quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

História da África, José Rivair Macedo – Breve Nota

História da África, José Rivair Macedo – Breve Nota

Com o objetivo de suprir cada vez mais a carência de um estudo mais apurado sobre a história e trajetória africana, driblando os estereótipos, preconceitos e perspectivas enviesadas, este livro desvela um conjunto panorâmico de material didático sobre o continente africano.

O conteúdo contido no livro perpassa uma história africana seguimentada desde a pré-história, as primeiras civilizações e impérios, islamização, cristianismo, escravidão, colonialismo, até a descolonização e o tempo presente.

No capítulo 1 o autor descreve as formas geológicas do continente, como e onde os minerais estão alocados, remonta ao período da pangeia e argumenta o porquê da África ter sido o local da primeira evolução humana, a hominização. Se por volta de 150 milhões passaram os dinossauros, há cerca de 70 milhões de anos surgiram os primeiros mamíferos. Já há 12 milhões de anos os primatas, Autralopithecus, homo habilis viveu por volta de 1,5 milhão de ano atrás. Depois veio o período Paleolítico (Idade da Pedra Lascada), o período Mesolítico (15 a 12 mil anos), e o Neolítico. Desertificação e Civilização Nok.

Com o argumento de que no Brasil se tem uma imagem única do continente africano, o autor visa discorrer através das diversidades entre regiões, e mesmo que em cada região habitem povos diferentes entre si, se aposta numa similaridade no conjunto de vivência.

No segundo capitulo é retratada a história do Norte da África, a civilização egípcia, os povos da Núbia e do Indico e mais em direção ao centro-sul, perpassa brevemente pelas cidades Suaíli. Já no terceiro capitulo será tratado o eixo transaariano, que agora se apresenta um ambiente desértico e de savana abarcando todo o desenvolvimento de grupos humanos a viverem num meio inóspito. Neste capítulo trata muito mais da consolidação islâmica na história da África, e se atem, também, na descrição de alguns dos grandes impérios, tais como Mali e Songai.

O Mundo Atlântico, capitulo 4, é relatado como se deu as mudanças devido à influência europeia desde o período do século XVI, envolve descrições sobre a região de Senegal e Golfo da Guiné, de Gana, do Congo e Angola, e da África do Sul. Onde se mostra sobre as formas de governo bem hierarquizadas, além de uma crescente tendência a militarização a partir do contato e presença europeia.

Os próximos capítulos têm por objetivo fazer uma avaliação histórica sobre algumas implicações do tráfico de escravizados, e da condição colonial.

No último capitulo, portanto, o autor traz informações sobre os movimentos de descolonização e independência de vários países no continente africano, é neste momento apenas que se confere, no livro, certa unidade enquanto continente, também a influência dos pensamentos e ações da diáspora africana. Ao distinguir entre independência conquistada e independência concedida, se passa também ao estilo político adotado nos Estados pós-coloniais, o que Kwame Nkrumah conceitua como Neocolonialismo, pois se mantêm arraigadas as influências das antigas metrópoles nesses Estados.

“Assim, embora nominalmente independentes, estes países continuam a viver na relação clássica da colônia com seu “patrão” metropolitano, isto é, a produzir matérias-primas e a servir-lhes de mercado exclusivo. A única diferença é que agora essa relação está encoberta por uma aparência de ajuda e solicitude, uma das formas mais subtis do neocolonialismo. Como a França considera que só se poderá desenvolver perpetuando a sua relação atual com os países subdesenvolvidos que se mantêm na sua orbita, isto significa que o fosso entre aquela e estes se irá alargando. Para que este possa vir a ser diminuído, ou mesmo anulado, será necessário renunciar completamente à atual relação de patrão cliente” (p.166) 

Enfim, o enfoque do autor foi de colocar o continente africano como detentor de sua própria história e produtor de suas próprias formas materiais de existência, principalmente antes das invasões. Lógico, como mencionado no inicio, tudo de forma panorâmica e deixa muitas outras questões e abordagens de fora, mas que serve como resumo base para o ensino didático nas escolas. Além de conter sugestões de leituras e videos para maior aprofundamento na questão.

Fuca - 2019


sábado, 5 de janeiro de 2019

Planeta Favela, Mike Davis – Breve nota


Planeta Favela, Mike Davis – Breve nota

  Planeta Favela é um livro que evidencia a degradação humana nos espaços favelizados que operam como lugares de reprodução da pobreza. A denúncia é contundente e visa abarcar os fatos mais concretos do que se prender em conceitos, quebra de paradigmas ou até mesmo desenvolver hipóteses, conceitos ou teorias que possam reverter o quadro desastroso da favelização mundial. A ênfase, na verdade, se atem nos países do Terceiro Mundo que sofrem toda carga que se precisa ter para alimentar a ideologia liberal dos países capitalistas desenvolvidos.

  O conteúdo é tão critico que se torna difícil enxergar luz no fim do túnel para quem vive em favelas, por outro lado, é disso que provem o êxito e a riqueza para instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, que devido a divida externa impõem os Planos de Ajuste Econômico (PAE) aos países que não conseguem pagar os empréstimos, pois os juros são altos e assim essas instituições passam a controlar politicamente esses territórios.

  Dentro dos desastres provocados pela globalização neoliberal para os pobres do Terceiro Mundo, o autor expõe vários tópicos degradantes que vão desde guerras, desemprego, precarização de trabalho, segregação, racismo, superurbanizações seguidas de expulsões, enchentes, deslizamentos de casas, incêndios criminosos em favelas, lixo, poluição atmosférica, contaminações, caos no transito de transportes, crise sanitária, escassez de recursos naturais, etc.

  Para alocar devidamente no tempo, tudo isso é datado basicamente desde pelo menos o final do século XX. Interessante que entre as décadas de 1960 e 1980, os países do terceiro mundo chegaram a crescer e nesse período ainda não se tinha a orientação das políticas neoliberais do FMI. Vale frisar que em países de passado colonial a estrutura desigual já existia, seja em explorações de bens naturais e de mão de obra barata, na segregação espacial ou na pobreza, mas a globalização e as políticas neoliberais trataram de acelerar e intensificar a escala da pobreza urbana nos países subdesenvolvidos.

  No capitulo um, O Climatério Urbano, Mike Davis traz diversas analises baseadas em estudos e dados que tratam acerca da urbanização dos países e cidades do Terceiro Mundo. Chega-se na primeira constatação: a explosão da urbanização. Outra situação é que a alta da urbanização em diversas cidades da África, America do Sul e Ásia, ocorreu num cenário de desindustrialização, então esse crescimento populacional não significava desenvolvimento, mas sim a manutenção da pobreza. O autor já nos aponta neste primeiro capitulo que o sistema econômico neoliberal do FMI e do Banco Mundial são os causadores direto desse cenário.

  Se essa urbanização desgovernada faz parte da manutenção da pobreza, a favelização e todo tipo de ocupação e moradia informal se torna tendência nesses territórios. Outro fator é a questão do advento do crescimento de cidades nos campos, em alguns casos já não há o êxodo rural, mas a urbanidade atinge os modos de vida do campo, fato praticamente inevitável devido o período da globalização.

  A Generalização das Favelas, segundo capitulo, vai abordar os espaços periféricos já que em algumas cidades a urbanização significa favelização, pois abrange mais da metade do território, e de urbanização irregular. Retrata a questão das ocupações (no livro apresenta a palavra invasão), em quais condições elas ocorrem, e como são organizadas, destruídas e montadas novamente. Evidencia brevemente que a saída em ocupar terrenos marginalizados pelos despossuídos, nem sempre é a medida mais barata, levando em consideração a peleja das lutas que serão necessárias travarem pela sobrevivência, mas que ao longo do tempo esse “valor” pode ser recuperado a partir de uma estruturação crescente nesses espaços. Dentro desse subtópico existe a questão da “privatização das invasões”, onde antes de ocupar é necessário pagar para políticos poderosos (as vezes através de votos), loteadores (pessoas de poder local), latifundista ou grande fazendeiro, comuna rural, etc. Culminando no subtópico seguinte que é a invisibilidade do locatário na favela que alcançou uma modesta base inferior na estratificação dessa classe pobre, e devido a falta de organização fica a mercê dos alugueis. O autor aponta que esse é um meio de exploração de pobre sobre um mais pobre.

  O terceiro capitulo desvela A Traição do Estado, que inicia com a citação de Alan Gilbert e Peter Ward, “Embora o capitalismo irrestrito tenha uma face em geral inaceitável, o Estado corrupto que age em favor dos ricos é ainda pior. Em tais circunstâncias, pouco há a ganhar com a simples tentativa de melhorar o sistema.” Então se mostra nessa parte do livro as formas que o Estado atuou de maneira excludente, negligente e foi omisso em buscar reverter as condições de favelização e proliferação da pobreza, que, por conseguinte aparece As Ilusões de Auto Ajuda, onde agora o próprio Banco Mundial investe em desenvolvimento urbano e assim coopta algumas ONG’s que focam em ações de curto prazo com pequenas proporções distanciando a sociedade civil organizada e os pobres de uma consciência de classes e de uma busca plena por seus direitos.

  Aqui o autor critica a aliança do arquiteto John Turner com o presidente do Banco Mundial na qual o saldo foi de que os benefícios dos projetos oriundos desse “casamento” acabaram nas mãos da classe média, os mais pobres ficaram fora do projeto novamente. E vai criticar também a tomada de medidas rápidas e simplistas tais como a de Hernando de Soto, o guru global do populismo neoliberal, ao apenas adotar como estratégia a concessão de titulo de propriedade em invasões.  

“Os empréstimos do Banco Mundial para o desenvolvimento urbano aumentaram de meros 10 milhões de dólares em 1972 para mais de 2 bilhões de dólares em 1988. E, entre 1972 e 1990, o Banco ajudou a financiar um total de 116 programas de oferta de lotes urbanizados e/ou de urbanização de favelas em 55 países. É claro que em termos de necessidade isso não passou de uma gota num balde d’água, mas deu ao Banco enorme influência nas políticas urbanas nacionais, além de uma relação de patrocínio direto com as ONGs e comunidades faveladas locais; também permitiu ao Banco impor as suas próprias teorias como ortodoxia mundial da política urbana”.

  Nos últimos capítulos é versado mais profundamente sobre as formas como são postas os Planos de Ajuste Econômico (PAE), a precarização do trabalho ao desvendar o mito da informalidade como saída do desemprego, os riscos físicos vividos de fato em muitas das favelas em todo o mundo e o trabalho infantil. Ainda, o crescimento do pentecostalismo em alguns países extremamente vulneráveis onde se tem uma via de humanidade excedente.

“Em vez das cidades de ferro e vidro, sonhadas pelos arquitetos, o mundo está, na verdade, sendo dominado pelas favelas.”


Fuca cgpp 2019

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

PESQUISA SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

Miguel Angelo Sena da Silva Junior 
Coordenador da Posse de Hip Hop “Entre o Céu e o Inferno” 
MC no grupo de rap Insurreição CGPP 
Graduando em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

1. INTRODUÇÃO 
1.1 - O SER HUMANO AFRICANO 

O psicólogo social experimental Wade W. Nobles (ou Nana Kwaku Berko em banco e Ifagbemi Sangodare, em ioruba de ifa) afirma que o povo africano em toda a diáspora precisa voltar atrás e reconstituir o que esqueceu. De modo mais preciso, o que foi esquecido seria o próprio significado do que vem a ser africano quando antes do contato com o opressor branco. Para Nobles, o opressor conseguiu alterar "a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse senso alterado da consciência é o problema fundamental dos africanos" continentais e diaspóricos, isso porém, ocorre sem que fosse possível destruir o africano dentro de nós. Nobles fala de um lugar que muito contribui para a compreensão dos fenômenos ligados ao que alguns chamam de "genocídio" e outros "extermínio" de jovens negros no país. Nobles fala de uma psicologia negra emergente de base afrocentrada que surge do questionamento das limitações da psicologia ocidental (branca) e da necessidade de abordar "às consequências psicológicas negativas de ser africano numa realidade anti-africana". Essa nova abordagem epistemológica reivindica a necessidade de uma articulação séria entre a "natureza fundamental de ser africano (negro), seus significados psicológicos e funções associativos ou a teoria (s) necessária (s) com respeito aos processos psicológicos africanos "normais". Dado que um dos maiores desafios para mobilizar a opinião pública contra o quadro de homicídios de jovens negros é a existência de uma desumanização da vítima, a psicologia negra que Nobles propõe contribui muito para a nossa questão. 

    Sakhu Sheti é um termo usado por Nobles para esclarecer o que viria a ser uma psicologia negra, o termo extraído do Medu Netcher [A escrita de Deus], a palavra sakhu "significa a compreensão, o iluminador, o olho e a alma do ser, aquilo que inspira", já sheti "quer dizer entrar profundamente num assunto; estudar a fundo; pesquisar nos livros mágicos; penetrar profundamente". A psicologia negra busca obter "parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia" que traga a "compreensão plena da pessoa africana mediante a pesquisa, o estudo e o domínio do processo de 'iluminar' o espírito ou a essência humanos". Só com o exame e a explicação do significado é possível o entendimento humano para o africano, incluindo aí o funcionamento da natureza (essência) do ser humano. Essência aqui difere da noção de "essencialismo" proveniente do pensamento ocidental. Em África, "essência" ou natureza humana é algo ainda a ser explorada e traduzida para termos africanos, ou seja, é necessário romper com a restrição que é posta ao conhecimento africano quando este e suas aspirações está preso ao campo de visão dos instrumentos e das interpretações europeus. 

    A busca do sakhu, ou iluminação do espírito, afro-brasileiro, seria essa imersão na ideia africana do que vem a ser um ser humano ou uma pessoa, assim o Sakhu Sheti é a exigência de interrogar a linguagem e a lógica dos povos africanos tradicionais e assim apreender de forma profunda e nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos. Isso implica dizer que, apesar de trazidos a força, preso a grilhões, ou seja, destituídos de liberdade, isso não significa que os africanos "chegaram destituídos de pensamento ou crenças sobre o que eles eram", pelo contrário, "nossos ancestrais vieram com uma lógica e uma linguagem de reflexão sobre o que significava ser humano e sobre quem eles eram, a quem pertenciam e por que existiam". Logo, a interpretação do maafa da escravidão só pode ser realizada a partir do sheti. Assim Nobles justifica o conceito de maafa; 

"Marimba Ani [...] introduz o conceito de maafa e o define como grande desastre e infortúnio de morte e destruição além das convenções e da compreensão humanas. Para mim, a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente." 

   Dado esse pressuposto faremos uma incursão descritiva dos povos banto-congo, certamente o povo que mantem o maior contingente de descendentes na cidade de São Paulo, cidade escolhida pelos pesquisadores para o estudo da mortalidade de jovens negros por homicídios, especificamente por ação policial. 

    No que diz respeito à língua e à lógica nossos ancestrais angolanos acreditavam que uma pessoa era um construto de energia, espírito e poder. Nessa filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica combinada a uma espécie de vitalismo "a noção de força toma o lugar do ser e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou diminuição". Essa ideia de vitalismo certamente se refere ao fato de que; 

"[...] na visão banto-congo, [ser humano] é ser uma 'pessoa' que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total, perceptível e ponderável. A pessoa é ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia e dos relacionamentos divinos. É a essência espiritual da pessoa que a torna humana. Como Ngolo (energia, espírito ou poder), a pessoa é um fenômeno de 'veneração perpétua'." 

    Dentro deste sistema, o ser humano é um espírito em contato constante com os poderes "espirituais" cujo entendimento pressupõe esses poderes como força e não como entidades estáticas. Os poderes "espirituais" habitam um reino invisível (que se denomina Orum para a tradição nagô-ioruba); "força espiritual" constituindo um híbrido cuja estrutura diferenciadora culmina em uma energia (força) em constante expansão. Esse todo é o Ser supremo, a sustentação da estrutura geradora desta força exige dos seres humanos;

"[...] como espíritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos (intra), a outros espíritos humanos (inter) e por fim ao Divino (supra)." 

    Na dinâmica das diferentes manifestações ou expressões do Divino temos os nhuyu (parentes mortos dos vivos), os simbi (ancestrais) e o NzambiMpongo (Ser Supremo) que podem ser invocadas para ajudar os vivos. Quando da morte, ocorre uma "diminuição" do ser, devendo assim, os vivos fazerem oferendas aos mortos transmitindo a eles um pouco de vida. Caso os vivos sejam negligentes os nhuyu lhes chamam atenção enviando-lhes doenças e dificuldades. Aqueles que morrem sem deixar parentes, acredita-se "está condenado à degradação final, espécie de segunda morte, desta vez definitiva." 

    Com base nessa noção africana de espiritualidade ou "força espiritual" a "pessoa" responde a uma crença complexa (material e imaterial) que lhe dá um valor intrínseco" e que a 'pessoa' é, na verdade, um 'processo' caracterizado pelas leis divinamente governadas da essência, do aperfeiçoamento e da compaixão". 

    Vemos, portanto, que da chegada em 1532 dos primeiros africanos bantos presos, escravizados e transportados pelo negreiro Jorge Lopes Bixorda para trabalharem no primeiro centro produtor de açúcar, Vila São Vicente, no atual Estado de São Paulo, até hoje muita coisa mudou quanto a maneira de conceber o ser humano africano, este perdeu sua capacidade de auto definição e passou por um processo que Nobles chama por; "Descarrilhamento e Desafricanização". Antes de ir para este tópico irei fazer duas citações diretas relacionadas com essa questão de autonomeação fundamentais para compreensão do que foi e do que é, assim como de o que pode ser este ser humano africano. A primeira de Ney Lopes e a segunda de Toni Morrison; 

"Um indivíduo se define por seu nome; ele é seu nome. E este nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome interior é indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser isolado. Toda a pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência." 
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra, pág. 145 

"Nasci e cresci em Vesper County, Virgínia, 1873. Num lugarzinho chamado Vienna. Rhoda e Frank Williams me pegaram na mesma hora e me criaram junto com os seis filhos deles. O último filho dela tinha três meses quando Mrs. Rhoda me pegou e ele e eu a gente era mais chegado que muitos irmãos que eu já vi. Victory era o nome dele. Victory Williams. Mrs. Rhoda me chamou de Joseph em honra do meu pai, mas nem ela nem Mr. Frank também pensaram em me dar um sobrenome. Ela nunca fingiu que eu era filho carnal dela. Quando ela dividia tarefas ou favores, dizia: 'Você é como se fosse meu mesmo'. Aquele 'é como', eu acho, foi que me fez perguntar para ela - acho que eu não tinha nem três anos ainda - onde estavam os meus pais de verdade. Ela me olhou lá do alto, por cima do ombro, e me deu o sorriso mais doce, só que triste de algum jeito e me disse: Ah, querido, eles desapareceram, sem nenhum traço. Do jeito que ouvi, achei que ela queria dizer que 'sem nenhum traço' era eu. 
'No primeiro dia que eu fui para a escola, tinha que ter dois nomes. Falei para a professora: Joseph Trace [Trace = Traço] [...]." 
Morrison, Toni. Jazz, pág. 122-3 

2. DESCARILHAMENTO E DESAFRICAZAÇÃO 

    Seguindo a ideia de maafa proposta pela filosofa e antropóloga Marimba Ani, devemos ao menos dar algumas indicações que apresentem a dinâmica deste processo na história localizando as raízes do mesmo ainda na Antiguidade como propõe o etnólogo Carlos Moore. 

    A escravização do africano foi a base de sustentação do projeto sobre o qual se levanta o que é comum denominar de "Novo Mundo". Este ponto se preocupa em assinalar alguns aspectos do custo do projeto de colonização para o desenvolvimento do ser humano africano, não apenas do ponto de vista das condições sob as quais aqui chegavam os africanos; que depois de meses de fome e tortura se encontravam despersonalizados e arrasados física e psicologicamente, mas também o que significou todos esses anos de repressão e opressão racial que ainda vigoram. 

   Nobles está convicto de que houve um descarilhamento que mudou o caminho do desenvolvimento africano quanto a sua socialização, vida familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo, pensamento filosófico profundo, invenções científicas e técnicas. Apesar de ainda não sabermos ao certo o real impacto desde descarilhamento iremos pontuar aqui alguns aspectos que certamente nos permitirá compreender em parte a aparente indiferença social quanto ao extermínio de jovens negros nas periferias da cidade de São Paulo. 

    A metáfora do descarilhamento é um recurso para explicar que houve uma alteração brusca de caminho no desenvolvimento africano, mas que, porém, esse descarilhamento cultural é de difícil identificação dado que "a vida e a experiência continuam". Esse aspecto é fundamental de ser reconhecido pois é em decorrência desde fato que o próprio africano não percebe que está percorrendo uma trajetória que o leva a desumanização e que poderia estar centrado, realizando uma experiência mais significativa em sua vida; humanizando-se. 

    Para a condição de coisificação que o maafa demandava o africano só dispunha do "mapa mental", a concepção de mundo descrita no tópico anterior, este "mapa mental" ao mesmo tempo que "serviu de filtro cultural da resistência à escravidão e ao colonialismo" foi o que, aparentemente, tornava o africano inadaptado ao regime de escravidão cabendo ao colonizador um processo de desafricanização de seu ser. A conclusão é que nem a escravização e nem a exploração contemporânea do africano seria possível sem a destruição e/ou redefinição do que Nobles chamou de "mapa mental" do africano. Logo, é a invasão do espaço mental do africano pelo colonizador e sua visão de mundo que, removendo os significados que constituíam o "mapa mental" do africano, possibilitou e segue viabilizando sua exploração no tempo, e aqui chegamos ao preceito fundamental da afrocentricidade, segundo Nobles. É, portanto, "esse processo de descentramento ou desafricanização [que] constitui a problemática psicológica-chave na compreensão da experiência dos africanos em toda a diáspora". 

3. EMBRANQUECIMENTO 

"[...] ela disse: 'Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?' 
'Do jeito que eu quiser?' 
'É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja alguma coisa mais do que ele é?' 
'Para quê? Não dá para mudar o mundo.' 
'Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.' 
'Estragou como?' 
'Esqueci.' 
'Esqueceu?' 
'Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para cima e para baixo querendo ser outra pessoa.' 
'Quem? Quem você queria ser?' 
'Não tanto quem, mas o quê. Branca. Leve. Moça de novo.'" 
Morrison, Toni.Jazz. 2009, pág 192. 

    O que mais caracteriza a experiência do africano diaspórico no Brasil é o processo de embranquecimento, que Nobles precisa melhor como eliminação do africano, que passa a ser uma política de Estado em 1850. Apesar da referência dada pelo autor quanto o momento em que a política de embranquecimento passa a vigorar sabemos que na verdade a construção do africano como inferior, ou seja, o argumento central de que era necessário branquear o país, já se expressa em políticas públicas ainda no período colonial brasileiro. É o caso, por exemplo, das políticas que se referem a ocupação de cargos públicos, civis, religiosos e militares, que trazia a ideia de pureza do sangue advinda da Idade Média como discurso oficial da igreja católica nos mostrando que o Brasil, também como os Estados Unidos, forjou um modelo de discriminação racial baseado em pigmentação da pele e também referente à origem. Roger Bastide, afirma que no século XVII em São Paulo "negros e brancos eram separados na capela diante de Deus, e nos cemitérios, diante da morte" e ainda que a Igreja visava "[penetrar] nas almas dos descendentes de africanos a noção de sua separação e da sua subordinação aos brancos" confirmando no tempo o processo de desafricanização do negro pela via da redefinição do "mapa mental" do africano. O fim do domínio português não representou mudança no teor das políticas públicas do Estado no que diz respeito ao seu conteúdo discriminatório dado que " (...) Em 5 de Dezembro de 1824, a Constituição brasileira em lei complementar proibia o negro e o leproso [assim denominado na época pessoas que conviviam com a hanseníase] de frequentarem escolas", lembrando que a esse período já tínhamos muitos negros manumitidos, estando ai evidencias de uma política anti-africano já antes da formulação de uma política definitiva de imigração, inclusive, consagrada pela constituição do país. Porém, o que ficou mesmo marcado como a consolidação de um projeto de embranquecimento, eliminação, genocídio do africano, foi a política de substituição racial da força de trabalho com a imigração europeia. Segundo o historiador Petrônio Domingues, a ideia de substituir a força de trabalho nacional se originou ainda no governo do Império e já nesse momento se visava a inserção de forma privilegiada de colonos provenientes da Europa. Cabe, porém, um pequeno balanço dos antecedentes históricos do projeto para melhor argumentar quanto ao caráter racista da política já que uma tese importante deste item é a de que 

"[A despeito do paradigma do branqueamento só ter adquirido vulto no final do século XIX, a transformação de negro em branco, segundo Andreas Hofbauer, é um] ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a história do Brasil." 
Hofbauer em Domingues, Uma História não contada. 2003, pág.38 

    Ainda na obra de Domingues, consta o caso do padre Antônio Vieira (1608-1697), o mesmo dizia em Epifania de 1662; "Um etíope que se lava nas águas do Zaire fica limpo, mas não fica branco; porém na do batismo, sim, uma e outra coisa", com isso podemos dizer que essa afirmação, entre outras, o consagra como percursor do embranquecimento. Importante também de sua afirmação é a ideia de que o batismo serviria como um dispositivo central do supremacismo branco, sendo a conversão ao catolicismo talvez o primeiro conjunto axiológico bem definido ao buscar a redefinição do "mapa mental" do africano. Esse aspecto se refere à cultura, à negação dos africanos como portadores de cultura (típico dos processos de desumanização) e a imposição da cultura "superior". Francisco Soares Franco (1772-1844) articula a questão do desenvolvimento econômico e social com a necessidade de branquear o país, sua proposta no terreno racial consistia em;   

"[...] Mandar que todos os mestiços não possam casar senão com indivíduos da casta branca, ou índia, e se proibir sem exceção alguma todo o casamento entre mestiços e a casta africana; no espaço de duas gerações consecutivas toda a geração mestiça estará, para me explicar assim, baldeada na raça branca. E deste modo teremos outra grande origem de aumento da população de brancos, e quase extinção dos pretos e mestiços desta parte do mundo; pelo menos serão tão poucos que não entrarão em conta alguma nas considerações do legislador" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39 

    Essa perspectiva raciológica, identificando o africano como uma substância antitética à condição humana está no bojo então de um processo nacional da qual seu produto viria a ser o mestiço. A pena de Franco apresenta no começo do século XIX, o que o pincel de Modesto Brocos y Gómes com a Redenção de Cam nos apresentaria no final do mesmo século. Seguimos com Franco; 

"Os mestiços só conservam metade, ou menos, do cunho africano; sua cor é menos preta, os cabelos menos crespos e lanudos, os beiços e nariz menos grossos e chatos, etc. Se eles se unem depois à casta branca, os segundos mestiços têm já menos da cor baça, etc. Se ainda a terceira geração se faz com branca, o cunho africano perde-se totalmente, e a cor é a mesma que a dos brancos; às vezes ainda mais clara; só nos cabelos é que se divisa uma leve disposição para se encresparem" 
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39

    Até a metade do século XIX, essa tese é consensual, seja entre aqueles a favor ou contra a escravização dos africanos nos debates relacionados à questão da nacionalidade. Houve mesmo, ainda segundo Petrônio Domingues, quem propusesse que ao mesmo tempo em que o Brasil realizasse um movimento político no sentido de importar uma mão de obra branca da Europa exportasse de volta à África os africanos libertos. A proposta de deportação em massa do contingente africano, apesar de muito pouco explorado pela historiografia nacional, realmente teve relevância em correntes de opinião da elite branca nacional e esse fato explica porque o governo da Bahia, entre 1820 e 1868, expediu mais de 2.000 passaportes para de os libertos retornassem à África.

    Nessa curta descrição que operamos buscamos apresentar alguns tópicos fundamentais, porém normalmente ignorados nas pesquisas sobre a violência policial contra o africano diáspórico no Brasil. Assim como as interpretações sobre o racismo sobrepôs um evento histórico, holocausto judeu, a outro, escravização africana, estamos mais acostumados a tratar o racismo como um fenômeno ideológico do que histórico. Carlos Moore nos mostrou como, em realidade, o fenômeno racismo não precisou da criação da categoria raça (do italiano razza, mas que tem origem do latim ratio) para de expressar, que este fenômeno não é uma produção exclusiva da Europa. Não iremos nos aprofundar muito em sua tese dado caráter desta introdução, porém cabe trazer uma contribuição fundamental deste ao nosso projeto, a noção de que a invisibilidade e a naturalização do quadro de violência contra o africano diásporico no Brasil é fruto do racismo; 

"A insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo, ou coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros fenotipicamente parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus cachorros, mas não desenvolver qualquer sentimento de comoção perante o terrível quadro de opressão racial. Em toda a sua dimensão destrutiva, está opressão se constitui em variados tipos de discriminação contra os negros. Não há sensibilidade diante da falta de acesso, de modo majoritário, da população negra aos direitos sociais mais elementares como educação, habitação e saúde [...]" 

    O Racismo é um sistema de poder. O que mostramos até aqui foi exatamente isso, um sistema de poder que produz a morte ontológica e física no tempo. Um poder político, econômico, social e cultural (sendo a opressão cultural uma realidade mental, espiritual, física e material) e isso ocorre antes da ação da polícia, pois quando a mesma ocorre, não existe a necessidade de justificações maiores. 

BIBLIOGRAFIA 

Domigues, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Editora Senac. São Paulo, 2004.  

Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011 
Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.). Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4). 

Morrison, Toni. Jazz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

sábado, 1 de dezembro de 2018

Insubmissas Lágrimas de Mulheres – Conceição Evaristo - breve nota


Breve nota: Insubmissas Lágrimas de Mulheres – Conceição Evaristo

Contendo 13 contos que são retratados a partir de depoimentos de diversas mulheres, digo a partir, pois foi o ponto de partida para uma criação literária belíssima. Essa conexão de realidade e invenção, e adicionado a condição de mulher negra da narradora, que a principio é a própria Conceição Evaristo, se denomina o conceito de escrevivência.

A edição que li foi a comemorativa aos 70 anos da autora, pela editora Malê. Os contos são regados de representatividade e por vezes de sororidade, evidenciando a intenção da autora em focar nas realidades das mulheres, que ao debater gênero, cada qual na sua maneira e experiência, assume por fim uma postura Insubmissa. A maioria vem com relatos bem pesados que, por vezes, podem causar incomodo a quem lê, ora vem o sentimento de revolta ora uma lágrima se derrama de forma explicita.

Todos os contos partem do encontro da autora com as mulheres protagonistas das histórias, e em todo o livro é presenciada a opressão masculina, são raras as exceções que isso não ocorre, a exemplo de Regina Anastácia que se realizou num relacionamento inter-racional, mas muitas tiveram que resistir as mais variadas brutalidades que nenhum ser humano gostaria de passar, ainda mais somente pela condição de ser quem você é.

Conceição Evaristo (Maria conceição Evaristo de Brito) nasceu em Belo Horizonte, em 29 de novembro de 1946. Em 1990 publicou pela primeira vez nos Cadernos Negros e, desde então, conciliando maternidade, vida docente, estudos teóricos e produção literária, titulou-se Mestre em Literatura Brasileira (PUC-Rio) e Doutora em Literatura Comparada (Universidade Federal Fluminense), além de lançar quatro obras individuais, uma delas, Olhos d’água.




Fuca, Insurreição CGPP

sábado, 24 de novembro de 2018

CLIPE: O Cenário Ainda é o Mesmo - Insurreição CGPP


Música: O Cenário Ainda é o Mesmo
Artista: Insurreição CGPP
Gravação e Vídeo: Marcos Favela

Letra:

Começa assim em meio ao sonho de criança.
As vezes dor, rejeição e agonia.
História pobre diferente da bonança, negada de esperança.
É dor vivida, relatos dos dia a dia

De um cara humilde longe da família
De uma mulher presa por tráfico
De tudo hoje que permeia nossa vida, um jovem cheio de ira
Ou levando um fim trágico

Ou dos barracos descendo todo morro
Ou suas coisas boiando num riacho
Os filhos na rua implorando por socorro
Levando uns esporro tomando esculacho

Meu semelhante afundado no cachimbo
Meu conterrâneo que tá desempregado
A carteira de trabalho sem carimbo, a mãe vai sucumbindo
pivete viciado.

A depressão que domina varias mentes
A válvula é bote, coca e cerveja
alimento de falsa semente, nos fazem de demente
agrotóxico tá na mesa.

Sem o direito de saber ler e escrever
sem questionar o estereótipo da tv
Mais um adulto analfabeto funcional
Sem entender o fmi o banco mundial

Pausa:
Quais medidas pra reduzir desigualdades?
Que saída contra desumanidade?
Opressor tem o poder e sem renuncia
Qual o valor real dessas denúncias?

Realidade que não se varre pra debaixo do tapete
Mais um se foi sem homenagem dos cadete
Varias disputas e nossos corpos entre tiros
Como aceitar esses velórios coletivos?

Parte2:
Corra!!! Que vem vindo o rapa ali atrás
O medo constante, perder mercadoria
Refugiados trampando no Brás
Batalham duro por uma melhoria

Porra!! me diz se um dia existiu a paz?
Se o progresso é aliado a guerra
Me responda isso se for capaz
Sem teto, sem chão, sem grana, sem terra

Vão dizer, que sigo mais do mesmo
Cegamente batendo na mesma tecla
Aqui pm ainda atira a esmo, já sabem o segredo.
Capuz motocicleta

Ou manos se matando no sistema
Ou se doença sai morte natural
Privatizar agora é o esquema, de massa um problema.
Lucrar com grade ou funeral

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Participação no encerramento da 4º Semana de Hip Hop em Jundiapéba - 17/11/2018

Participação no encerramento da 4º Semana de Hip Hop em Jundiapéba - 17/11/2018

[Participação voluntária em fortalecimento ao mano Celso Poeta Xavier-ACENA]
 
Insurreição CGPP - Fuca

Músicas: 
1- Intro (álbum vol.1)
2- Pesadelo do Sistema - participação do Marcos Favela
3- Desde Criança  
4- Estou de Luto.






sábado, 3 de novembro de 2018

Parte de Minha Alma, Winnie Mandela - Breve nota

Parte de Minha Alma, Winnie Mandela - Breve nota

Nonzamo Winifred Madikizela, ou Winnie Mandela, nascida em setembro de 1936 na África do Sul. Formou-se em Serviço Social sendo a primeira assistente social preta de seu país. O livro contem relatos duros de sua vida, história que perpassa banimentos, isolamentos, prisões, repressão policial e perseguição política sob o regime do apartheid (1948-1994). Para os brancos (Bôeres), Winnie era a encarnação do perigo negro, armada de um pensamento sólido, de uma resistência densa no campo dos ideais, de uma militância ativa que basicamente consistia em conquistar e exigir os direitos em prol do povo preto na África do Sul. Pensamento que se expandiu sobre o território sul africano, e atravessando fronteiras, se tornou mais uma grande referência de luta para todo o mundo africano, seja no continente ou na diáspora. Winnie fez sua passagem neste ano de 2018, no dia 02 de abril com 81 anos de idade.

“Parte de Minha Alma” foi publicado enquanto o Apartheid (segregação) ainda estava vigente, no ano de 1984. O livro é separado por nove capítulos e entre a narrativa de cada capítulo têm-se diversos anexos posicionados de acordo com cada assunto, pessoa, momento ou cronologia. São cartas, textos, noticias, homenagens, etc. Ela foi companheira de Nelson Mandela, se casaram no ano 1958, ele já era envolvido politicamente e tido como liderança pela libertação do povo preto. Winnie, por sua vez, também já tinha seu ativismo iniciado e um pensamento político em construção por ela mesma, tanto que ela consolidou um posicionamento intransigente na causa negra, em linha gerais, ela não admitia concessões e a integração como saída na tal forma que a sociedade estava posta estruturalmente. Então, além de ser um relato pessoal e, muitas vezes, íntimo, ela revelou sua ideologia e como consistia seu posicionamento político ante esse regime cruel perpetrado pelos brancos.

Se tratando dos capítulos, da convivência em Brandfort sob banimento ela foi até a juventude no campo. Em Brandfort falou dos causos da segregação sentida no dia a dia, quando voltou no tempo para falar de sua juventude, retratou já a sua identificação do preconceito racial, conjuntura que indicava uma suposta inferioridade dos negros em relação aos brancos. Já com os ensinamentos de seu pai, que era professor, embora não tão valorizado quanto um professor branco, soube de histórias sobre a tradição africana, ele utilizava de uma dupla versão da história, primeiro discorria sobre a história oficial para depois contar a real! Ainda, ela recordou de um professor de história que por várias vezes repetia que uma revolução exigia sangue e ferro, sendo então uma influência para tratar da guerra racial no seu país. Nesse capitulo ela fala também da origem estrangeira do nome Winifred, e que isso servia para lembrá-la a todo instante da opressão!

Adiante, no livro, vem a questão da vida na clandestinidade, e o momento ao qual se desenrola o amor entre Winnie e Nelson Mandela, ela detalha desde quando se conheceram até o casamento e como a separação veio rápida, devido a prisão de Nelson Mandela. ”A VIDA COM ELE FOI SEMPRE UMA VIDA SEM ELE”.

“Não houve literalmente vida, que eu pudesse chamar de vida de família, nada que pelo menos se pudesse chamar de romântico, como uma jovem noiva talvez desejasse uma vida em que com o seu marido você pudesse se sentar e tecer sonhos de como a vida em comum poderia ser.”

A partir de então, vieram mais e mais relatos de perseguições políticas, prisões injustificadas, e mobilização na clandestinidade no intuito de burlar o banimento. Winnie Mandela, por muitas vezes, é tida como a pessoa que fez Nelson Mandela, pois ela não cessou de lutar e se tornando uma voz importante anti-apartheid, teve então sua reputação colocada em cheque. Surgiram campanhas que visavam rebaixar sua imagem. “numa organização clandestina tem sempre um traidor querendo prejudicar a reputação”. Tática que os opressores sempre usaram para descreditar nossos revolucionários.

Em outro capitulo, é falado do levante dos estudantes em Soweto e do crescimento do Movimento de Consciência Negra na década de 1970, assim se teve um verdadeiro massacre. “Os acontecimentos de junho de 1976 que se tornaram conhecidos como o 'levante de Soweto' foram uma inflamação espontânea do país. Ninguém organizou nada. Foi a raiva direta e imediata que ali explodiu. Eu estava presente quando os adolescentes em 1976 arrancaram as pedras da rua. Estava no meio deles e vi o que aconteceu. Tinham apanhado pedras e tampas de latas de lixo, que usavam como escudos, e assim marchavam contra as metralhadoras. Não é verdade que não soubessem que os brancos estavam fortemente armados. Eles marchavam contra o fogo cerrado das metralhadoras. Soweto ficou literalmente mergulhado na fumaça das metralhadoras. Os jovens caíam morrendo na rua e para cada um que morria marchavam outros adiante.”(p.148) Foram estimadas mais de mil mortes entre junho e dezembro de 1976, mais um momento revoltante da história.

Na Prisão: “Existe um grau de humilhação, que provoca nos humilhados a pior violência”. E ainda nas palavras de Winnie... “Fui presa em outubro de 1969. Prisão significa no meio da noite batidas na porta; prisão significa faróis ofuscando todas as janelas até que a porta seja arrombada. Prisão significa o direito da Policia de Segurança de ler todas as cartas, folhear todos os livros, enrolar tapetes, rasgar lençóis em que dormem crianças, arrancar roupas dos armários e das malas; revirar os bolsos e finalmente na madrugada ser arrancada de crianças pequenas que se agarram chorando à saia da mãe e suplicam aos homens brancos que deixem mamãe em paz."

Agora, acredito eu, é o próximo capítulo que consegue reunir os pontos mais politizados de Winnie Mandela no livro, "A Situação Politica". É nesse momento que a visão é passada sobre seu posicionamento politico de forma mais concreta e continuada, e é por este tipo de pensamento que os meios ditos oficiais da opinião pública colocam o melhor que tem de nosso povo como lideres ou pensadores contraditórios. Isso na verdade que dizer, em outras palavras, que: são essas pessoas que devemos estudar, escutar, compreender e nos inspirar.

Para quem acredita que as condições históricas são peças-chave para entender como se deu ao longo de períodos e em diversos tipos de espaços a dominação branca, assim como traçar os principais aspectos do comportamento branco, deve-se passar e revisitar o pensamento de Winnie Mandela, que muito contribui para que formemos e/ou fortalecemos nossas organizações e nossa luta. 




Fuca CGPP