domingo, 5 de outubro de 2025

A CONSCIÊNCIA PRETA TAMBÉM REPRESENTA CORAGEM E AUTODETERMINAÇÃO.

 (Texto extraído do Jornal Yanda PanAfrikanu nº4 - Nov/2020).

A CONSCIÊNCIA PRETA TAMBÉM REPRESENTA CORAGEM E AUTODETERMINAÇÃO.

No intuito de escrever uma das reflexões que tive a partir do grupo de estudos do livro Escrevo O Que Eu Quero, do Steve Biko; estudos protagonizados pela UCPA, que aliás, também é a organização quem distribui o livro a preço popular para os pretos. Esse livro espanta pelo seu caráter didático e seu conteúdo de luta radical. Além do mais, pode-se tranquilamente fazer diversos paralelos com os aspectos da luta preta de hoje, tanto a luta do povo preto-africano no continente, quanto a luta dos pretos-africanos espalhados na diáspora. Contudo, não farei uma resenha do livro, apenas uma reflexão acerca da mensagem de autodeterminação e de coragem que nosso ancestral Steve Biko proclamou.

Muito se tem falado de consciência preta, porém pouco de autonomia. À direita ou à esquerda, o preto ainda enxerga a superação do racismo dentro dos parâmetros do sistema dominado pelos brancos e sobretudo visa a integração com os brancos como saída de emancipação num sistema reformado. Já para Biko, a Consciência Preta seria, “em essência, a percepção pelo homem preto da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo.”

Steve Bantu Biko (1946-1977) foi um grande ativista preto antiapartheid, uma liderança do movimento estudantil da Azânia (África do Sul) e um dos fundadores do Movimento de Consciência Preta. Sendo uma pessoa honrada, determinada, extremamente inteligente, Biko lutou incansavelmente e de forma intransigente em prol da causa preta e foi brutalmente torturado e assassinado pela polícia da África do sul do regime do apartheid, onde a minoria branca dominava a maioria preta na terra dos pretos.

Steve Biko pagou o preço pela sua coragem na busca pela autodeterminação do povo preto-africano na Azânia (África do Sul). Apesar da sua grande paixão pela vida, foi o amor pelo seu povo, que estava sendo oprimido mundialmente e particularmente no regime nefasto, legalizado e totalmente injusto do Apartheid da África do Sul, que o fez encarar os brancos frente a frente, com coragem e a certeza que o sopro da verdade de sua luta ecoaria por gerações e gerações até que esse sopro se tornasse um vendaval, mesmo que isso custasse sua vida.

Os seus ensinamentos e práticas ainda nos deixa a esperança futura, que após muito trabalho, ao longo de gerações e gerações, poderemos triunfar. Mas devemos, enquanto povo, arcar com alguns compromissos e nos responsabilizar pela direção de nossa luta de forma autônoma e independente, o nosso compromisso e dedicação pela causa coletiva deve sobrepor o individual. Pois ainda cada sopro de luta e de verdade pelo povo preto lançado por pessoas pretas comuns pode fazer a diferença no médio e longo prazo.

Para isso, nunca é demais frisar que devemos canalizar as nossas energias e, também, nossa resposta odiosa ao brancos, em projetos que vise a reconstrução/renascimento do povo preto.

Partindo do fato que nós, o povo preto, fomos colonizados no continente-mãe, África, e de lá fomos sequestrados para sermos escravizados na diáspora, e que esse sistema escravista e colonial foi perpetrado pelos brancos/europeus sob a pretensa supremacia branca, para que os brancos pudessem se desenvolver econômica, social e politicamente através do roubo, estrupo e genocídio de nosso povo, por mais de cinco séculos. Com isso, ainda sentimos, enquanto povo, todas as consequências diretas e indiretas dessas barbaridades racistas, sendo duas delas: o holocausto da escravidão africana, que foi o maior crime cometido contra um grupo de seres humanos; e a colonização, que espalhou a selvageria branca/europeia como dominação na vida do povo preto, acarretando no subdesenvolvimento de nossas nações e comunidades.

Desde então, a base da destruição do povo preto gira de forma praticamente perpetua pelas:

1. Instituições burocráticas da política. (Políticos) Que regem e governam em prol do sistema socioeconômico capitalista vigente, sistema esse que foi engendrado a partir do comércio de escravos pretos e sustentado pela força de trabalho desses escravizados. E como o capitalismo se sustenta pelo desenvolvimento geográfico desigual, se torna função do Estado capitalista, ou seja, que age em prol do mercado, manter as desigualdades e suas estruturas burocráticas dos três poderes nas mãos do senhores de escravos e seus descendentes (brancos), embora nos apresentem como um sistema que busca a igualdade e o direito para o povo, mas numa democracia burguesa.

2. Indústria militar (policias e afins) é o braço armado que resguarda as estruturas dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário) e é também a vertente estatal das mazelas que cercam uma política de segurança pública ineficaz para o povo preto, pronta para o extermínio de nosso povo. Promovendo, em suma, o encarceramento em massa e a morte física dos nossos. 

3. Instituições de educação (que pros pretos representa deseducação, seja o preto graduado, mestre, doutor, pós-doutor, etc.) O sistema de educação branco visa manter exatamente a supremacia branca, ora de forma aberta, ora de forma velada. E essa educação, em geral, nos priva de valores positivos acerca dos povos africanos, ou seja, de valores que enfatizem a sinceridade, confiança, virtude, justiça, orgulho, coletividade, autodeterminação e condição de povo. No mais, é uma educação que doutrina o povo preto a ser subserviente e acreditar, consciente ou inconscientemente, que esses valores são exclusivos de um mundo branco superior. E mesmo uma educação radical dentro dos parâmetros deles, nos condiciona a sobrepor os problemas deles aos nossos.

4. Pelas igrejas, o cristianismo representa grande parte da justificativa do holocausto preto, e inculca na mente dos oprimidos a imagem de um conquistador branco. Quando um povo perde sua imagem de Deus, ele perde sua coesão cultural e passa a reivindicar nada mais do que se é apregoado pelo dominadores. Além de ser uma religião dotada de uma falsa moralidade e de falsos valores, pois o povo branco-europeu nunca seguiu o que pregou. E assim como o islâmicos, são religiões excêntricas, que visam continuamente nossa conversão para a manutenção dos poderes dos conquistadores, um dia teremos que superar Cristo e Maomé.

5. Pela mídia/imprensa tradicional (na tv ou na internet.) Uma espécie de quarto poder, inclusa até os ossos no sistema de supremacia branca. Que gera nos pretos o auto-ódio, que deseduca, que aliena, que nos afasta de nosso valores ancestrais para que nos tornemos inferiores. “O pior crime que o homem branco cometeu foi nos ensinar a odiar a nós mesmos.”

Sendo assim, os dois primeiros itens (1 e 2) demonstram como fica mantida a nossa subjugação física, pois tais estruturas visam nos manter longe do domínio dos meios de produção, e nos suprimem continuamente de acesso às terras, que é a base da divisão social do trabalho e a base da luta e da sobrevivência.

Resguardada as devidas particularidades de cada espaço geográfico, essa regra de subjugação, em geral, se repete. E apesar de nossa suposta liberdade física e a nossa independência nominal ter sido proclamada, ainda compartilhamos, em massa, os grilhões da escravidão mental. Biko disse que, “a arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido.” Essa escravidão mental é perpetuada pelos três últimos itens. (3, 4 e 5)

Em suma, a mensagem é que, não existe saída para revolução ou de renascimento operando nossa luta por dentro dos parâmetros e das validações dessas instituições. Para isso, é preciso acreditar que a sociedade civil preta organizada seja capaz de criar uma luta coletiva coesa e através dessa união de forças conseguir fortalecer as nossas bases. Sendo nós que devemos eleger nossas lideranças, aquelas pessoas que aspiram e respiram os mesmos ares que o nosso, e assim cuidar também de nossas lideranças.

Não será qualquer artista ou intelectual influencer, apenas devido a sua visibilidade, mas sem nenhum trabalho de base ou ajuda sistemática com trabalho comunitário, que irá ter legitimidade perante nosso povo de luta ou nos representar. Nenhum negro colaborador ou lacaio disfarçado terá prestigio entre os nossos, pois estes tipos promovem confusão ideológica e de princípios, não detém objetivos para o coletivo e são, em sua grande maioria, traidores, prontos pra vender a nossa cabeça por qualquer migalha.

Mas Steve Biko pagou o preço pela luta. Devemos honrar os nossos ancestrais. Sempre! Até para condenar quem não nos representa, pois tais lacaios não se tratam de vítimas da escravidão mental, a maioria deles teve acesso ao legado de honra milenar dos africanos. Eles são traidores mesmo!

Já as massas, o povo em geral, passa por toda essa deseducação que culminará no fortalecimento dos grilhões da escravidão mental, muitas vezes apoiando seus algozes sem conseguir detectar os inimigos reais, pois assim, quando se “controla o pensamento de um homem, não precisa se preocupar com as ações dele. Você não tem que dizer a ele para não ficar aqui ou ir mais longe. Ele encontrará seu lugar apropriado e permanecerá nele. Você não precisa mandá-lo para a porta dos fundos. Ele irá sem ser informado. Na verdade, se não houver porta dos fundos, ele abrirá uma para seu benefício particular. Sua educação torna isso necessário.” (Carter G. Woodson)

Estamos seguindo pra uma luta de falsa representatividade e isso nada mais é do que não responder corretamente o questionamento acerca dos nossos problemas. Devemos ter um senso de reinvindicação que fuja das garras da supremacia branca.

Portanto, diante desse monstro em nossas vidas, a responsabilidade de reverter esse quadro deverá ser completamente nossa; e a expressão filosófica/ideológica que mais se aproxima desse ideal é o Pan-Africanismo.  E esse ideal estava contido em Biko, ele buscou tratar das principais frentes agindo como um estadista. Esse era o tamanho de sua grandeza, um grande visionário. Um gigante que procurou honrar seus ancestrais, que visou um legado para seus filhos e para as crianças pretas que ainda iriam nascer; e isso devemos fazer também.

Se nos educarmos e agirmos pela Consciência Preta, iremos também educar adequadamente nossos filhos, e ensiná-los sobre nossas raízes e culturas africanas. Devemos ensiná-los a se amar, a se valorizar e a acreditar em si mesmos.

Enfim, o chamado é pra luta autônoma, trabalhar pelo fortalecimento das bases pretas comunitárias, que nossa hora vai chegar, pois se o mundo branco se encontra forte hoje, podemos prever que ainda nesse século eles se envolverão em mais uma grande guerra, mas nós não cairemos nessa bala, e, neste momento, se estivermos fortes, o impulso pro nosso renascimento poderá ocorrer de igual para igual (sobre os destroços dos brancos), com coragem e autodeterminação.

Fuca, Insurreição CGPP.