mobilidade há algumas características a serem cumpridas pelo trabalhador, tais como qualificação e liberdade. Na canção do Sal o trabalhador almeja um futuro melhor para seu filho através dos estudos, assim não precisaria se submeter ao trabalho semelhante ao do pai, que trabalha o dia inteiro sob o sol quente para receber pouco.

“Filho vir da escola
Problema maior de estudar
Que é pra não ter meu trabalho
E vida de gente levar. ”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Mas é necessário abordar melhor a mobilidade do trabalho assim como a força de trabalho se caracteriza numa mercadoria. O valor de troca é medido pela quantidade de trabalho socialmente necessário à produção da mercadoria considerada. Chama-se trabalho abstrato o suor, o esforço e a quantidade de energia humana do trabalhador dispensados num produto. E o que gera valor ao produto é a força de trabalho, o valor não se dá na circulação nem na troca de mercadorias. É a própria força de trabalho que torna possível se ter um valor de uso superior ao valor de troca de um produto, transformando dinheiro em capital.
Para a força de trabalho se consolidar como mercadoria no sistema capitalista, é necessário que ela esteja propensa a mobilidade e que essa força de trabalho seja, de certa forma, indiferente perante ao trabalho a ser exercido no cenário de fluidez do capital, no sentido de que se deve ter a capacidade de aplicar a força de trabalho em diversos ramos e atividades. Então, antes de tudo (ou outra condição), o trabalhador precisa encontrar-se livre, tanto na questão da "liberdade de escolher" onde empregar sua força de trabalho como livre em não se ter outra ocupação ou fonte de renda.
Sendo assim, a mobilidade da força de trabalho é uma exigência ao trabalhador e ao mesmo tempo o baluarte do capitalismo, ou seja, a existência do capitalismo se desenvolve e permanece porque existe a mobilidade da força de trabalho.
Então, na canção, quando o trabalhador da salina se refere aos estudos do filho, indiretamente se trata do possível desenvolvimento de uma capacidade maior de migrar, já que no campo não se terá a mínima valorização de sua mão-de-obra se o filho permanecer imóvel na mesma função do pai.
O trabalho precisa ser produtivo, e é considerado um trabalho produtivo aquele que consegue valorizar o capital, ou em outras palavras, que se possa ser efetivo na realização da mais-valia.

“Trabalhando o sal
Pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa
Encontrar a família a sorrir”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Se na música tem-se retratada a vida de uma família, é importante frisar que as condições e os motivos de migrar estão atrelados a uma determinação de classes, a abordagem da questão migratória deve se dar como um processo social dada as condições históricas de um grupo social ao invés da atividade de um indivíduo apenas. Uma pessoa ou um grupo quando migra carrega consigo sua posição de classe.
As migrações internas seguem basicamente o rearranjo espacial das atividades econômicas, Paul Singer utiliza o conceito de aglomeração espacial das atividades - que se traduz em sua urbanização, sendo um requisito de sua crescente especialização e consequente complementariedade na relação cidade/campo.
Uma aglomeração também no sentido de polos de crescimento pode ser vista, que remete ao tempo (abstrato, que é dinheiro no capitalismo) que deve ser reduzido pelas facilidades dos polos industriais, mas que após certo tempo de exploração e de acumulação exacerbada vem o êxodo, assim o capital terá que visar outros espaços.
As migrações internas podem ser datadas desde a década de 1930 a partir da legislação do trabalho, mas que se intensificou depois dos anos 1950 atingindo, então, seu ponto culminante pós década de 1970, época de uma industrialização e urbanização rápida. Vale frisar que a industrialização não ocorre de forma espontânea no capitalismo, pois exige alguns arranjos institucionais para que se consolide a sua "explosão".
Ao se voltar para canção, portanto, pode constatar a precariedade das condições de trabalho onde o trabalhador no auge de sua liberdade se encontra obrigado a trabalhar o dia inteiro sob o sol quente para poder sobreviver minimamente, já seu filho está fadado ao mesmo destino se não buscar as vias de migração.

Referências:

GAUDEMAR, J. P. de. O conceito marxista de mobilidade do trabalho, In: A mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977, p.180-210.

Milton Nascimento. Canção do Sal. Disponível em <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/1160872/>, acesso em 10/05/2019

SINGER, P. I. Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo, In: Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense/CEBRAP, 1975 (1*ED. 1973). p.29-60.

SMITH, A. A riqueza das nações. Nova cultural, 1988, v.1, p.17-54.


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