(...)Antes, você começou a falar sobre o
complexo carcerário industrial e expôs sua visão para uma “democracia da
abolição”. Você pode detalhar isso?
Ângela Davis – Primeiro, o
complexo carcerário industrial resulta da falha
em se decretar a democracia da abolição. “Democracia da abolição” é uma expressão
utilizada por Du Bois em seu livro Black Reconstruction, seu estudo
germinal sobre o período imediatamente posterior à escravidão. George Lipsitz
utiliza esse termo hoje dentro de contextos contemporâneos. Eu tentarei
explicar resumidamente sua aplicabilidade em três formas de abolição: a
abolição da escravidão, a abolição da pena de morte e a abolição da prisão. Du
bois sustentou que a abolição da escravidão foi consumada apenas no sentido
negativo. A fim de alcançar a abolição abrangente da escravidão – após a
instituição ter se tornado ilegal e os negros libertos de suas correntes -,
novas instituições deveriam ter sido criadas para incorporar os negros dentro
da ordem social. A ideia de que todo ex-escravo iria receber 40 acres de terra
e uma mula é, por vezes, ridicularizada como um boato natural que circulou
entre os escravos. Na verdade, essa ideia se originou de uma ordem militar que
conferia terras abandonadas da Confederação aos negros libertos em algumas
partes do Sul. Mas a procura continua por terra e pelos animais que precisavam
ará-las refletia uma compreensão entre os ex-escravos de que a escravidão não
poderia ser verdadeiramente abolida até que fornecessem às pessoas os meios econômicos
para sua subsistência. Eles também precisavam de acesso a instituições de
ensino e precisavam reivindicar o voto e outros direitos políticos, um processo
que começara mas que permaneceu incompleto, durante o curto período de
reconstrução radical que terminou em 1877. Du Bois alega que um leque de
instituições democráticas é necessário para atingir plenamente a abolição – a democracia
da abolição.
O que significa então abolir
a pena de morte? O problema é que a maioria das pessoas supõe que a única alternativa
a ela é a prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional.
Contudo, se pensarmos na pena capital como uma herança da escravidão, sua
abolição também implicaria a criação das instituições que Du Bois mencionou –
instituições que ainda terão de ser construídas 140 anos depois do fim da
escravidão. Se ligarmos a abolição da pena capital à abolição das prisões,
então teremos que estar dispostos a abrir mão da alternativa de vida sem a
possibilidade de liberdade condicional como alternativa principal. Ao pensarmos
especificamente na abolição das prisões usando a abordagem da democracia da
abolição, iríamos sugerir a criação de uma série de instituições sociais que
começariam a resolver os problemas sociais que colocam as pessoas na trilha da
prisão, ajudando, assim, a tornar os presídios obsoletos. Existe uma conexão
direta com a escravidão: quando a escravidão foi abolida, os negros foram
libertos, mas lhes faltava acesso a recursos materiais que lhes possibilitariam
moldar vidas novas, livres. As prisões prosperaram no último século
precisamente por conta da falta dessas estruturas e pela permanência de algumas
estruturas da escravidão. Elas não podem, portanto, ser eliminadas, a não ser
que novas instituições e recursos estejam disponíveis para essas comunidades,
que fornecem, em grande parte, os seres humanos que compõem a população
carcerária. (...)
Numa série de entrevistas dada logo após o escândalo do presídio de Abu Ghraib, Angela Y. Davis analisa como sistemas históricos de opressão tais quais a escravidão e o linchamento continuam a influenciar e solapar a democracia na atualidade. Davis se fundamenta na tese de W. E. B. DU Bois, segundo a qual, quando os negros se tornaram livres da escravidão nos Estados Unidos, negaram-lhes os privilégios plenos de outros cidadãos. Essa negação de direitos plenos e a criação de um sistema carcerário norte-americano emergiram como uma maneira de manter o domínio e o controle sobre populações inteiras. Davis investiga a noção de “Democracia da Abolição” como a democracia por vir, um conjunto de relações sociais livres da opressão e da injustiça