(...) Existem brigas internacionais e de casais, estas embora no anonimato do lar fazem a história. Ocorreram na noite de vinte e quatro de Janeiro de hum mil oitocentos e trinta e cinco. Penso que tinha uns dez ou doze anos e elas imprimiram profundas mudanças na minha vida, na história da Bahia e quiçá do Brasil. Inacreditável.
Na Rua do Paraíso em um cômodo sem janelas, três crianças assustadas e maltrapilhas estão sentadas em uma cama; duas têm ranho escorrendo pelo nariz, e a terceira os olhos inflamados. Todas choram.
Ao lado, Agostinha, preta nagô, discute com o seu amigo e pai de seus filhos, Belchior:
- Não! Não detesto os brancos vim escravizada de minha terra e um branco me emancipou, não tenho raiva deles.
Belchior já fulo de raiva diz:
- Como concordar com isso? Olhe para as crianças, eu preferia que estivessem mortas, maldita hora! Agostinha atira-se aos pés de Belchior e implora. Vendo a cena, os pequenos choram com mais intensidade.
- Pelo amor de Deus , Belchior, e as crianças? Pense, homem, pense!
- Pior do que estão não ficarão. Sai mulher! Você verá, em breve não teremos mais brancos ou mulatos vivos na Bahia. – Saiu e bateu a porta com violência.
Na Rua de Guadalupe, em um cômodo de aluguel, cinco crianças choram e pedem pão à mãe, Sabina da Cruz, nagô emancipada que berra:
- Cale a boca peste! Vão dormir que a fome passa! Não sei onde eu estava com a cabeça.
- Não grite, mulher dos infernos. Perece louca! Gritou Victorio, preto nagô, pai de seus filhos e conhecidos entre os muçulmanos como Solê.
- Não se meta com isso, pelo amor de Deus! Eu sei das suas conversas com os homens dos saveiros. Não vá meu amigo!
- Cale a boca mulher! Já te falei. Amanhã os negros serão os donos da terra.
Sulê colocou seu turbante e traje islâmicos, pegou vários facões guardados debaixo da cama, beijou seu patuá e saiu sem olhar para trás.
Na Ladeira do Desterro em um porão úmido e mal iluminado cinco crianças terminam de jantar arroz puro e pedem mais à mãe, Guilhermina de Souza, que diz:
- Vão dormir nojentos. Come tudo hoje, e amanhã come vento? Parece que come com os olhos. Já pra cama. Se eu pegar o cinto neguinho vai chorar.
Fortunato, preto nagô escravizado, resmunga pensativo:
- Eles choram porque têm fome.
Ela grita: - E por que você não traz comida? Fica metido em reuniões com os nagôs de Santo Amaro.
- Cala boca nega do cão! Virou-se, tirou seis pistolas que estavam em uma caixa, tomou seu tessubá, rosário, e saiu sem nada dizer.
Agostinha trancou a porta, arrastou consigo os filhos, foi até a Casa de Correção e disse:
- Quero falar com o comandante.
Guilhermina e Sabina da Cruz foram ao posto da cavalaria, e disseram em compasso:
- Onde está o oficial?
Por brigas que tiveram com nagôs e haussás seus vizinhos, Tereza, nagô escravizada e Duarte Mendes, africano, foram até o quartel dos milicianos e garantiram:
- Naquela casa todos são discípulos de Luiz Sanin, possuem papéis com estranhos caracteres. Falam língua enrolada e têm parte com o cão.
Os escravos que participavam do conluio riam à socapa. Era ardentemente desejado o momento em que invadiriam as casas senhoriais... quebrariam as louças... sim... sim.. o lustre da sala... os penduricalhos... um trabalhão pra limpar... ah... sim... a cristaleira... copos e jarras... delicados desenhos... finos contornos. Ah... certo... as taças! ... com vinhos cor de sangue... as festas... as haras... os negócios... apoteose do brilho e esplendor. Sim... sim... e os bibelôs de nhanhã...
Aquela seria conhecida na História como a noite dos cristais, não foi. (...)
(A Noite dos Cristais – Luís Fulano de Tal) pag: 80/83