PESQUISA
SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO
Miguel
Angelo Sena da Silva Junior
Coordenador
da Posse de Hip Hop “Entre o Céu e o Inferno”
MC
no grupo de rap Insurreição CGPP
Graduando
em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O SER HUMANO AFRICANO
O psicólogo social experimental Wade W. Nobles (ou Nana Kwaku
Berko em banco e Ifagbemi Sangodare, em ioruba de ifa) afirma que o povo
africano em toda a diáspora precisa voltar atrás e reconstituir o que esqueceu.
De modo mais preciso, o que foi esquecido seria o próprio significado do que
vem a ser africano quando antes do contato com o opressor branco. Para Nobles,
o opressor conseguiu alterar "a percepção ou a crença em nosso senso de
africanidade intrínseco; e esse senso alterado da consciência é o problema
fundamental dos africanos" continentais e diaspóricos, isso porém, ocorre
sem que fosse possível destruir o africano dentro de nós. Nobles fala de um
lugar que muito contribui para a compreensão dos fenômenos ligados ao que
alguns chamam de "genocídio" e outros "extermínio" de
jovens negros no país. Nobles fala de uma psicologia negra emergente de base
afrocentrada que surge do questionamento das limitações da psicologia ocidental
(branca) e da necessidade de abordar "às consequências psicológicas
negativas de ser africano numa realidade anti-africana". Essa nova
abordagem epistemológica reivindica a necessidade de uma articulação séria
entre a "natureza fundamental de ser africano (negro), seus significados
psicológicos e funções associativos ou a teoria (s) necessária (s) com respeito
aos processos psicológicos africanos "normais". Dado que um dos
maiores desafios para mobilizar a opinião pública contra o quadro de homicídios
de jovens negros é a existência de uma desumanização da vítima, a psicologia
negra que Nobles propõe contribui muito para a nossa questão.
Sakhu Sheti é um termo usado por Nobles para
esclarecer o que viria a ser uma psicologia negra, o termo extraído do Medu
Netcher [A escrita de Deus], a palavra sakhu "significa a compreensão, o
iluminador, o olho e a alma do ser, aquilo que inspira", já sheti
"quer dizer entrar profundamente num assunto; estudar a fundo; pesquisar
nos livros mágicos; penetrar profundamente". A psicologia negra busca
obter "parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia" que traga a
"compreensão plena da pessoa africana mediante a pesquisa, o estudo e o
domínio do processo de 'iluminar' o espírito ou a essência humanos". Só
com o exame e a explicação do significado é possível o entendimento humano para
o africano, incluindo aí o funcionamento da natureza (essência) do ser humano.
Essência aqui difere da noção de "essencialismo" proveniente do pensamento
ocidental. Em África, "essência" ou natureza humana é algo ainda a
ser explorada e traduzida para termos africanos, ou seja, é necessário romper
com a restrição que é posta ao conhecimento africano quando este e suas
aspirações está preso ao campo de visão dos instrumentos e das interpretações
europeus.
A busca do sakhu, ou iluminação do espírito,
afro-brasileiro, seria essa imersão na ideia africana do que vem a ser um ser
humano ou uma pessoa, assim o Sakhu Sheti é a exigência de interrogar a
linguagem e a lógica dos povos africanos tradicionais e assim apreender de
forma profunda e nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos.
Isso implica dizer que, apesar de trazidos a força, preso a grilhões, ou seja,
destituídos de liberdade, isso não significa que os africanos "chegaram
destituídos de pensamento ou crenças sobre o que eles eram", pelo
contrário, "nossos ancestrais vieram com uma lógica e uma linguagem de
reflexão sobre o que significava ser humano e sobre quem eles eram, a quem
pertenciam e por que existiam". Logo, a interpretação do maafa da
escravidão só pode ser realizada a partir do sheti. Assim Nobles justifica o
conceito de maafa;
"Marimba Ani [...] introduz o conceito de maafa e o define
como grande desastre e infortúnio de morte e destruição além das convenções e
da compreensão humanas. Para mim, a característica básica do maafa é a negação
da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito,
coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a
perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos
africanos, individual e coletivamente."
Dado esse pressuposto faremos uma incursão descritiva
dos povos banto-congo, certamente o povo que mantem o maior contingente de
descendentes na cidade de São Paulo, cidade escolhida pelos pesquisadores para
o estudo da mortalidade de jovens negros por homicídios, especificamente por
ação policial.
No que diz respeito à língua e à lógica nossos
ancestrais angolanos acreditavam que uma pessoa era um construto de energia,
espírito e poder. Nessa filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica
combinada a uma espécie de vitalismo "a noção de força toma o lugar do ser
e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e
da luta contra a sua perda ou diminuição". Essa ideia de vitalismo
certamente se refere ao fato de que;
"[...] na visão banto-congo, [ser humano] é ser uma 'pessoa'
que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível
por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total, perceptível
e ponderável. A pessoa é ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia
e dos relacionamentos divinos. É a essência espiritual da pessoa que a torna humana.
Como Ngolo (energia, espírito ou poder), a pessoa é um fenômeno de 'veneração
perpétua'."
Dentro deste sistema, o ser humano é um espírito em
contato constante com os poderes "espirituais" cujo entendimento
pressupõe esses poderes como força e não como entidades estáticas. Os poderes
"espirituais" habitam um reino invisível (que se denomina Orum para a
tradição nagô-ioruba); "força espiritual" constituindo um híbrido
cuja estrutura diferenciadora culmina em uma energia (força) em constante expansão.
Esse todo é o Ser supremo, a sustentação da estrutura geradora desta força
exige dos seres humanos;
"[...] como espíritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos
(intra), a outros espíritos humanos (inter) e por fim ao Divino
(supra)."
Na dinâmica das diferentes manifestações ou
expressões do Divino temos os nhuyu (parentes mortos dos vivos), os simbi
(ancestrais) e o NzambiMpongo (Ser Supremo) que podem ser invocadas para ajudar
os vivos. Quando da morte, ocorre uma "diminuição" do ser, devendo
assim, os vivos fazerem oferendas aos mortos transmitindo a eles um pouco de
vida. Caso os vivos sejam negligentes os nhuyu lhes chamam atenção
enviando-lhes doenças e dificuldades. Aqueles que morrem sem deixar parentes,
acredita-se "está condenado à degradação final, espécie de segunda morte,
desta vez definitiva."
Com base nessa noção africana de espiritualidade ou
"força espiritual" a "pessoa" responde a uma crença
complexa (material e imaterial) que lhe dá um valor intrínseco" e que a
'pessoa' é, na verdade, um 'processo' caracterizado pelas leis divinamente
governadas da essência, do aperfeiçoamento e da compaixão".
Vemos, portanto, que da chegada em 1532 dos
primeiros africanos bantos presos, escravizados e transportados pelo negreiro
Jorge Lopes Bixorda para trabalharem no primeiro centro produtor de açúcar,
Vila São Vicente, no atual Estado de São Paulo, até hoje muita coisa mudou
quanto a maneira de conceber o ser humano africano, este perdeu sua capacidade
de auto definição e passou por um processo que Nobles chama por;
"Descarrilhamento e Desafricanização". Antes de ir para este tópico
irei fazer duas citações diretas relacionadas com essa questão de autonomeação
fundamentais para compreensão do que foi e do que é, assim como de o que pode
ser este ser humano africano. A primeira de Ney Lopes e a segunda de Toni
Morrison;
"Um indivíduo se define por seu nome; ele é seu nome. E este
nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome
dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de
circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome
sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome interior é
indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser
isolado. Toda a pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo
vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e
sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência."
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra, pág. 145
"Nasci e cresci em Vesper County, Virgínia, 1873. Num
lugarzinho chamado Vienna. Rhoda e Frank Williams me pegaram na mesma hora e me
criaram junto com os seis filhos deles. O último filho dela tinha três meses
quando Mrs. Rhoda me pegou e ele e eu a gente era mais chegado que muitos
irmãos que eu já vi. Victory era o nome dele. Victory Williams. Mrs. Rhoda me
chamou de Joseph em honra do meu pai, mas nem ela nem Mr. Frank também pensaram
em me dar um sobrenome. Ela nunca fingiu que eu era filho carnal dela. Quando
ela dividia tarefas ou favores, dizia: 'Você é como se fosse meu mesmo'. Aquele
'é como', eu acho, foi que me fez perguntar para ela - acho que eu não tinha
nem três anos ainda - onde estavam os meus pais de verdade. Ela me olhou lá do
alto, por cima do ombro, e me deu o sorriso mais doce, só que triste de algum
jeito e me disse: Ah, querido, eles desapareceram, sem nenhum traço. Do jeito
que ouvi, achei que ela queria dizer que 'sem nenhum traço' era eu.
'No primeiro dia que eu fui para a escola, tinha que ter dois
nomes. Falei para a professora: Joseph Trace [Trace = Traço] [...]."
Morrison, Toni. Jazz, pág. 122-3
2.
DESCARILHAMENTO E DESAFRICAZAÇÃO
Seguindo a ideia de maafa proposta pela filosofa e
antropóloga Marimba Ani, devemos ao menos dar algumas indicações que apresentem
a dinâmica deste processo na história localizando as raízes do mesmo ainda na
Antiguidade como propõe o etnólogo Carlos Moore.
A escravização do africano foi a base de sustentação
do projeto sobre o qual se levanta o que é comum denominar de "Novo
Mundo". Este ponto se preocupa em assinalar alguns aspectos do custo do
projeto de colonização para o desenvolvimento do ser humano africano, não
apenas do ponto de vista das condições sob as quais aqui chegavam os africanos;
que depois de meses de fome e tortura se encontravam despersonalizados e
arrasados física e psicologicamente, mas também o que significou todos esses
anos de repressão e opressão racial que ainda vigoram.
Nobles está convicto de que houve um descarilhamento
que mudou o caminho do desenvolvimento africano quanto a sua socialização, vida
familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo, pensamento
filosófico profundo, invenções científicas e técnicas. Apesar de ainda não
sabermos ao certo o real impacto desde descarilhamento iremos pontuar aqui
alguns aspectos que certamente nos permitirá compreender em parte a aparente
indiferença social quanto ao extermínio de jovens negros nas periferias da
cidade de São Paulo.
A metáfora do descarilhamento é um recurso para
explicar que houve uma alteração brusca de caminho no desenvolvimento africano,
mas que, porém, esse descarilhamento cultural é de difícil identificação dado
que "a vida e a experiência continuam". Esse aspecto é fundamental de
ser reconhecido pois é em decorrência desde fato que o próprio africano não
percebe que está percorrendo uma trajetória que o leva a desumanização e que
poderia estar centrado, realizando uma experiência mais significativa em sua vida;
humanizando-se.
Para a condição de coisificação que o maafa
demandava o africano só dispunha do "mapa mental", a concepção de
mundo descrita no tópico anterior, este "mapa mental" ao mesmo tempo
que "serviu de filtro cultural da resistência à escravidão e ao
colonialismo" foi o que, aparentemente, tornava o africano inadaptado ao
regime de escravidão cabendo ao colonizador um processo de desafricanização de
seu ser. A conclusão é que nem a escravização e nem a exploração contemporânea
do africano seria possível sem a destruição e/ou redefinição do que Nobles
chamou de "mapa mental" do africano. Logo, é a invasão do espaço
mental do africano pelo colonizador e sua visão de mundo que, removendo os
significados que constituíam o "mapa mental" do africano,
possibilitou e segue viabilizando sua exploração no tempo, e aqui chegamos ao
preceito fundamental da afrocentricidade, segundo Nobles. É, portanto,
"esse processo de descentramento ou desafricanização [que] constitui a
problemática psicológica-chave na compreensão da experiência dos africanos em
toda a diáspora".
3. EMBRANQUECIMENTO
"[...] ela disse: 'Para que serve o mundo se a gente não pode
inventar ele do jeito que quiser?'
'Do jeito que eu quiser?'
'É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja
alguma coisa mais do que ele é?'
'Para quê? Não dá para mudar o mundo.'
'Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o
azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.'
'Estragou como?'
'Esqueci.'
'Esqueceu?'
'Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para
cima e para baixo querendo ser outra pessoa.'
'Quem? Quem você queria ser?'
'Não tanto quem, mas o quê. Branca. Leve. Moça de
novo.'"
Morrison, Toni.Jazz. 2009, pág 192.
O que mais caracteriza a experiência do africano
diaspórico no Brasil é o processo de embranquecimento, que Nobles precisa
melhor como eliminação do africano, que passa a ser uma política de Estado em
1850. Apesar da referência dada pelo autor quanto o momento em que a política
de embranquecimento passa a vigorar sabemos que na verdade a construção do
africano como inferior, ou seja, o argumento central de que era necessário
branquear o país, já se expressa em políticas públicas ainda no período
colonial brasileiro. É o caso, por exemplo, das políticas que se referem a
ocupação de cargos públicos, civis, religiosos e militares, que trazia a ideia
de pureza do sangue advinda da Idade Média como discurso oficial da igreja
católica nos mostrando que o Brasil, também como os Estados Unidos, forjou um
modelo de discriminação racial baseado em pigmentação da pele e também
referente à origem. Roger Bastide, afirma que no século XVII em São Paulo
"negros e brancos eram separados na capela diante de Deus, e nos
cemitérios, diante da morte" e ainda que a Igreja visava "[penetrar]
nas almas dos descendentes de africanos a noção de sua separação e da sua
subordinação aos brancos" confirmando no tempo o processo de desafricanização
do negro pela via da redefinição do "mapa mental" do africano. O fim
do domínio português não representou mudança no teor das políticas públicas do
Estado no que diz respeito ao seu conteúdo discriminatório dado que "
(...) Em 5 de Dezembro de 1824, a Constituição brasileira em lei complementar
proibia o negro e o leproso [assim denominado na época pessoas que conviviam
com a hanseníase] de frequentarem escolas", lembrando que a esse período
já tínhamos muitos negros manumitidos, estando ai evidencias de uma política
anti-africano já antes da formulação de uma política definitiva de imigração,
inclusive, consagrada pela constituição do país. Porém, o que ficou mesmo
marcado como a consolidação de um projeto de embranquecimento, eliminação,
genocídio do africano, foi a política de substituição racial da força de
trabalho com a imigração europeia. Segundo o historiador Petrônio Domingues, a
ideia de substituir a força de trabalho nacional se originou ainda no governo
do Império e já nesse momento se visava a inserção de forma privilegiada de
colonos provenientes da Europa. Cabe, porém, um pequeno balanço dos
antecedentes históricos do projeto para melhor argumentar quanto ao caráter
racista da política já que uma tese importante deste item é a de que
"[A despeito do paradigma do branqueamento só ter adquirido
vulto no final do século XIX, a transformação de negro em branco, segundo
Andreas Hofbauer, é um] ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a
história do Brasil."
Hofbauer em Domingues, Uma História não contada. 2003,
pág.38
Ainda na obra de Domingues, consta o caso do padre
Antônio Vieira (1608-1697), o mesmo dizia em Epifania de 1662; "Um etíope
que se lava nas águas do Zaire fica limpo, mas não fica branco; porém na do
batismo, sim, uma e outra coisa", com isso podemos dizer que essa
afirmação, entre outras, o consagra como percursor do embranquecimento.
Importante também de sua afirmação é a ideia de que o batismo serviria como um
dispositivo central do supremacismo branco, sendo a conversão ao catolicismo
talvez o primeiro conjunto axiológico bem definido ao buscar a redefinição do
"mapa mental" do africano. Esse aspecto se refere à cultura, à
negação dos africanos como portadores de cultura (típico dos processos de desumanização)
e a imposição da cultura "superior". Francisco Soares Franco
(1772-1844) articula a questão do desenvolvimento econômico e social com a
necessidade de branquear o país, sua proposta no terreno racial consistia
em;
"[...] Mandar que todos os mestiços não possam casar senão
com indivíduos da casta branca, ou índia, e se proibir sem exceção alguma todo
o casamento entre mestiços e a casta africana; no espaço de duas gerações
consecutivas toda a geração mestiça estará, para me explicar assim, baldeada na
raça branca. E deste modo teremos outra grande origem de aumento da população
de brancos, e quase extinção dos pretos e mestiços desta parte do mundo; pelo
menos serão tão poucos que não entrarão em conta alguma nas considerações do
legislador"
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39
Essa perspectiva raciológica, identificando o
africano como uma substância antitética à condição humana está no bojo então de
um processo nacional da qual seu produto viria a ser o mestiço. A pena de
Franco apresenta no começo do século XIX, o que o pincel de Modesto Brocos y
Gómes com a Redenção de Cam nos apresentaria no final do mesmo século. Seguimos
com Franco;
"Os mestiços só conservam metade, ou menos, do cunho
africano; sua cor é menos preta, os cabelos menos crespos e lanudos, os beiços
e nariz menos grossos e chatos, etc. Se eles se unem depois à casta branca, os
segundos mestiços têm já menos da cor baça, etc. Se ainda a terceira geração se
faz com branca, o cunho africano perde-se totalmente, e a cor é a mesma que a
dos brancos; às vezes ainda mais clara; só nos cabelos é que se divisa uma leve
disposição para se encresparem"
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39
Até a metade do século XIX, essa tese é consensual,
seja entre aqueles a favor ou contra a escravização dos africanos nos debates
relacionados à questão da nacionalidade. Houve mesmo, ainda segundo Petrônio
Domingues, quem propusesse que ao mesmo tempo em que o Brasil realizasse um
movimento político no sentido de importar uma mão de obra branca da Europa
exportasse de volta à África os africanos libertos. A proposta de deportação em
massa do contingente africano, apesar de muito pouco explorado pela
historiografia nacional, realmente teve relevância em correntes de opinião da
elite branca nacional e esse fato explica porque o governo da Bahia, entre 1820
e 1868, expediu mais de 2.000 passaportes para de os libertos retornassem à
África.
Nessa curta descrição que operamos buscamos
apresentar alguns tópicos fundamentais, porém normalmente ignorados nas
pesquisas sobre a violência policial contra o africano diáspórico no Brasil.
Assim como as interpretações sobre o racismo sobrepôs um evento histórico,
holocausto judeu, a outro, escravização africana, estamos mais acostumados a
tratar o racismo como um fenômeno ideológico do que histórico. Carlos Moore nos
mostrou como, em realidade, o fenômeno racismo não precisou da criação da
categoria raça (do italiano razza, mas que tem origem do latim ratio) para de
expressar, que este fenômeno não é uma produção exclusiva da Europa. Não iremos
nos aprofundar muito em sua tese dado caráter desta introdução, porém cabe
trazer uma contribuição fundamental deste ao nosso projeto, a noção de que a
invisibilidade e a naturalização do quadro de violência contra o africano
diásporico no Brasil é fruto do racismo;
"A insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo,
ou coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros fenotipicamente
parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus cachorros, mas não
desenvolver qualquer sentimento de comoção perante o terrível quadro de
opressão racial. Em toda a sua dimensão destrutiva, está opressão se constitui
em variados tipos de discriminação contra os negros. Não há sensibilidade
diante da falta de acesso, de modo majoritário, da população negra aos direitos
sociais mais elementares como educação, habitação e saúde [...]"
O Racismo é um sistema de poder. O que mostramos até
aqui foi exatamente isso, um sistema de poder que produz a morte ontológica e
física no tempo. Um poder político, econômico, social e cultural (sendo a
opressão cultural uma realidade mental, espiritual, física e material) e isso
ocorre antes da ação da polícia, pois quando a mesma ocorre, não existe a
necessidade de justificações maiores.
BIBLIOGRAFIA
Domigues, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, racismo e
branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Editora Senac. São Paulo,
2004.
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011
Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.). Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4).
Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.). Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4).
Morrison, Toni. Jazz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.