TRABALHAR
O SAL E AS MIGRAÇÕES INTERNAS
“Trabalhando o sal
É amor, o suor que me sai
Vou viver cantando
O dia tão quente que faz
Homem ver criança
Buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro
Pra vida de gente levar”
(Milton Nascimento. Canção do
Sal)
No intuito de estabelecer uma
relação entre migração e a obrigatoriedade de venda da força de trabalho por
parte dos trabalhadores, este texto visa abarcar o contraste capitalista entre
cidade e campo e o âmbito das migrações internas brasileira, e como neste
sistema capitalista o trabalhador se torna submetido ao capital através da sua
mobilidade da força de trabalho.
Para evidenciar esses
paralelos será utilizada a música Canção
do Sal, de Milton Nascimento, em conjunto com dois textos estudados em sala
de aula, um de Jean-Paul de Gaudemar, O
conceito marxista de mobilidade do trabalho e outro de Paul Singer, Migrações internas: considerações teóricas
sobre o seu estudo.
A música, neste caso, pode ser
engendrada como uma representação social das realidades e dos conflitos vividos
seja na cidade ou no campo e, sobretudo, pode reforçar a perspectiva legitima
do espaço vivido para além ou conectado com o espaço percebido e concebido.
A música Canção do Sal relata
o trabalho na salina, onde se é submetido a uma
jornada de trabalho extensa para, quiçá, se obter os meios de subsistência
tanto do trabalhador em si como de sua família. Pode-se perceber que há uma
divisão do trabalho reduzida na descrição contida na letra, algo mais típico
nos campos onde o mesmo trabalhador geralmente desenvolve e realiza diversas
funções e etapas na fabricação de um mesmo produto. Parte do processo deste
trabalho se encontra no trecho a seguir:
“Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar”
(Milton Nascimento. Canção do
Sal)
Existe um conjunto de
disparidades entre cidade e campo que culmina, entre outras coisas, na
desvalorização do trabalho no campo, seja região litorânea ou rural, devido a
concentração de capital nas cidades industrializadas e urbanizadas. A questão
da divisão social do trabalho configura uma das diferenças entre cidade e
campo.
A introdução de uma adequada
divisão do trabalho com funções imbricadas entre si gera um aumento
proporcional das forças produtivas do trabalho. De acordo com Adam Smith, a
agricultura não comporta muitas subdivisões do trabalho como a manufatura pode
proporcionar, e com base nisso Smith julgava, ainda, que uma sociedade estaria
num estágio primitivo se sua divisão de trabalho fosse reduzida, pois a
agricultura não conseguiria acompanhar o aprimoramento das forças produtivas da
manufatura rumo a aquisição de riquezas.
A propensão do ser humano em
realizar trocas está na origem da divisão do trabalho, no caso do trabalhador
deve-se vender uma grande quantidade de sua força de trabalho como mercadoria
de troca no sistema capitalista.
Existem diversos
condicionantes para que os trabalhadores possam vender sua mercadoria, a força
de trabalho. Gaudemar evidencia que a mobilidade do trabalho é algo crucial que
o trabalhador deve obter para vender sua mercadoria já que é inerente ao
capitalismo a constante mutação espacial em busca de capital. O sustentáculo do
capitalismo se dá na perpetuação de desigualdades geográficas onde por um lado
gera fatores para aglomeração de capital, que assim necessita de maior abundância
de força de trabalho nesses espaços, ocorrendo o movimento oposto/inverso em
outros espaços, que por vezes já foram explorados.
Para se adaptar a essa
mobilidade há algumas características a serem cumpridas pelo trabalhador, tais como
qualificação e liberdade. Na canção do Sal o trabalhador almeja um futuro
melhor para seu filho através dos estudos, assim não precisaria se submeter ao
trabalho semelhante ao do pai, que trabalha o dia inteiro sob o sol quente para
receber pouco.
“Filho vir da escola
Problema maior de estudar
Que é pra não ter meu trabalho
E vida de gente levar. ”
(Milton Nascimento. Canção do
Sal)
Mas é necessário abordar
melhor a mobilidade do trabalho assim como a força de trabalho se caracteriza
numa mercadoria. O valor de troca é medido pela quantidade de trabalho
socialmente necessário à produção da mercadoria considerada. Chama-se trabalho
abstrato o suor, o esforço e a quantidade de energia humana do trabalhador
dispensados num produto. E o que gera valor ao produto é a força de trabalho, o
valor não se dá na circulação nem na troca de mercadorias. É a própria força de
trabalho que torna possível se ter um valor de uso superior ao valor de troca
de um produto, transformando dinheiro em capital.
Para a força de trabalho se
consolidar como mercadoria no sistema capitalista, é necessário que ela esteja
propensa a mobilidade e que essa força de trabalho seja, de certa forma, indiferente
perante ao trabalho a ser exercido no cenário de fluidez do capital, no sentido
de que se deve ter a capacidade de aplicar a força de trabalho em diversos
ramos e atividades. Então, antes de tudo (ou outra condição), o trabalhador
precisa encontrar-se livre, tanto na questão da "liberdade de
escolher" onde empregar sua força de trabalho como livre em não se ter
outra ocupação ou fonte de renda.
Sendo assim, a mobilidade da
força de trabalho é uma exigência ao trabalhador e ao mesmo tempo o baluarte do
capitalismo, ou seja, a existência do capitalismo se desenvolve e permanece
porque existe a mobilidade da força de trabalho.
Então, na canção, quando o
trabalhador da salina se refere aos estudos do filho, indiretamente se trata do
possível desenvolvimento de uma capacidade maior de migrar, já que no campo não
se terá a mínima valorização de sua mão-de-obra se o filho permanecer imóvel na
mesma função do pai.
O trabalho precisa ser
produtivo, e é considerado um trabalho produtivo aquele que consegue valorizar
o capital, ou em outras palavras, que se possa ser efetivo na realização da
mais-valia.
“Trabalhando o sal
Pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa
Encontrar a família a sorrir”
(Milton Nascimento. Canção do
Sal)
Se na música tem-se retratada
a vida de uma família, é importante frisar que as condições e os motivos de
migrar estão atrelados a uma determinação de classes, a abordagem da questão
migratória deve se dar como um processo social dada as condições históricas de
um grupo social ao invés da atividade de um indivíduo apenas. Uma pessoa ou um
grupo quando migra carrega consigo sua posição de classe.
As migrações internas seguem
basicamente o rearranjo espacial das atividades econômicas, Paul Singer utiliza
o conceito de aglomeração espacial das atividades - que se traduz em sua
urbanização, sendo um requisito de sua crescente especialização e consequente
complementariedade na relação cidade/campo.
Uma aglomeração também no
sentido de polos de crescimento pode ser vista, que remete ao tempo (abstrato,
que é dinheiro no capitalismo) que deve ser reduzido pelas facilidades dos
polos industriais, mas que após certo tempo de exploração e de acumulação
exacerbada vem o êxodo, assim o capital terá que visar outros espaços.
As migrações internas podem
ser datadas desde a década de 1930 a partir da legislação do trabalho, mas que
se intensificou depois dos anos 1950 atingindo, então, seu ponto culminante pós
década de 1970, época de uma industrialização e urbanização rápida. Vale frisar
que a industrialização não ocorre de forma espontânea no capitalismo, pois
exige alguns arranjos institucionais para que se consolide a sua
"explosão".
Ao se voltar para canção,
portanto, pode constatar a precariedade das condições de trabalho onde o
trabalhador no auge de sua liberdade se encontra obrigado a trabalhar o dia
inteiro sob o sol quente para poder sobreviver minimamente, já seu filho está
fadado ao mesmo destino se não buscar as vias de migração.
Referências:
GAUDEMAR, J. P. de. O conceito
marxista de mobilidade do trabalho, In: A
mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977,
p.180-210.
Milton Nascimento. Canção do
Sal. Disponível em <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/1160872/>,
acesso em 10/05/2019
SINGER, P. I. Migrações
internas: considerações teóricas sobre o seu estudo, In: Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense/CEBRAP,
1975 (1*ED. 1973). p.29-60.
SMITH, A. A riqueza das nações. Nova cultural, 1988, v.1, p.17-54.