Um blog sobre os pensamentos e ações do grupo de rap Insurreição CGPP. Aqui se encontram os textos produzidos, notícias do grupo, letras de rap, clipes e traduções. Além de indicações de leituras, notas e trechos de textos literários, acadêmicos, políticos e de rap.
Membro atual: Fuca
Baba Zak A. Kondo - Guia de Estudos Pretos para uma Educação Positiva - (pdf aqui)
"Este ensaio argumenta que os estudantes pretos devem lutar
para libertar as massas de nosso povo neste país no âmbito econômico, político,
espiritual, cultural e social. Para fazer isso, no entanto, eles devem primeiro
libertar suas mentes. Este ensaio ajuda nossos estudantes a libertar suas
mentes. Além disso, identifica e define as responsabilidades e deveres dos estudantes
pretos de hoje."
Este ensaio visa combater a deseducação dos estudantes pretos.
A deseducação é definida neste texto como mulheres e homens pretos sendo
ensinados a se odiar e/ou a se ver como brancos. Essas criaturas ou ‘Negroes’ são anormais, antinaturais,
autodestrutivos e prejudiciais aos pretos em todo o mundo. Os ‘Negroes’ negam aos pretos o direito
inalienável de serem únicos, bonitos, independentes e orgulhosos de nossa
herança cultural.
Como estudante de ensino superior por vários anos, vi mais ‘Negroes’ do que gostaria de me lembrar.
Meus encontros com esses ‘Negroes’ me
levaram a trabalhar diligentemente para diminuir seu número neste país. Para
fazer isso sistematicamente, devemos começar a educar nossos estudantes em casa
enquanto eles são crianças e suas mentes ainda estão vivas e férteis. Além
disso, devemos estabelecer escolas pretas independentes como a Ujamaa Shule, em
Banneker City (Washington, D.C) e ter um papel ativo na tomada de decisões no
sistema de escolas públicas neste país.
Para educar adequadamente nossos filhos, devemos ensiná-los
sobre nossas raízes e culturas Afrikanas. Devemos ensiná-los a se amar, a se
valorizar e a acreditar em si mesmos. Devemos incutir valores positivos em
favor dos Afrikanos que enfatizem sinceridade, confiança, virtude, justiça,
orgulho, coletividade, autodeterminação e condição de povo. Esses valores devem
ser incorporados à educação de nossos filhos. Pais, educadores, líderes,
acadêmicos, políticos, organizadores, pensadores sérios e empresários pretos
devem cuidar para que essa incorporação seja realizada e concluída com sucesso.
Mas o que fazemos nesse ínterim com os estudantes pretos do
ensino médio, da faculdade e de pós-graduação neste país? Devemos dar-lhes
orientação adequada e encorajá-los a se tornarem irmãos e irmãs positivos e
sérios. Somente irmãos e irmãs positivos e sérios podem fazer uma mudança
qualitativa na vida dos pretos nos EUA e no exterior.
Este ensaio argumenta que os estudantes pretos devem lutar
para libertar as massas de nosso povo neste país no âmbito econômico, político,
espiritual, cultural e social. Para fazer isso, no entanto, eles devem primeiro
libertar suas mentes. Este ensaio ajuda nossos estudantes a libertar suas
mentes. Além disso, identifica e define as responsabilidades e deveres dos estudantes
pretos de hoje.
A maioria dos brancos e seus satélites ‘Negroes’ acharão este ensaio desnecessário na melhor das
hipóteses, e antibranco na pior. Nenhuma das constatações será precisa. A
mentalidade doentia e a ação nojenta do preto “educado” neste país mais do que
provam a necessidade de um ensaio dessa natureza. Chamar este ensaio de antibranco
desvia completamente sua mensagem. Este ensaio é pró-preto, não antibranco. Os
estudantes são encorajados a amar e a servir ao povo preto, não a odiar e
prejudicar os brancos. Espero que vocês, estudantes pretos, aceitem este
esforço com o espírito positivo e fraterno como o que se oferece.
As formulações conceituais de Agyei Akoto têm o benefício de seus mais de 20 anos de experiência como Pan-Afrikanista Nacionalista. Como resultado, finalmente temos uma declaração evidente do paradigma Nacionalista Afrikano. Neste trabalho, ele delineia evidentemente o processo e a estratégia de Construção da Nação [Nacionalismo Afrikano] e sua relação inextricável com a educação Afrikano-centrada.
Numa altura em que o nosso diálogo é determinado pelas definições da academia europeia e pelos meios de comunicação controlados pelos europeus, a perspectiva de Akoto é revigorante e autenticamente enfocada no Povo Afrikano.
É evidente que ele não está se dirigindo aos não-Afrikanos, nem é prejudicado pela dependência de concepções eurocêntricas. Ele escreve com autoridade e compromisso com o povo Afrikano, livre da ambivalência ideológica que tem atormentado os Afrikanos na diáspora e no continente por muitas décadas.
Dra. MARIMBA ANI (Dona Richards)
Autora de Let the Circle Be Unbroken
Professora no departamento de Estudos Pretos e Porto-riquenhos
Hunter College (Faculdade Hunter)
Trecho do conteúdo.
(...) Alguns anos atrás, nas últimas semanas de setembro de
1989, o professor John H. Clarke transmitiu uma mensagem à Sociedade Ankobia,
de Washington, D.C., dizendo que independentemente do que possamos empreender,
“se não se trata da construção da nação [Afrikana], então não se trata de
nada.Ӄ uma
declaração que pode ser tomada literalmente.
A construção da nação (Nacionalismo Afrikano) é a
aplicação consciente e focada dos recursos, energias e conhecimentos coletivos
de nosso povo na tarefa de libertação, e de desenvolver o espaço físico e
psíquico que identificarmos como nosso.Envolve o desenvolvimento de comportamentos, valores,
linguagens, instituições e estruturas físicas que elucidem nossa história e
cultura, que possam projetar e concretizar o presente e assegurar a futura
identidade e independência da nação.
A construção da nação (Nacionalismo Afrikano) é a
projeção deliberada, intensamente dirigida, focada, e enérgica da cultura
nacional e da identidade coletiva. A construção da nação (Nacionalismo
Afrikano)é
ocasionada pela geração e liberação de enormes quantidades de energia, não
muito diferente de uma gravidez e um novo nascimento, ou de uma tempestade de primavera
e o novo cultivo que se segue.
Com qualquer uma das analogias, é fundamental
que os termos e condições que ocasionam o surgimento dessa nova realidade sejam
claros e inequívocos.Essas condições, termos e linguagem descritiva devem ser definidos pelos
criadores dessa nova realidade. Essa nova realidade, para nós, é uma
consciência nacional e cultural renovada.
O surgimento desta nova consciência, esta realidade
renovada e Afrikano-centrada, marca o renascimento da personalidade Afrikana e
a revitalização da nacionalidade Afrikana. Isso é a construção da nação (Nacionalismo
Afrikano). (...)
O SR.ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. pronuncia o
seguinte discurso) - Sr. Presidente, SRªS E SRS. senadores, Sob a proteção de
Olorum, inicio este pronunciamento.
Acontecimento mais relevante da história deste milênio, a
invasão do Continente Africano por europeus a partir do século XVI, com a
escravização e migração forçada de milhões de seus filhos e a transformação dos
restantes em súditos coloniais, alterou para sempre a face do planeta. Pode-se
afirmar, sem medo de exagero, que o transplante de enormes contingentes de
africanos para o outro lado do Atlântico não apenas moldou a face das
sociedades americanas, mas constituiu o principal motor de processos fundamentais,
como a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, responsáveis pela
configuração do mundo, tal como hoje o conhecemos. Dentre as consequências
negativas desse fato histórico encontram-se os principais vetores da
instabilidade de que padece não apenas a África mesma, mas igualmente boa parte
das Américas, sem esquecer a própria Europa. Questões como o racismo e a
xenofobia, que têm nos descendentes de africanos no Novo e no Velho Mundo
seus alvos preferenciais, encontram-se nas raízes de problemas como a
violência urbana, as crianças de rua, a favelização das metrópoles. Ao mesmo
tempo, as sequelas do colonialismo se espelham com clareza no empobrecimento e
nas sangrentas lutas fratricidas que nos acostumamos a associar a determinadas
regiões da África, frutos da atomização e do artificialismo que presidiram à
imposição das atuais fronteiras dos países africanos pelos centros
político-militares europeus de força.
Com todo o sofrimento e toda a dor que constituíram parte
integrante desse processo cruel, a história da resistência africana na própria
África e nas Américas é também uma saga repleta de heroísmo, bravura,
determinação e criatividade. Qualidades que possibilitaram que um povo dominado
pelo poder das armas, reforçado por toda espécie de ideologia mistificadora,
conseguisse impor boa parte de sua cultura, de seus valores, de sua arte, de
sua religião aos seus dominadores, a despeito da suposta superioridade por
estes autoproclamada. Tudo isso não aconteceu de graça, mas em resultado de uma
luta tão multifacetada quanto as próprias estratégias de dominação elaboradas
pelos escravizadores europeus e seus descendentes. Uma luta a um tempo nos
planos material e ideológico, envolvendo não somente as armas convencionais de
cada época e lugar em que tem sido travada, mas igualmente a palavra e o
pensamento, tendo por meta a derradeira conquista das consciências e mentes de
europeus, africanos e seus descendentes. Objetivo último dessa luta: a
supremacia final, para uns, ou a plena liberdade, para outros.
Uma das noções mais antigas entre os povos africanos
escravizados nas Américas é a de que sua liberdade não se resgataria com
simples apelos emotivos ao coração do dominador. Mais do que isso, a percepção
de que uma África unida, livre da hegemonia europeia, constituiria uma fonte de
força e apoio aos negros em todo o mundo. Essa visão, raiz mais profunda
daquilo que viria a ser conhecido como pan-africanismo, encontra-se presente,
mesmo que de forma incipiente, no ideário dos principais movimentos de luta
organizada contra a escravidão nas Américas. Estava presente em Palmares, que
congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em
busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe,
os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti.
O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do
mundo africano. Não há nenhuma conotação racista nessa unidade, que se baseia
não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos
históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em
face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo
reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista
com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da
Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de
milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída,
fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do
Caribe.
O primeiro registro histórico de uma reivindicação de caráter
tipicamente pan-africano data de meados do século XVIII, na forma de uma
petição em que escravos da colônia inglesa que um dia se transformaria nos Estados
Unidos da América pleiteavam a volta à África depois de libertados. A mesma ideia
presidiu à fundação em 1787, por um grupo de afro-americanos, da cidade de
Freetown - que mais tarde viria a ser a capital da Serra Leoa -, revertendo um
projeto originalmente racista e paternalista que só ganhou força quando
ressuscitado e recuperado por africanos e descendentes oriundos do Caribe e da
América do Norte.
O século XIX assistiu ao crescimento e consolidação do ideal
pan-africano, impulsionado, nos Estados Unidos, por nomes como Prince Hall,
John Russworm, o Bispo McNeil Turner e o grande ativista Edward Blyden. O mesmo
ideal que, sob diferentes formulações, propelia ao mesmo tempo os movimentos
anticoloniais africanos. Na África do Sul, por exemplo, desde a sua criação, no
início deste século, o Congresso Nacional Africano, que décadas mais tarde
concretizaria o sonho aparentemente utópico de um governo de maioria negra,
incorporou integralmente ao seu programa o ideal pan-africano. Como se percebe
no profético discurso do nacionalista sul-africano Isaka Seme, proferido em
1905 na Columbia University:
O gigante está acordando! Dos quatro cantos da terra os filhos
da África marcham em direção à porta dourada do futuro, carregando o
registro de proezas de valor realizadas.
Dentre os inúmeros intelectuais e ativistas dedicados à causa
pan-africana nestes últimos dois séculos, um nome se destaca: o de Marcus
Garvey, responsável pela fundação do principal movimento internacional negro em
toda a história - a UNIA (Universal Negro Improvement Association, Associação
Universal para o Avanço Negro), organização que chegou a ter 35 mil militantes
inscritos nos Estados Unidos, 52 filiais em Cuba, oito em Honduras, oito na
África do Sul, 47 no Panamá e 25 na Costa Rica -, onde tive a oportunidade de
visitar o casarão histórico em que funcionou seu quartel-general para a região,
ainda preservado na Província de Limón. Além de sucursais no Brasil, Equador,
Nigéria, Porto Rico, Austrália, Nicarágua, México, Barbados, Serra Leoa,
Inglaterra e Venezuela.
Marcus Garvey nasceu em St. Ann's Bay, na Jamaica, a 17 de
agosto de 1887. Filho de um pedreiro do mesmo nome, descendente dos
aguerridos maroons, que desafiaram - por vezes com sucesso - a
ordem colonial britânica na Jamaica e em todo o Caribe, cedo demonstrou uma
aguda inteligência e uma inquietação em face de problemas sociais e raciais que
iria acompanhá-lo até a morte. Já aos 16 anos, como aprendiz de gráfico, seu
primeiro emprego, o jovem Garvey iniciava sua atuação como ativista político,
participando de uma greve de sua categoria. Pouco depois, publicou seu primeiro
jornal, The Watchman (O Vigilante), em que expunha suas ideias
e preocupações sobre temas vinculados a raça e classe.
Essas preocupações o levariam em frequentes viagens ao exterior,
nas quais a visão dos descendentes de africanos ocupando em toda parte a base
da pirâmide social acabaria consolidando suas posições ideológicas e forjando
os elementos essenciais de sua plataforma anti-racista, antiimperialista e
anticolonialista. Assim foi no Panamá, porto de destino de milhares de
jamaicanos atraídos pelos empregos oferecidos com a construção do Canal, mas
discriminados em favor dos operários brancos. Também no Equador, na Nicarágua,
em Honduras, na Colômbia e na Venezuela, onde os negros, empregados na
mineração ou nas plantações de tabaco, pareciam incapazes de melhorar as
humilhantes condições em que viviam.
Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 de idade, chega a Londres, onde
vai trabalhar, estudar e desenvolver-se na percepção de novas dimensões da
luta negra. A capital do Império Britânico, ainda nos picos de seu poderio, era
o ponto focal da efervescente atividade intelectual e política que marcou o
período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, em
1911, a cidade abrigara um Congresso Mundial sobre Raça, organizado sob os
auspícios do Movimento Inglês de Cultura Ética - o mesmo Congresso em que o
representante brasileiro declarou candidamente estar o Brasil resolvendo seu
problema racial por meio da miscigenação, que acabaria com os negros dentro de
um século. À miscigenação, acrescente-se, devemos somar as péssimas condições
de vida que ajudariam a liquidar o povo afrodescendente neste país. A
literatura, as atitudes e os debates relativos a esse Congresso ainda eram
motivo de acesas polêmicas quando Marcus Garvey chegou a Londres. Igualmente
importante era a nova literatura anticolonial produzida na África Ocidental.
As ideias do jovem Garvey sobre a redenção africana ganharam
contornos definitivos quando se associou ao intelectual nacionalista Duse
Mohammed Ali, um egípcio de ascendência sudanesa que publicava o jornal
mensal The African Times and Orient Review. O período londrino
completou a educação política de Marcus Garvey. Ele estava pronto para a sua
tarefa. Em 1914, retornou à Jamaica e fundou uma organização, que denominou
Associação Universal para o Avanço Negro e Liga das Comunidades Africanas. Dois
anos depois, encorajado pelo líder afro-americano Booker T. Washington, desembarca
em Nova York. No Harlem, toma contato com as especificidades da questão racial
nos Estados Unidos. Os negros do Sul fugiam para o Norte, deixando atrás de si
o sistema aparteísta do Jim Crow, os linchamentos, a falta de direitos
políticos, a servidão e a miséria. No Norte, ganhavam melhores salários nas
fábricas, que agora tinham de alimentar a máquina de guerra, mas eram obrigados
a viver em casas caindo aos pedaços, em bairros miseráveis, e seus filhos frequentavam
escolas precárias, tanto nas instalações quanto no ensino. Os poucos que
ousavam usar estratagemas para comprar residências em bairros de brancos viviam
apavorados pela possibilidade de bombas racistas explodirem em suas casas ou de
suas famílias serem ameaçadas na rua.
Não existia nessa época uma organização verdadeiramente negra em
Nova York. As que havia eram multirraciais, dirigidas por brancos e mestiços de
pele clara. Garvey começou sua pregação discursando nas esquinas do Harlem.
Logo precisou ocupar espaços maiores, na medida em que crescia o público
interessado em sua mensagem positiva, que falava de uma ação internacional
em favor do negro. Essa reação estimulou Garvey a instalar nos Estados
Unidos a sua UNIA, que se distinguia das demais organizações por ser
exclusivamente negra e defender um programa ousado e radical. Categorizando a
luta negra como de direitos humanos, e não somente de direitos civis, o que
implicitamente estabeleceria seu caráter internacional, já em 1920 Marcus
Garvey articulava a distinção fundamental assinalada por Malcolm X nos anos 60,
contribuindo para elevar a luta negra a um patamar superior ao do
integracionismo liberal.
Garvey compreendeu três necessidades básicas do negro em todo o
mundo: a de dignidade e auto-respeito como povo unido; a de uma África independente
e unida como base de força central; e a de instituições autônomas para
impulsionar a vida das comunidades negras. Além disso, como nenhum outro, antes
ou depois dele, Marcus Garvey percebeu a importância das comunidades negras das
Américas Central e do Sul para a luta pan-africanista internacional, inspirada
no lema "A África para os africanos, na própria pátria e no
exterior".
Em 1920, no auge do prestígio de Garvey, a UNIA organizou a I
Convenção dos Povos Africanos do Mundo, com a presença de 25 mil representantes
e delegados de todos os continentes. O produto mais importante dessa Convenção
foi a Declaração de Direitos dos Povos Negros do Mundo, que condenava o
colonialismo, afirmava o "direito inerente do negro de governar a
África", instituía o vermelho, o preto e o verde como as cores simbólicas
do pan-africanismo, e exigia o fim dos linchamentos e da discriminação racial
nos países da diáspora africana, bem como o ensino da História Africana nas
escolas públicas.
A independência econômica era outro fator enfatizado no programa
da UNIA. Garvey exortava seus seguidores a "comprar de negros", a
preferir negociantes de sua própria raça. Atendendo o apelo de Booker T.
Washington à auto-suficiência, a UNIA iniciou diversos projetos na área
empresarial, incluindo a Corporação de Fábricas Negras, destinada a ajudar
empresários da comunidade. O que é mais importante, Garvey fundou a Black Star
Steamship Line, para funcionar como laço comercial e espiritual entre os negros
de todos os lugares que seus navios alcançassem. Para surpresa de seus
críticos, entre 1919 e 1925 Garvey juntou dinheiro suficiente para adquirir
quatro navios e estabelecer ligações comerciais com o Caribe.
Embora os navios da Black Star Line transportassem tanto carga
quanto passageiros, o objetivo não era um retorno físico de todos os negros à
África, que ele sabia ser impossível, mas antes um retorno de caráter simbólico
e espiritual. Garvey acreditava, contudo, ser dever dos descendentes de
africanos contribuir, com seu trabalho, conhecimento e tecnologia, para o
fortalecimento do Continente-Mãe, tendo em vista uma futura derrubada de
fronteiras e a criação de uma nação unificada. Nesse sentido, chegou a
estabelecer negociações com o Governo da Libéria.
Se granjearam uma legião de seguidores, as ideias de Garvey
também o fizeram colecionar desafetos, entre brancos e negros, à direita e à
esquerda do espectro político. Creio não ser preciso enfatizar o perigo que ele
representava para o establishment, com suas ideias de autonomia, dignidade
e auto-respeito. Problemas com a administração da Black Star Line acabaram
fornecendo o pretexto para que o FBI o prendesse, em 1923, sob falsas
acusações, o que causou uma gigantesca passeata de protesto, que reuniu 150 mil
pessoas, de várias nacionalidades, nas ruas do Harlem. Deportado para a Jamaica
em 1927, Garvey foi recebido pelo povo de Kingston, a capital, como um
verdadeiro chefe de estado - mas como uma ameaça pela elite, branca e negra.
Essa oposição, materializada sob a forma de dificuldades jurídicas, não o
impediu de se eleger, na capital, para um cargo correspondente ao de
vereador, nem de publicar um novo jornal, The New Jamaican (O
Novo Jamaicano).
Em 1935, ano em que a Itália de Mussolini invade a Etiópia,
então a única nação independente da África, provocando um acirramento das
discussões sobre colonialismo e racismo, Garvey retorna à Inglaterra, onde
passará seus últimos anos. Seu propósito era cobrar diretamente do
Império Britânico a redenção do Continente Africano. Os ingleses não se
preocuparam muito. O Império vivia seu último período de esplendor, dominação e
arrogância. Não estava, assim, inclinado a dar ouvidos a esse súdito da Coroa
que agia como um cidadão, exigindo os direitos básicos da cidadania. Era também
a época da Grande Depressão, cujas consequências se abatiam com maior impacto
sobre os descendentes de africanos. Garvey viveu seus últimos anos na pobreza,
embora sem perder o orgulho de maroon que o projetara
mundialmente nas décadas precedentes. Em janeiro de 1940, um ataque de
paralisia o pôs de cama, e alguns jornais publicaram que ele havia morrido na
miséria. Cartas e telegramas choveram sobre seu escritório. A secretária evitava
que essa correspondência chegasse a suas mãos, mas ele acabou tendo acesso a
ela. As manchetes falando de sua morte causaram-lhe um choque do qual não se
recuperou, vindo a falecer no dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorridos 57
anos de sua morte, sua mensagem ao mundo continua válida:
Ó África, acorda
A aurora está chegando
Não mais és maldita
Ó bondosa Terra-Mãe
De longe teus filhos e filhas
Se dirigem de volta a ti
Sobre as águas ressoam seus gritos
De que a África será livre.
A filosofia de Garvey não é perfeita, nem fornece uma base
adequada para a moderna teoria e prática da luta africana. Em consequência, é
fácil e legítimo levantar críticas construtivas às suas ideias e ao seu
movimento. Mas não se pode negar o legado que ele deixou como fundamento
essencial à organização política do negro. Seu espírito continua vivo, apesar
dos incansáveis esforços de seus adversários em destruí-lo. Em seu livro The
BlackJacobins (Os jacobinos negros), o intelectual
antilhano C.L.R. James - que em vida foi meu amigo e apoiou as
reivindicações do Movimento Negro brasileiro ao VI Congresso Pan-Africano,
realizado em 1974 na Tanzânia - observa que dois caribenhos, "usando a
tinta da Negritude, inscreveram seus nomes de maneira indelével na história de
nosso tempo". James está se referindo a Aimé Césaire e Marcus Garvey. Para
ele, Garvey está na vanguarda do grupo de negros radicais do século XX cujas ideias
e programas ainda reverberam nos movimentos de libertação de nossos dias. Isso
se deve, em grande medida, ao trabalho incansável daquela que por décadas o
acompanhou na luta e que, depois de sua morte, dedicou a existência à
preservação de sua memória e à divulgação de suas ideias. Estou falando de sua
viúva, Amy Jacques Garvey, por quem tive a honra de ser recebido em minha
passagem pela Jamaica, em 1973.
O garveísmo inspirou muitos líderes africanos, como o ganês
Kwame Nkrumah, apóstolo do pan-africanismo, bem como a jovem liderança que, nos
anos 60, faria avançar a um ponto sem precedentes a luta dos afro-americanos.
Sua preocupação com a auto-imagem dos negros, com o valor do ensino da História
Africana, com a unidade dos povos da África e da diáspora, mas sobretudo sua
disposição de homem simples e prático, capaz de traduzir para as massas negras
despossuídas a mensagem do pan-africanismo, e de tomar medidas práticas para
concretizá-la - tudo isso fez de Marcus Garvey um homem que merece a admiração
e o respeito, não apenas dos africanos e seus descendentes, mas de todos
aqueles comprometidos de coração com a mudança efetiva das relações sociais e
raciais.
- Ensaio extraído do livro From The Browder File (Arquivo do Browder), que é um conjunto de 22 ensaios de Anthony T. Browder.
- como adicional, tem-se um episódio do From The Browder File contendo a transcrição da legenda do vídeo no final do post.
A
Origem do Negro
Escolha um nome, qualquer
nome - negro, de cor, preto ou afro-americano. Chame as pessoas por qualquer
nome e elas ainda são as mesmas, certo? Errado!
O nome ao qual você responde
determina o grau de sua autoestima. Da mesma forma, a maneira como as pessoas
respondem coletivamente a um nome pode ter efeitos devastadores em suas vidas,
principalmente se elas não escolherem seu nome.
Os asiáticos vêm da Ásia e
têm orgulho da raça asiática. Os europeus vêm da Europa e têm orgulho das
realizações europeias. Os negros, devo presumir, vêm da Negrolândia - um país mítico com um passado incerto e um futuro
ainda mais incerto. Como a Negrolândia
é um mito, de onde se originou o mito do negro? A chave para entender o significado
de negro, é saber a definição dessa palavra e sua origem.
Os portugueses foram os
primeiros europeus a escravizar os africanos e foram os primeiros a chamá-los
de negros. Quando os espanhóis se envolveram no tráfico de escravos, eles
também usaram a palavra negro para descrever os africanos. Negro é um adjetivo
que significa preto em português e espanhol. Mas, desde 1444, e o início do tráfico de escravos, o adjetivo negro tornou-se um substantivo e o nome
legítimo de um povo recém-escravizado.
As línguas portuguesa e
espanhola foram derivadas do latim, que tem sua origem na Grécia clássica. Na
maioria dos idiomas europeus, a palavra preto era tipicamente associada a
aspectos de morte. A palavra morte é derivada da palavra grega necro, que
significa morto, e é semelhante, em som e significado, à palavra negro. Ao
longo da história europeia, as palavras necro e negro foram comumente usadas
para referenciar a morte física, espiritual ou mental de uma pessoa, lugar ou
coisa.
Historicamente, quando os
gregos viajaram para a África, 2.500 anos atrás, a civilização egípcia já era
antiga. A Grande Pirâmide tinha mais de 3.000 anos e a Esfinge era ainda mais
antiga. A escrita, ciência, medicina e religião já faziam parte da civilização e
atingiram seu auge.
Os gregos vieram para a
África como estudantes e sentaram aos pés dos mestres para descobrir o que os
africanos já sabiam. Em qualquer relação aluno/professor, o professor só pode
ensinar o quanto o aluno for capaz de entender.
Os egípcios, como outros
africanos, entendiam que a vida existia além do túmulo. A adoração ancestral é
uma maneira de reconhecer a vida das pessoas que vieram antes de você e a
capacidade delas de oferecer orientação e direção aos vivos. Os templos foram
projetados como lugares onde os antepassados podiam ser honrados e os feriados
(dias santos) eram os dias designados para isso.
Os egípcios tinham centenas
de templos e centenas de dias santos para adorar seus ancestrais. Eles estavam
preocupados com a vida e comemoravam o legado de seus entes queridos. Mas os
gregos pensavam que esses africanos tinham uma preocupação com a morte. Eles [os gregos] consideraram o ato de culto ancestral como necromancia ou comunicação com os
mortos.
Como a palavra raiz necro
significa morto, outra palavra para necromancia é magia - a Velha Magia Negra
que era praticada na África antiga. Quando os gregos voltaram para a Europa,
levaram consigo suas crenças distorcidas e a palavra negro acabou evoluindo a
partir desse grande mal-entendido.
Menos de 300 anos depois que
os primeiros gregos chegaram ao Egito como estudantes, seus descendentes
retornaram como conquistadores. Eles destruíram as cidades, os templos e as bibliotecas
dos egípcios e reivindicaram o conhecimento africano como deles.
Não apenas o legado africano
foi roubado, mas o roubo por atacado do povo africano logo se seguiu. Com o
surgimento do tráfico de escravos e a criação [da palavra] negro, tornou-se necessário desumanizar
os africanos e desvalorizar seu valor histórico como povo, a fim de garantir
seu valor como escravos. O que antes era chamado de cor e condição física,
agora é considerado um estado mental adequado para milhões de africanos que
residem atualmente na América.
Então, aí está, o negro -
uma raça de pessoas mortas, com uma história morta e sem esperança de
ressurreição enquanto eles permanecerem ignorantes de seu passado. Foi uma
morte tripla - a morte da mente, do corpo e do espírito do povo africano.
Era estritamente proibido os
escravos negros aprenderem a ler ou escrever. Esse conhecimento era a chave da
libertação e foi colocado firmemente fora de alcance. À medida que os negros
eram educados, eles tentavam se redefinir.
A evolução do negro para (pessoade cor), preto, afro-americano e africano
representa uma progressão da autoconsciência. Como povo livre, temos a
responsabilidade de nos educar e redescobrir nossas identidades africanas. O
conhecimento de si é a chave para abrir a porta para o futuro. Quanto mais cedo
entendermos esse fato, mais cedo poderemos dizer graças a Deus que somos um
povo africano.
Comentário
De todos os ensaios do From
The Browder File (Arquivo do Browder), "A Origem do Negro" foi um dos
mais populares. Foi bem recebido por duas razões óbvias, o assunto e a
ilustração que o acompanha, especificamente a imagem da figura majestosa que
emergia da África.
A ilustração foi desenhada
por Malcolm Aaron e recebemos vários pedidos de pessoas que pediram permissão
para usar a arte em camisetas e pôsteres. Vários anos atrás, enquanto eu lecionava
em uma base da Força Aérea em Misawa, no Japão, me disseram que essa arte era a
tatuagem mais popular entre os irmãos nas forças armadas. Esta imagem de um rei
africano forte é aquela para a qual qualquer ex-negro seria naturalmente
atraído.
Com relação à palavra negro
e à legitimidade de seu uso como nome para os africanos, remeto ao livro de
Richard Moore, O nome "Negro" sua origem e mau uso. Não há dúvida de
que a palavra negro foi criada por pessoas más para propósitos malignos. O
falecido John Henrik Clarke costumava nos lembrar de que "cães e escravos
eram nomeados por seus senhores e que apenas homens livres se
denominavam". Com esse entendimento, qualquer pessoa de mente livre deve
ver a palavra negro como um nome inadequado para pessoas pretas e organizações
pretas.
Compreendo nossa aceitação
do nome anos atrás, quando não sabíamos. Mas, com todo o conhecimento que temos
à nossa disposição, não há desculpa para o uso contínuo de uma palavra que é
humilhante e obsoleta.
Como um negro em recuperação,
prometi a mim mesmo nunca escrever negro com uma maiúscula "N”. Negro não
é um substantivo, é um incômodo e deve ser descartado de nosso vocabulário
junto com a outra infame palavra "N". Quem optar por usar essas
palavras o faz por ignorância ou desrespeito.
O rei ou rainha latente
dentro de você não pode coexistir pacificamente com uma mentalidade negra. Ou
você escolhe ser livre e pensa, fala e age como uma pessoa livre, ou você é um
escravo. Você não pode ser os dois.
Referências
e leituras selecionadas
Anderson, S.E., The Black Holocaust For Beginners, New York, N Y and
Readers Pub. Inc, 1995.
Diop, Cheikh Anta, African Origin of Civilization: Myth or Reality, New
York, NM Lawrence Hill, 1974.
James, George GM., Stolen Legacy, San Francisco, CA, Julian Richardson,
1976.
Moore, Richard B., The Name “Negro” Its Origin and Evil Use, Baltimore,
MD, Black Classic Press, 1992.
Williams, Chancellor, The Destruction of Black Civilization, Chicago,
IL, Third World Press, 1976.
Arquivo
do Browder: Episódio 1
No começo, nossos ancestrais
não sabiam nada. Eles estudaram por quatro mil anos. Eles aprenderam tudo o que
havia para saber. Eles ensinaram os outros. Depois veio o Maafa, o grande
desastre.
Na escravidão era ilegal os africanos
ler e escrever. Eles foram forçados a esquecer de tudo o que haviam aprendido e
ensinado. Depois de 400 anos esquecendo, eles esqueceram que tinham esquecido.
Isso muda hoje, vou lembrar
por eles. Vou ler por eles, vou escrever por eles. Vou ensinar por eles, vou me
certificar de que nunca mais serão esquecidos.
Sou Tony Browder e bem-vindo
ao primeiro de uma série de programas e ao meu livro From The Browder File. Antes
de começarmos o programa, eu gostaria de falar um pouco sobre mim.
Nasci em uma família
monoparental, minha mãe tinha 16 anos quando eu nasci. Ela morava com os pais
no oeste de Chicago. Minha mãe sempre se interessou em que eu obtivesse uma educação
da melhor qualidade que eu pudesse.
Então quando eu entrei no
ensino médio. Nós nos mudamos de Chicago para Oak Park, que é um subúrbio
ocidental da cidade e durante esse período, éramos a segunda família
afro-americana a morar em Oak Park, e em meus três anos na escola Oak Park
River Forest de um corpo estudantil de mais de 3000 estudantes, nunca houve
mais que dois afro-americanos, em toda a escola.
Eu recebi uma ótima educação.
Aprendi a amar a aprender. Aprendi a amar a ler, mas também aprendi que havia
uma profunda ausência de informações sobre quem eu era como pessoa de ascendência
africana.
Isso foi no final dos anos
60, durante o auge do movimento Poder Preto e o Movimento da Consciência Preta,
e então eu estava imbuído de uma sensação de orgulho Preto, vivendo e
frequentando uma escola de ambiente totalmente branco.
Após o colegial, frequentei
a Universidade de Illinois por um semestre em que me formei em arquitetura e
depois, mudei meu curso quando fui para a Universidade Howard. Minha formação é
em design gráfico e publicidade. Só me interessei por história e cultura depois
de me formar na Universidade Howard. Quando comecei a aprender a verdade sobre
quem eu era enquanto uma pessoa de ascendência africana.
Desse modo, esta jornada de
iluminação, me levou a começar a saber mais sobre quem eu era como ancestral da
África. Documentei meu conhecimento através dos meus escritos, das minhas
ilustrações, desenhos. E então comecei a dar palestras e seminários enquanto eu
viajava pelo país. E depois eu também viajei por toda a África e pelo mundo. Documentando
essas novas informações sobre nossa história e cultura coletiva.
Então eu vim escrever From
The Browder File como resultado de minha participação no programa Cathy Hughes
Morning Show em 1986 em Washington DC. A sra. Hughes ficou tão impressionada
com meu conhecimento que me convidou regularmente ao seu programa.
Mas foi minha primeira
aparição no Cathy Heghes Morning Show que motivou uma ligação de Francis
Murphy, que lecionava na Escola de Comunicação da Universidade Howard. Ela era
a editora do jornal afro-americano de Washington e me convidou para escrever um
artigo sobre um dos assuntos da minha primeira entrevista.
O assunto foi “A Origem do
Negro” e após nossa conversa inicial, concordei em escrever uma coluna
quinzenal sobre vários aspectos sobre a história e cultura Africana e
afro-americana. Eu escrevi essas colunas ao longo de dois anos e foi isso que
constituiu meu primeiro livro intitulado “Arquivo do Browder: 22 ensaios sobre
a experiência Africano-americana”.
O que realmente colocou em
movimento este programa, que você está envolvido agora com o estudioso Browder,
foram as cartas que recebi de dezenas de afro-americanos encarcerados durante
1990. Todo mês eu recebia dezenas de cartas de jovens irmãos, que estavam
trancados atrás das grades e liam pela primeira vez em suas vidas. Que tiveram
base em suas vidas pela primeira vez e muitas das cartas diziam que meu livro
From The Browder File foi o primeiro livro que eles leram de ponta a ponta.
E como resultado das
leituras sobre história e cultura africana e afro-americana. Eles começaram a
se orgulhar mais de si mesmos e começaram a entender como e por que eles foram
desviados. Foi essencialmente uma falta de conhecimento de si mesmo que
resultou em desrespeitar a si próprio cometendo crimes contra pessoas em suas
comunidades. Vendendo drogas, brigando, roubando e, as vezes, por fim,matando outras pessoas.
Contudo, como resultado da
leitura, eles começaram a se ver de maneira diferente. E muitas das cartas
expressam os mesmos comentários. Que eles gostariam de ter lido este livro mais
cedo em suas vidas. De tal forma que não estariam cumprindo 10, 15, 20, anos de
prisão ou prisão perpetua.
E outra pergunta frequente
em suas cartas foi, como eles conseguiriam levar essas informações para seus
filhos para que eles não seguissem os passos de seus pais.
Isso me levou a começar a
ver o que eu poderia fazer em levar mais essas informações contidas no The
Browder File para nossos rapazes e moças antes que eles sigam o caminho errado
e acabem encarcerados.
Por isso, iniciamos o The
Browder Scholars Program para reunir principalmente um grupo de estudantes
afro-americanos e expô-los ao conhecimento e à informação que eles
provavelmente não encontrariam em sua experiência educacional, do ensino
fundamental, ensino médio e, infelizmente, até da faculdade.
Há informações proibidas que
não podem fazer parte do nosso sistema educacional tradicional. Aprendi a
incentivar nosso povo a ler, porque é cultivando o apetite pela leitura que você
pode entender o porquê quando nossos ancestrais foram escravizados centenas de
anos atrás aqui neste país, nos Estados Unidos da América, era ilegal para
pessoas de ascendência africana, que foram roubadas de sua terra natal, ler
narrativas sobre de onde elas vieram. Lembrar-se de como elas foram roubada e
de como elas estavam sendo abusadas
Nossa incapacidade de
acessar um conhecimento preciso de nós mesmos é o que contribui para a nossa
contínua falta de respeito um pelo outro e por nós mesmos. Agindo como um povo
perdido e assim quando comecei a aprender o poder do conhecimento, o poder da
leitura e de que compartilhando essas informações com outras pessoas pode
transformar vidas. Organizei uma série de palestras em Washington DC a partir
de 1987. E nosso primeiro orador convidado foi o Dr. Asa Hilliard III.
Dr. Hillard era um psicólogo
acadêmico. Ele era um historiador e se tornou um amigo muito próximo e meu
Jagna. Usamos a palavra Jagna em vez de mentor porque Jagna é um termo amárico
originário da Etiópia, na África Oriental. E representa uma pessoa que é
defensora da cultura. Alguém que transmite informações culturais e históricas aos
jovens, a fim de colocar seus pés em um caminho que os levará a se tornarem
adultos positivos e produtivos em suas comunidades.
Foi a minha afinidade com o
dr. Hilliard que me levou a convidá-lo a escrever a introdução do From The
Browder File, quando foi publicado em 1989. Agora, em 1989, poucas pessoas
tinham ouvido falar de Tony Browder ou Anthony Browder. Mas as pessoas nos
Estados Unidos e em todo o mundo conheciam o Dr. Hilliard, conheciam seu
trabalho como psicólogo, seu trabalho como mestre educador, seu trabalho como
historiador. Uma pessoa que levou milhares de professores e administradores
para o Egito em seu estudo anual. Onde ele literalmente transformou suas mentes
ao mostrar-lhes a história de 5000 anos que nossos ancestrais haviam criado no Vale
do Nilo.
O Dr. Hilliard, em sua
introdução ao “From The Browder File”, listou os fatores que contribuem para um
sentimento de desunião entre as pessoas de ascendência africana. Ele falou
sobre a necessidade de estabelecer uma declaração mental de independência, a
necessidade de nos tornarmos pensadores conscientes e, assim, esses dez tópicos
ajudaram a estabelecer as bases de como as pessoas deveriam usar este livro
From The Browder File.
Eu gostaria de referenciar
esses 10 pontos muito rapidamente, para que você possa entender os fatores que
aconteceram centenas de anos atrás. Eles contribuem para o nosso atual estado
de desunião e desordem. E que, ao entender como essas forças ainda nos impactam
mais de 100 anos após o fim da escravidão.
Por fim, podemos começar a
assumir uma responsabilidade pessoal e mudar a forma de como pensamos. Mudar a
forma como agimos e modelar para nós mesmos, nossa comunidade e nossos filhos, o
que realmente é empoderamento cultural africano que homens e mulheres devem
seguir. E como eles deveriam se comportar.
Quero destacar esses 10 pontos
que o Dr. Hilliard disse que contribui para a nossa falta de senso de unidade e
direção.
A primeira é que abandonamos
nossos nomes. Nós não sabemos quem somos. Não sabemos de onde viemos na África,
O segundo ponto é que
renunciamos o modo de vida de nossa cultura. Adotamos os modos de vida das
pessoas diferentes de nós.
A terceira é que perdemos
nosso ímpeto, porque perdemos nossos nomes e abandonamos nosso modo de vida em
nossa cultura. E o que geralmente acontece é que, onde uma pessoa desenvolve
uma consciência africana e procura compartilhar essas informações com seus
familiares e amigos. Uma das afirmações que é ouvida com frequência é: ”oh,
você aqui de novo com essas coisas de Preto.”
Como se houvesse algo errado
em falar sobre quem somos e elevar a história de nossos ancestrais. Somos
Pretos, seremos pretos por toda a vida e, portanto, a melhor coisa que podemos
fazer é celebrar quem somos, estudando nossa história e cultura. Modelando isso
para nossos jovens e ensinando-os o orgulho de nossos ancestrais.
O quarto ponto que Dr. Hilliard
levantou foi que temos uma perda geral de memória. Poucos de nós conseguem
contar a história do povo africano sem começar essa história em nossa
escravidão, como se nossa escravização fosse a única coisa que já aconteceu
conosco. Esta é uma mentira que foi criada e perpetuada por nossos
escravizadores a fim de nos manter mentalmente escravizados e como Dr. Hilliard
costumava dizer, a escravidão mental é pior que escravidão física. Porque os
escravos mentais pensam que são livres e nunca perceberam os grilhões em nossas
mentes.
O quinto ponto que ele
levantou é que criamos falsas memórias. Temos lembranças imprecisas do povo
africano, da história africana e da cultura africana. Também temos lembranças
imprecisas da história europeia, do povo europeu e cultura europeia. Nós, na
América, fomos ensinados a acreditar que Cristóvão Colombo descobriu a América
e um fato fundamental com o qual devemos nos perguntar é, como alguém pode
descobrir uma terra quando as pessoas já estão lá? E o “descobrimento” da América
foi em 1492, que definiu o quadro para a dizimação dos povos indígenas desta
terra, que por engano ainda nos referimos hoje como Índios. E então, com sua
dizimação, estabeleceu o processo europeu de escravização do povo africano. O
que resultou na morte de mais de 50 milhões de homens, mulheres, crianças, que
foram roubados de suas terras da África Ocidental. Assim, com o roubo do povo
africano, depois da destruição da história, cultura e memória dos povos
indígenas. Os europeus fabricaram mentiras para se elevarem como heróis, como
descobridores, como homens de grande valor. Quando, de fato, o registro
histórico documenta que eles estiveram entre os maiores ladrões, mentirosos e
manipuladores do mundo. Então, parte da jornada, que encorajo a todos a
participarem desta leitura dos ensaios do The Browder File, é uma jornada para
a iluminação. Mas começaremos a aprender a verdade sobre nós mesmos e ter uma
maior compreensão de quem são os outros. Que continuam a influenciar nossas
vidas hoje.
O sexto ponto que Dr.
Hilliard levanta é que perdemos nossa terra. Perdemos nossos laços com a terra,
perdemos a África há mais de 400 anos. O povo africano foi roubado da pátria. E
então, por quase 100 anos, os europeus tomaram, dividiram e colonizaram a
África. Aproveitou todos os recursos existentes e os explorou. Para seu próprio
ganho pessoal, como resultado de mais de 500 anos de roubo de pessoas, terras e
recursos, a África é pobre e a Europa é rica. A única razão pela qual a Europa
é rica é que ela roubou o povo africano e os recursos africanos. A única razão
pela qual a África é pobre é por causa da perda de mais de 50 milhões de
pessoas, e uma quantidade incalculável de ouro, diamantes e outros recursos que
abasteceram o mundo por centenas e centenas de anos.
O sétimo ponto da referência
do Dr.Hilliard é que perdemos nossa capacidade de produção independente. Nós
fomos programados e socializados para sermos consumidores e não produtores. Nossos
ancestrais foram responsáveis por criar a civilização documentada mais antiga
deste planeta. Fomos os primeiros seres humanos a ler, escrever e raciocinar. Mas
agora nos socializamos para consumir tudo o que foi criado por esse mundo
europeu e abraçar esse conteúdo ou consumi-lo como se fosse a única coisa de
valor. Então temos que começar a entender quem éramos para que possamos nos
tornar essas grandes pessoas novamente.
O oitavo ponto da referência
do Dr.Hilliard é que perdemos o controle independente de nós mesmos. Não
controlamos mais nossos bairros, nossas comunidades. Não controlamos mais os meios
de empregar nossa força de trabalho. Não controlamos mais nossos sistemas
educacionais, nem mídia que socializa nossos comportamentos. Tudo isso que é
essencial para o nosso desenvolvimento como indivíduos e como povo. Tudo isso é
muito importante em moldar a mente dos jovens. Quem controla seu sistema
educacional determina o que você sabe; e o que você sabe, determina como você
pensa e como age. Quem controla a mídia determina sua percepção de si mesmo. Determina
quais são os nossos modos legítimos e ilegítimos de comunicação e
comportamento. E como sabemos muito bem, olhando para a mídia, seja televisão,
rádio, mídia impressa, filme ou vídeo, continuamos a ser apresentados como
pessoas indesejáveis, criminosos, traficantes e pessoas que nem em nossa mente
queremos nos identificar. Desse modo, temos que recuperar o controle dos
sistemas que influenciam nossos pensamentos e nosso comportamento. Nosso
sistema educacional nossos sistemas de mídia e os meios de emprego para que
possamos nos capacitar e apoiar aqueles indivíduos e instituições que ajudarão
a trazer o melhor de nós mesmos e o melhor nas gerações futuras.
E depois Dr. Hilliard disse
que perdemos nossa sensibilidade. Esta é a nona referência. Perdemos a
capacidade de saber quando outras pessoas estão nos menosprezando e aceitamos
retratos imprecisos do povo africano como se fossem verdadeiros. Quando você
internaliza percepções negativas da realidade. Você, subconscientemente,
abraçará esses aspectos negativos como autênticos para si mesmo. Portanto, é
sobre saber quem você é, sobre agir com base nesse conhecimento e compartilhar
esse conhecimento com outras pessoas para que você possa iniciar o processo de
uma jornada para a iluminação. Semeando pensamentos nesse processo de restaurar
sua memória histórica e cultural de que você pode se tornar seu Eu verdadeiro e
autêntico.
O décimo ponto que dr.
Hilliard diz é o resultado cumulativo de todas essas coisas. Perdemos nosso
senso de unidade e direção. E assim, o único recurso para aqueles de nós que
tomam tempo para ler e estudar retratos precisos das contribuições contínuas do
povo africano à história e às culturas, é apenas redescobrindo essas novas
informações que podemos começar a conhecer nosso verdadeiro Eu. Comece a agir e
a falar de uma maneira que glorifique nossos ancestrais e apresente-os aos
jovens para que tenham capacidade de se tornar gloriosos, da mesma forma.
Portanto, esses são os
objetivos básicos dos ensaios do From The Browder File para apresentar a você
informações que a maioria de nós nunca receberá em um ambiente educacional
formal e para mostrar como internalizar essas informações históricas, realizar
mais pesquisas sobre os assuntos referenciados, agora essas novas informações
podem te guiar no caminho do conhecimento, e isso fará com que você faça
contribuições positivas para sua família, para sua comunidade e para o mundo
africano.
Então aproveite a leitura e
a discussão do From The Browder File.
Tá aí um livro que me surpreendeu, pois com o relato de
Carolina de Jesus, deu pra imaginar o cenário racializado do Brasil na primeira
metade do século passado. Neste livro, Carolina retrata sua trajetória desde a
sua infância até a sua chegada em São Paulo. A meu ver, é uma escrita bem
direta, de fato como anotações de um diário com uma pitada de arte literária.
Assim o livro vai oscilando entre relatos e literatura; realidade e, o que eu
imagino, de ficção.
De uma forma simples, a autora expressa sua visão de mundo e
com diversas sacadas que parecem ingênuas no que tange à ciência (sociais, economia, história), mas são bem
didáticas, talvez por serem ancoradas no senso comum. Mas, para mim, revelou-se
que Carolina de Jesus procurava pensar nos problemas do mundo e pensar numa
vida melhor para o país. A diferença é que ela vivia todo aquele turbilhão de
mazelas, que se agravava com o estilo seminômade na busca por trabalho e terra.
São situações pesadas, diversas discriminações raciais,
condição de miséria e a todo tempo uma vida instável, fazendo-a estar sempre em
desajuste social, sobretudo quando se fala de aspecto físico e vestimenta. Por vezes, ela se encontrou sozinha em sua
caminhada e ainda sendo desassistida pelos seus próprios parentes.
Um fato interessante é que muito lhe agradava a figura do
presidente Rui Barbosa, do inicio ao fim do livro a autora fez menção a ele, o
colocando como um possível salvador da pátria. Getúlio Vargas também foi muito
citado.
Vale lembrar que o livro Quarto de Despejo já havia
explodido de sucesso, e que o Diário de Bitita foi publicado postumamente, em
1986. Eu, particularmente, curti mais esse último diário. Achei incrível a forma que ela relatou sua infância, e como ela juntou memória, vivência e opinião numa história.
Fuca, Insurreição CGPP, 2020
Infos:
Carolina de Jesus, nasceu dia 14/03/1914 em Sacramento- MG e faleceu em 13/02/1977 São Paulo-SP.
(Nova Fronteira) “Poucos antes de morrer, Maria Carolina de
Jesus – a autora de Quarto de Despejo, que na década de 60 teve repercussão
internacional de público e crítica – entregou a jornalistas franceses que
vieram entrevista-la os cadernos manuscritos que compõem este Diário de Bitita.
Neles a autora escreveu sobre sua infância e sua luta contra a miséria e o
preconceito racial. Dirigindo um olhar atento à realidade à sua volta e
narrando com sensibilidade suas vivências pessoais, Carolina de Jesus criou um
texto de força impressionante, que expressa a visão de mundo e também o papel
histórico de uma imensa parcela oprimida da população brasileira. Escrito com
inteligência e numa linguagem original, Diário de Bitita significa bem mais que
um testemunho pessoal: é um exemplo espontâneo de contestação, onde a
experiência vivida se torna mensagem literária.”
PESQUISA
SOBRE A MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO
Miguel
Angelo Sena da Silva Junior
Coordenador
da Posse de Hip Hop “Entre o Céu e o Inferno”
MC
no grupo de rap Insurreição CGPP
Graduando
em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O SER HUMANO AFRICANO
O psicólogo social experimental Wade W. Nobles (ou Nana Kwaku
Berko em banco e Ifagbemi Sangodare, em ioruba de ifa) afirma que o povo
africano em toda a diáspora precisa voltar atrás e reconstituir o que esqueceu.
De modo mais preciso, o que foi esquecido seria o próprio significado do que
vem a ser africano quando antes do contato com o opressor branco. Para Nobles,
o opressor conseguiu alterar "a percepção ou a crença em nosso senso de
africanidade intrínseco; e esse senso alterado da consciência é o problema
fundamental dos africanos" continentais e diaspóricos, isso porém, ocorre
sem que fosse possível destruir o africano dentro de nós. Nobles fala de um
lugar que muito contribui para a compreensão dos fenômenos ligados ao que
alguns chamam de "genocídio" e outros "extermínio" de
jovens negros no país. Nobles fala de uma psicologia negra emergente de base
afrocentrada que surge do questionamento das limitações da psicologia ocidental
(branca) e da necessidade de abordar "às consequências psicológicas
negativas de ser africano numa realidade anti-africana". Essa nova
abordagem epistemológica reivindica a necessidade de uma articulação séria
entre a "natureza fundamental de ser africano (negro), seus significados
psicológicos e funções associativos ou a teoria (s) necessária (s) com respeito
aos processos psicológicos africanos "normais". Dado que um dos
maiores desafios para mobilizar a opinião pública contra o quadro de homicídios
de jovens negros é a existência de uma desumanização da vítima, a psicologia
negra que Nobles propõe contribui muito para a nossa questão.
Sakhu Sheti é um termo usado por Nobles para
esclarecer o que viria a ser uma psicologia negra, o termo extraído do Medu
Netcher [A escrita de Deus], a palavra sakhu "significa a compreensão, o
iluminador, o olho e a alma do ser, aquilo que inspira", já sheti
"quer dizer entrar profundamente num assunto; estudar a fundo; pesquisar
nos livros mágicos; penetrar profundamente". A psicologia negra busca
obter "parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia" que traga a
"compreensão plena da pessoa africana mediante a pesquisa, o estudo e o
domínio do processo de 'iluminar' o espírito ou a essência humanos". Só
com o exame e a explicação do significado é possível o entendimento humano para
o africano, incluindo aí o funcionamento da natureza (essência) do ser humano.
Essência aqui difere da noção de "essencialismo" proveniente do pensamento
ocidental. Em África, "essência" ou natureza humana é algo ainda a
ser explorada e traduzida para termos africanos, ou seja, é necessário romper
com a restrição que é posta ao conhecimento africano quando este e suas
aspirações está preso ao campo de visão dos instrumentos e das interpretações
europeus.
A busca do sakhu, ou iluminação do espírito,
afro-brasileiro, seria essa imersão na ideia africana do que vem a ser um ser
humano ou uma pessoa, assim o Sakhu Sheti é a exigência de interrogar a
linguagem e a lógica dos povos africanos tradicionais e assim apreender de
forma profunda e nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos.
Isso implica dizer que, apesar de trazidos a força, preso a grilhões, ou seja,
destituídos de liberdade, isso não significa que os africanos "chegaram
destituídos de pensamento ou crenças sobre o que eles eram", pelo
contrário, "nossos ancestrais vieram com uma lógica e uma linguagem de
reflexão sobre o que significava ser humano e sobre quem eles eram, a quem
pertenciam e por que existiam". Logo, a interpretação do maafa da
escravidão só pode ser realizada a partir do sheti. Assim Nobles justifica o
conceito de maafa;
"Marimba Ani [...] introduz o conceito de maafa e o define
como grande desastre e infortúnio de morte e destruição além das convenções e
da compreensão humanas. Para mim, a característica básica do maafa é a negação
da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito,
coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a
perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos
africanos, individual e coletivamente."
Dado esse pressuposto faremos uma incursão descritiva
dos povos banto-congo, certamente o povo que mantem o maior contingente de
descendentes na cidade de São Paulo, cidade escolhida pelos pesquisadores para
o estudo da mortalidade de jovens negros por homicídios, especificamente por
ação policial.
No que diz respeito à língua e à lógica nossos
ancestrais angolanos acreditavam que uma pessoa era um construto de energia,
espírito e poder. Nessa filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica
combinada a uma espécie de vitalismo "a noção de força toma o lugar do ser
e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e
da luta contra a sua perda ou diminuição". Essa ideia de vitalismo
certamente se refere ao fato de que;
"[...] na visão banto-congo, [ser humano] é ser uma 'pessoa'
que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível
por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total, perceptível
e ponderável. A pessoa é ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia
e dos relacionamentos divinos. É a essência espiritual da pessoa que a torna humana.
Como Ngolo (energia, espírito ou poder), a pessoa é um fenômeno de 'veneração
perpétua'."
Dentro deste sistema, o ser humano é um espírito em
contato constante com os poderes "espirituais" cujo entendimento
pressupõe esses poderes como força e não como entidades estáticas. Os poderes
"espirituais" habitam um reino invisível (que se denomina Orum para a
tradição nagô-ioruba); "força espiritual" constituindo um híbrido
cuja estrutura diferenciadora culmina em uma energia (força) em constante expansão.
Esse todo é o Ser supremo, a sustentação da estrutura geradora desta força
exige dos seres humanos;
"[...] como espíritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos
(intra), a outros espíritos humanos (inter) e por fim ao Divino
(supra)."
Na dinâmica das diferentes manifestações ou
expressões do Divino temos os nhuyu (parentes mortos dos vivos), os simbi
(ancestrais) e o NzambiMpongo (Ser Supremo) que podem ser invocadas para ajudar
os vivos. Quando da morte, ocorre uma "diminuição" do ser, devendo
assim, os vivos fazerem oferendas aos mortos transmitindo a eles um pouco de
vida. Caso os vivos sejam negligentes os nhuyu lhes chamam atenção
enviando-lhes doenças e dificuldades. Aqueles que morrem sem deixar parentes,
acredita-se "está condenado à degradação final, espécie de segunda morte,
desta vez definitiva."
Com base nessa noção africana de espiritualidade ou
"força espiritual" a "pessoa" responde a uma crença
complexa (material e imaterial) que lhe dá um valor intrínseco" e que a
'pessoa' é, na verdade, um 'processo' caracterizado pelas leis divinamente
governadas da essência, do aperfeiçoamento e da compaixão".
Vemos, portanto, que da chegada em 1532 dos
primeiros africanos bantos presos, escravizados e transportados pelo negreiro
Jorge Lopes Bixorda para trabalharem no primeiro centro produtor de açúcar,
Vila São Vicente, no atual Estado de São Paulo, até hoje muita coisa mudou
quanto a maneira de conceber o ser humano africano, este perdeu sua capacidade
de auto definição e passou por um processo que Nobles chama por;
"Descarrilhamento e Desafricanização". Antes de ir para este tópico
irei fazer duas citações diretas relacionadas com essa questão de autonomeação
fundamentais para compreensão do que foi e do que é, assim como de o que pode
ser este ser humano africano. A primeira de Ney Lopes e a segunda de Toni
Morrison;
"Um indivíduo se define por seu nome; ele é seu nome. E este
nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome
dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de
circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome
sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome interior é
indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser
isolado. Toda a pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo
vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e
sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência."
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra, pág. 145
"Nasci e cresci em Vesper County, Virgínia, 1873. Num
lugarzinho chamado Vienna. Rhoda e Frank Williams me pegaram na mesma hora e me
criaram junto com os seis filhos deles. O último filho dela tinha três meses
quando Mrs. Rhoda me pegou e ele e eu a gente era mais chegado que muitos
irmãos que eu já vi. Victory era o nome dele. Victory Williams. Mrs. Rhoda me
chamou de Joseph em honra do meu pai, mas nem ela nem Mr. Frank também pensaram
em me dar um sobrenome. Ela nunca fingiu que eu era filho carnal dela. Quando
ela dividia tarefas ou favores, dizia: 'Você é como se fosse meu mesmo'. Aquele
'é como', eu acho, foi que me fez perguntar para ela - acho que eu não tinha
nem três anos ainda - onde estavam os meus pais de verdade. Ela me olhou lá do
alto, por cima do ombro, e me deu o sorriso mais doce, só que triste de algum
jeito e me disse: Ah, querido, eles desapareceram, sem nenhum traço. Do jeito
que ouvi, achei que ela queria dizer que 'sem nenhum traço' era eu.
'No primeiro dia que eu fui para a escola, tinha que ter dois
nomes. Falei para a professora: Joseph Trace [Trace = Traço] [...]."
Morrison, Toni. Jazz, pág. 122-3
2.
DESCARILHAMENTO E DESAFRICAZAÇÃO
Seguindo a ideia de maafa proposta pela filosofa e
antropóloga Marimba Ani, devemos ao menos dar algumas indicações que apresentem
a dinâmica deste processo na história localizando as raízes do mesmo ainda na
Antiguidade como propõe o etnólogo Carlos Moore.
A escravização do africano foi a base de sustentação
do projeto sobre o qual se levanta o que é comum denominar de "Novo
Mundo". Este ponto se preocupa em assinalar alguns aspectos do custo do
projeto de colonização para o desenvolvimento do ser humano africano, não
apenas do ponto de vista das condições sob as quais aqui chegavam os africanos;
que depois de meses de fome e tortura se encontravam despersonalizados e
arrasados física e psicologicamente, mas também o que significou todos esses
anos de repressão e opressão racial que ainda vigoram.
Nobles está convicto de que houve um descarilhamento
que mudou o caminho do desenvolvimento africano quanto a sua socialização, vida
familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo, pensamento
filosófico profundo, invenções científicas e técnicas. Apesar de ainda não
sabermos ao certo o real impacto desde descarilhamento iremos pontuar aqui
alguns aspectos que certamente nos permitirá compreender em parte a aparente
indiferença social quanto ao extermínio de jovens negros nas periferias da
cidade de São Paulo.
A metáfora do descarilhamento é um recurso para
explicar que houve uma alteração brusca de caminho no desenvolvimento africano,
mas que, porém, esse descarilhamento cultural é de difícil identificação dado
que "a vida e a experiência continuam". Esse aspecto é fundamental de
ser reconhecido pois é em decorrência desde fato que o próprio africano não
percebe que está percorrendo uma trajetória que o leva a desumanização e que
poderia estar centrado, realizando uma experiência mais significativa em sua vida;
humanizando-se.
Para a condição de coisificação que o maafa
demandava o africano só dispunha do "mapa mental", a concepção de
mundo descrita no tópico anterior, este "mapa mental" ao mesmo tempo
que "serviu de filtro cultural da resistência à escravidão e ao
colonialismo" foi o que, aparentemente, tornava o africano inadaptado ao
regime de escravidão cabendo ao colonizador um processo de desafricanização de
seu ser. A conclusão é que nem a escravização e nem a exploração contemporânea
do africano seria possível sem a destruição e/ou redefinição do que Nobles
chamou de "mapa mental" do africano. Logo, é a invasão do espaço
mental do africano pelo colonizador e sua visão de mundo que, removendo os
significados que constituíam o "mapa mental" do africano,
possibilitou e segue viabilizando sua exploração no tempo, e aqui chegamos ao
preceito fundamental da afrocentricidade, segundo Nobles. É, portanto,
"esse processo de descentramento ou desafricanização [que] constitui a
problemática psicológica-chave na compreensão da experiência dos africanos em
toda a diáspora".
3. EMBRANQUECIMENTO
"[...] ela disse: 'Para que serve o mundo se a gente não pode
inventar ele do jeito que quiser?'
'Do jeito que eu quiser?'
'É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja
alguma coisa mais do que ele é?'
'Para quê? Não dá para mudar o mundo.'
'Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o
azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.'
'Estragou como?'
'Esqueci.'
'Esqueceu?'
'Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para
cima e para baixo querendo ser outra pessoa.'
'Quem? Quem você queria ser?'
'Não tanto quem, mas o quê. Branca. Leve. Moça de
novo.'"
Morrison, Toni.Jazz. 2009, pág 192.
O que mais caracteriza a experiência do africano
diaspórico no Brasil é o processo de embranquecimento, que Nobles precisa
melhor como eliminação do africano, que passa a ser uma política de Estado em
1850. Apesar da referência dada pelo autor quanto o momento em que a política
de embranquecimento passa a vigorar sabemos que na verdade a construção do
africano como inferior, ou seja, o argumento central de que era necessário
branquear o país, já se expressa em políticas públicas ainda no período
colonial brasileiro. É o caso, por exemplo, das políticas que se referem a
ocupação de cargos públicos, civis, religiosos e militares, que trazia a ideia
de pureza do sangue advinda da Idade Média como discurso oficial da igreja
católica nos mostrando que o Brasil, também como os Estados Unidos, forjou um
modelo de discriminação racial baseado em pigmentação da pele e também
referente à origem. Roger Bastide, afirma que no século XVII em São Paulo
"negros e brancos eram separados na capela diante de Deus, e nos
cemitérios, diante da morte" e ainda que a Igreja visava "[penetrar]
nas almas dos descendentes de africanos a noção de sua separação e da sua
subordinação aos brancos" confirmando no tempo o processo de desafricanização
do negro pela via da redefinição do "mapa mental" do africano. O fim
do domínio português não representou mudança no teor das políticas públicas do
Estado no que diz respeito ao seu conteúdo discriminatório dado que "
(...) Em 5 de Dezembro de 1824, a Constituição brasileira em lei complementar
proibia o negro e o leproso [assim denominado na época pessoas que conviviam
com a hanseníase] de frequentarem escolas", lembrando que a esse período
já tínhamos muitos negros manumitidos, estando ai evidencias de uma política
anti-africano já antes da formulação de uma política definitiva de imigração,
inclusive, consagrada pela constituição do país. Porém, o que ficou mesmo
marcado como a consolidação de um projeto de embranquecimento, eliminação,
genocídio do africano, foi a política de substituição racial da força de
trabalho com a imigração europeia. Segundo o historiador Petrônio Domingues, a
ideia de substituir a força de trabalho nacional se originou ainda no governo
do Império e já nesse momento se visava a inserção de forma privilegiada de
colonos provenientes da Europa. Cabe, porém, um pequeno balanço dos
antecedentes históricos do projeto para melhor argumentar quanto ao caráter
racista da política já que uma tese importante deste item é a de que
"[A despeito do paradigma do branqueamento só ter adquirido
vulto no final do século XIX, a transformação de negro em branco, segundo
Andreas Hofbauer, é um] ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a
história do Brasil."
Hofbauer em Domingues, Uma História não contada. 2003,
pág.38
Ainda na obra de Domingues, consta o caso do padre
Antônio Vieira (1608-1697), o mesmo dizia em Epifania de 1662; "Um etíope
que se lava nas águas do Zaire fica limpo, mas não fica branco; porém na do
batismo, sim, uma e outra coisa", com isso podemos dizer que essa
afirmação, entre outras, o consagra como percursor do embranquecimento.
Importante também de sua afirmação é a ideia de que o batismo serviria como um
dispositivo central do supremacismo branco, sendo a conversão ao catolicismo
talvez o primeiro conjunto axiológico bem definido ao buscar a redefinição do
"mapa mental" do africano. Esse aspecto se refere à cultura, à
negação dos africanos como portadores de cultura (típico dos processos de desumanização)
e a imposição da cultura "superior". Francisco Soares Franco
(1772-1844) articula a questão do desenvolvimento econômico e social com a
necessidade de branquear o país, sua proposta no terreno racial consistia
em;
"[...] Mandar que todos os mestiços não possam casar senão
com indivíduos da casta branca, ou índia, e se proibir sem exceção alguma todo
o casamento entre mestiços e a casta africana; no espaço de duas gerações
consecutivas toda a geração mestiça estará, para me explicar assim, baldeada na
raça branca. E deste modo teremos outra grande origem de aumento da população
de brancos, e quase extinção dos pretos e mestiços desta parte do mundo; pelo
menos serão tão poucos que não entrarão em conta alguma nas considerações do
legislador"
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39
Essa perspectiva raciológica, identificando o
africano como uma substância antitética à condição humana está no bojo então de
um processo nacional da qual seu produto viria a ser o mestiço. A pena de
Franco apresenta no começo do século XIX, o que o pincel de Modesto Brocos y
Gómes com a Redenção de Cam nos apresentaria no final do mesmo século. Seguimos
com Franco;
"Os mestiços só conservam metade, ou menos, do cunho
africano; sua cor é menos preta, os cabelos menos crespos e lanudos, os beiços
e nariz menos grossos e chatos, etc. Se eles se unem depois à casta branca, os
segundos mestiços têm já menos da cor baça, etc. Se ainda a terceira geração se
faz com branca, o cunho africano perde-se totalmente, e a cor é a mesma que a
dos brancos; às vezes ainda mais clara; só nos cabelos é que se divisa uma leve
disposição para se encresparem"
Franco em Domingues, Uma História não contada. 2003 pág.39
Até a metade do século XIX, essa tese é consensual,
seja entre aqueles a favor ou contra a escravização dos africanos nos debates
relacionados à questão da nacionalidade. Houve mesmo, ainda segundo Petrônio
Domingues, quem propusesse que ao mesmo tempo em que o Brasil realizasse um
movimento político no sentido de importar uma mão de obra branca da Europa
exportasse de volta à África os africanos libertos. A proposta de deportação em
massa do contingente africano, apesar de muito pouco explorado pela
historiografia nacional, realmente teve relevância em correntes de opinião da
elite branca nacional e esse fato explica porque o governo da Bahia, entre 1820
e 1868, expediu mais de 2.000 passaportes para de os libertos retornassem à
África.
Nessa curta descrição que operamos buscamos
apresentar alguns tópicos fundamentais, porém normalmente ignorados nas
pesquisas sobre a violência policial contra o africano diáspórico no Brasil.
Assim como as interpretações sobre o racismo sobrepôs um evento histórico,
holocausto judeu, a outro, escravização africana, estamos mais acostumados a
tratar o racismo como um fenômeno ideológico do que histórico. Carlos Moore nos
mostrou como, em realidade, o fenômeno racismo não precisou da criação da
categoria raça (do italiano razza, mas que tem origem do latim ratio) para de
expressar, que este fenômeno não é uma produção exclusiva da Europa. Não iremos
nos aprofundar muito em sua tese dado caráter desta introdução, porém cabe
trazer uma contribuição fundamental deste ao nosso projeto, a noção de que a
invisibilidade e a naturalização do quadro de violência contra o africano
diásporico no Brasil é fruto do racismo;
"A insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo,
ou coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros fenotipicamente
parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus cachorros, mas não
desenvolver qualquer sentimento de comoção perante o terrível quadro de
opressão racial. Em toda a sua dimensão destrutiva, está opressão se constitui
em variados tipos de discriminação contra os negros. Não há sensibilidade
diante da falta de acesso, de modo majoritário, da população negra aos direitos
sociais mais elementares como educação, habitação e saúde [...]"
O Racismo é um sistema de poder. O que mostramos até
aqui foi exatamente isso, um sistema de poder que produz a morte ontológica e
física no tempo. Um poder político, econômico, social e cultural (sendo a
opressão cultural uma realidade mental, espiritual, física e material) e isso
ocorre antes da ação da polícia, pois quando a mesma ocorre, não existe a
necessidade de justificações maiores.
BIBLIOGRAFIA
Domigues, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, racismo e
branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Editora Senac. São Paulo,
2004.
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011 Nobles, Wade, W. Sakhu Sheti: Retomando a Reapropriando Um Foco
Psicológico Aforcentrado. In: Nascimento, Elisa Larkim (org.).
Afrocentricidade, uma abordagem inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
(Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4).
Morrison, Toni. Jazz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.