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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Abdias Nascimento sobre Marcus Garvey em 05/06/1997 - Pronunciamento no senado.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, SRªS E SRS. senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

 

Acontecimento mais relevante da história deste milênio, a invasão do Continente Africano por europeus a partir do século XVI, com a escravização e migração forçada de milhões de seus filhos e a transformação dos restantes em súditos coloniais, alterou para sempre a face do planeta. Pode-se afirmar, sem medo de exagero, que o transplante de enormes contingentes de africanos para o outro lado do Atlântico não apenas moldou a face das sociedades americanas, mas constituiu o principal motor de processos fundamentais, como a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, responsáveis pela configuração do mundo, tal como hoje o conhecemos. Dentre as consequências negativas desse fato histórico encontram-se os principais vetores da instabilidade de que padece não apenas a África mesma, mas igualmente boa parte das Américas, sem esquecer a própria Europa. Questões como o racismo e a xenofobia, que têm nos descendentes de africanos no Novo e no Velho Mundo seus alvos preferenciais, encontram-se nas raízes de problemas como a violência urbana, as crianças de rua, a favelização das metrópoles. Ao mesmo tempo, as sequelas do colonialismo se espelham com clareza no empobrecimento e nas sangrentas lutas fratricidas que nos acostumamos a associar a determinadas regiões da África, frutos da atomização e do artificialismo que presidiram à imposição das atuais fronteiras dos países africanos pelos centros político-militares europeus de força.

Com todo o sofrimento e toda a dor que constituíram parte integrante desse processo cruel, a história da resistência africana na própria África e nas Américas é também uma saga repleta de heroísmo, bravura, determinação e criatividade. Qualidades que possibilitaram que um povo dominado pelo poder das armas, reforçado por toda espécie de ideologia mistificadora, conseguisse impor boa parte de sua cultura, de seus valores, de sua arte, de sua religião aos seus dominadores, a despeito da suposta superioridade por estes autoproclamada. Tudo isso não aconteceu de graça, mas em resultado de uma luta tão multifacetada quanto as próprias estratégias de dominação elaboradas pelos escravizadores europeus e seus descendentes. Uma luta a um tempo nos planos material e ideológico, envolvendo não somente as armas convencionais de cada época e lugar em que tem sido travada, mas igualmente a palavra e o pensamento, tendo por meta a derradeira conquista das consciências e mentes de europeus, africanos e seus descendentes. Objetivo último dessa luta: a supremacia final, para uns, ou a plena liberdade, para outros.

Uma das noções mais antigas entre os povos africanos escravizados nas Américas é a de que sua liberdade não se resgataria com simples apelos emotivos ao coração do dominador. Mais do que isso, a percepção de que uma África unida, livre da hegemonia europeia, constituiria uma fonte de força e apoio aos negros em todo o mundo. Essa visão, raiz mais profunda daquilo que viria a ser conhecido como pan-africanismo, encontra-se presente, mesmo que de forma incipiente, no ideário dos principais movimentos de luta organizada contra a escravidão nas Américas. Estava presente em Palmares, que congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe, os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti.

O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do mundo africano. Não há nenhuma conotação racista nessa unidade, que se baseia não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída, fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do Caribe.

O primeiro registro histórico de uma reivindicação de caráter tipicamente pan-africano data de meados do século XVIII, na forma de uma petição em que escravos da colônia inglesa que um dia se transformaria nos Estados Unidos da América pleiteavam a volta à África depois de libertados. A mesma ideia presidiu à fundação em 1787, por um grupo de afro-americanos, da cidade de Freetown - que mais tarde viria a ser a capital da Serra Leoa -, revertendo um projeto originalmente racista e paternalista que só ganhou força quando ressuscitado e recuperado por africanos e descendentes oriundos do Caribe e da América do Norte.

O século XIX assistiu ao crescimento e consolidação do ideal pan-africano, impulsionado, nos Estados Unidos, por nomes como Prince Hall, John Russworm, o Bispo McNeil Turner e o grande ativista Edward Blyden. O mesmo ideal que, sob diferentes formulações, propelia ao mesmo tempo os movimentos anticoloniais africanos. Na África do Sul, por exemplo, desde a sua criação, no início deste século, o Congresso Nacional Africano, que décadas mais tarde concretizaria o sonho aparentemente utópico de um governo de maioria negra, incorporou integralmente ao seu programa o ideal pan-africano. Como se percebe no profético discurso do nacionalista sul-africano Isaka Seme, proferido em 1905 na Columbia University:

O gigante está acordando! Dos quatro cantos da terra os filhos da  África marcham em direção à porta dourada do futuro, carregando o registro de proezas de valor realizadas.

Dentre os inúmeros intelectuais e ativistas dedicados à causa pan-africana nestes últimos dois séculos, um nome se destaca: o de Marcus Garvey, responsável pela fundação do principal movimento internacional negro em toda a história - a UNIA (Universal Negro Improvement Association, Associação Universal para o Avanço Negro), organização que chegou a ter 35 mil militantes inscritos nos Estados Unidos, 52 filiais em Cuba, oito em Honduras, oito na África do Sul, 47 no Panamá e 25 na Costa Rica -, onde tive a oportunidade de visitar o casarão histórico em que funcionou seu quartel-general para a região, ainda preservado na Província de Limón. Além de sucursais no Brasil, Equador, Nigéria, Porto Rico, Austrália, Nicarágua, México, Barbados, Serra Leoa, Inglaterra e Venezuela. 

Marcus Garvey nasceu em St. Ann's Bay, na Jamaica, a 17 de agosto de 1887. Filho de um pedreiro do mesmo nome, descendente dos aguerridos maroons, que desafiaram - por vezes com sucesso - a ordem colonial britânica na Jamaica e em todo o Caribe, cedo demonstrou uma aguda inteligência e uma inquietação em face de problemas sociais e raciais que iria acompanhá-lo até a morte. Já aos 16 anos, como aprendiz de gráfico, seu primeiro emprego, o jovem Garvey iniciava sua atuação como ativista político, participando de uma greve de sua categoria. Pouco depois, publicou seu primeiro jornal, The Watchman (O Vigilante), em que expunha suas ideias e preocupações sobre temas vinculados a raça e classe.

Essas preocupações o levariam em frequentes viagens ao exterior, nas quais a visão dos descendentes de africanos ocupando em toda parte a base da pirâmide social acabaria consolidando suas posições ideológicas e forjando os elementos essenciais de sua plataforma anti-racista, antiimperialista e anticolonialista. Assim foi no Panamá, porto de destino de milhares de jamaicanos atraídos pelos empregos oferecidos com a construção do Canal, mas discriminados em favor dos operários brancos. Também no Equador, na Nicarágua, em Honduras, na Colômbia e na Venezuela, onde os negros, empregados na mineração ou nas plantações de tabaco, pareciam incapazes de melhorar as humilhantes condições em que viviam. 

Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 de idade, chega a Londres, onde vai trabalhar, estudar e desenvolver-se na percepção de novas dimensões da luta negra. A capital do Império Britânico, ainda nos picos de seu poderio, era o ponto focal da efervescente atividade intelectual e política que marcou o período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, em 1911, a cidade abrigara um Congresso Mundial sobre Raça, organizado sob os auspícios do Movimento Inglês de Cultura Ética - o mesmo Congresso em que o representante brasileiro declarou candidamente estar o Brasil resolvendo seu problema racial por meio da miscigenação, que acabaria com os negros dentro de um século. À miscigenação, acrescente-se, devemos somar as péssimas condições de vida que ajudariam a liquidar o povo afrodescendente neste país. A literatura, as atitudes e os debates relativos a esse Congresso ainda eram motivo de acesas polêmicas quando Marcus Garvey chegou a Londres. Igualmente importante era a nova literatura anticolonial produzida na África Ocidental.

As ideias do jovem Garvey sobre a redenção africana ganharam contornos definitivos quando se associou ao intelectual nacionalista Duse Mohammed Ali, um egípcio de ascendência sudanesa que publicava o jornal mensal The African Times and Orient Review. O período londrino completou a educação política de Marcus Garvey. Ele estava pronto para a sua tarefa. Em 1914, retornou à Jamaica e fundou uma organização, que denominou Associação Universal para o Avanço Negro e Liga das Comunidades Africanas. Dois anos depois, encorajado pelo líder afro-americano Booker T. Washington, desembarca em Nova York. No Harlem, toma contato com as especificidades da questão racial nos Estados Unidos. Os negros do Sul fugiam para o Norte, deixando atrás de si o sistema aparteísta do Jim Crow, os linchamentos, a falta de direitos políticos, a servidão e a miséria. No Norte, ganhavam melhores salários nas fábricas, que agora tinham de alimentar a máquina de guerra, mas eram obrigados a viver em casas caindo aos pedaços, em bairros miseráveis, e seus filhos frequentavam escolas precárias, tanto nas instalações quanto no ensino. Os poucos que ousavam usar estratagemas para comprar residências em bairros de brancos viviam apavorados pela possibilidade de bombas racistas explodirem em suas casas ou de suas famílias serem ameaçadas na rua.

Não existia nessa época uma organização verdadeiramente negra em Nova York. As que havia eram multirraciais, dirigidas por brancos e mestiços de pele clara. Garvey começou sua pregação discursando nas esquinas do Harlem. Logo precisou ocupar espaços maiores, na medida em que crescia o público interessado em sua mensagem positiva, que falava de uma ação internacional em favor do negro. Essa reação estimulou Garvey a instalar nos Estados Unidos a sua UNIA, que se distinguia das demais organizações por ser exclusivamente negra e defender um programa ousado e radical. Categorizando a luta negra como de direitos humanos, e não somente de direitos civis, o que implicitamente estabeleceria seu caráter internacional, já em 1920 Marcus Garvey articulava a distinção fundamental assinalada por Malcolm X nos anos 60, contribuindo para elevar a luta negra a um patamar superior ao do integracionismo liberal.

Garvey compreendeu três necessidades básicas do negro em todo o mundo: a de dignidade e auto-respeito como povo unido; a de uma África independente e unida como base de força central; e a de instituições autônomas para impulsionar a vida das comunidades negras. Além disso, como nenhum outro, antes ou depois dele, Marcus Garvey percebeu a importância das comunidades negras das Américas Central e do Sul para a luta pan-africanista internacional, inspirada no lema "A África para os africanos, na própria pátria e no exterior".

Em 1920, no auge do prestígio de Garvey, a UNIA organizou a I Convenção dos Povos Africanos do Mundo, com a presença de 25 mil representantes e delegados de todos os continentes. O produto mais importante dessa Convenção foi a Declaração de Direitos dos Povos Negros do Mundo, que condenava o colonialismo, afirmava o "direito inerente do negro de governar a África", instituía o vermelho, o preto e o verde como as cores simbólicas do pan-africanismo, e exigia o fim dos linchamentos e da discriminação racial nos países da diáspora africana, bem como o ensino da História Africana nas escolas públicas.

A independência econômica era outro fator enfatizado no programa da UNIA. Garvey exortava seus seguidores a "comprar de negros", a preferir negociantes de sua própria raça. Atendendo o apelo de Booker T. Washington à auto-suficiência, a UNIA iniciou diversos projetos na área empresarial, incluindo a Corporação de Fábricas Negras, destinada a ajudar empresários da comunidade. O que é mais importante, Garvey fundou a Black Star Steamship Line, para funcionar como laço comercial e espiritual entre os negros de todos os lugares que seus navios alcançassem. Para surpresa de seus críticos, entre 1919 e 1925 Garvey juntou dinheiro suficiente para adquirir quatro navios e estabelecer ligações comerciais com o Caribe.

Embora os navios da Black Star Line transportassem tanto carga quanto passageiros, o objetivo não era um retorno físico de todos os negros à África, que ele sabia ser impossível, mas antes um retorno de caráter simbólico e espiritual. Garvey acreditava, contudo, ser dever dos descendentes de africanos contribuir, com seu trabalho, conhecimento e tecnologia, para o fortalecimento do Continente-Mãe, tendo em vista uma futura derrubada de fronteiras e a criação de uma nação unificada. Nesse sentido, chegou a estabelecer negociações com o Governo da Libéria. 

Se granjearam uma legião de seguidores, as ideias de Garvey também o fizeram colecionar desafetos, entre brancos e negros, à direita e à esquerda do espectro político. Creio não ser preciso enfatizar o perigo que ele representava para o establishment, com suas ideias de autonomia, dignidade e auto-respeito. Problemas com a administração da Black Star Line acabaram fornecendo o pretexto para que o FBI o prendesse, em 1923, sob falsas acusações, o que causou uma gigantesca passeata de protesto, que reuniu 150 mil pessoas, de várias nacionalidades, nas ruas do Harlem. Deportado para a Jamaica em 1927, Garvey foi recebido pelo povo de Kingston, a capital, como um verdadeiro chefe de estado - mas como uma ameaça pela elite, branca e negra. Essa oposição, materializada sob a forma de dificuldades jurídicas, não o impediu de se eleger, na capital, para um cargo correspondente ao de vereador, nem de publicar um novo jornal, The New Jamaican (O Novo Jamaicano).

Em 1935, ano em que a Itália de Mussolini invade a Etiópia, então a única nação independente da África, provocando um acirramento das discussões sobre colonialismo e racismo, Garvey retorna à Inglaterra, onde passará seus últimos anos. Seu propósito era cobrar diretamente do Império Britânico a redenção do Continente Africano. Os ingleses não se preocuparam muito. O Império vivia seu último período de esplendor, dominação e arrogância. Não estava, assim, inclinado a dar ouvidos a esse súdito da Coroa que agia como um cidadão, exigindo os direitos básicos da cidadania. Era também a época da Grande Depressão, cujas consequências se abatiam com maior impacto sobre os descendentes de africanos. Garvey viveu seus últimos anos na pobreza, embora sem perder o orgulho de maroon que o projetara mundialmente nas décadas precedentes. Em janeiro de 1940, um ataque de paralisia o pôs de cama, e alguns jornais publicaram que ele havia morrido na miséria. Cartas e telegramas choveram sobre seu escritório. A secretária evitava que essa correspondência chegasse a suas mãos, mas ele acabou tendo acesso a ela. As manchetes falando de sua morte causaram-lhe um choque do qual não se recuperou, vindo a falecer no dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorridos 57 anos de sua morte, sua mensagem ao mundo continua válida:

Ó África, acorda

A aurora está chegando

Não mais és maldita

Ó bondosa Terra-Mãe 

De longe teus filhos e filhas

Se dirigem de volta a ti

Sobre as águas ressoam seus gritos

De que a África será livre.

A filosofia de Garvey não é perfeita, nem fornece uma base adequada para a moderna teoria e prática da luta africana. Em consequência, é fácil e legítimo levantar críticas construtivas às suas ideias e ao seu movimento. Mas não se pode negar o legado que ele deixou como fundamento essencial à organização política do negro. Seu espírito continua vivo, apesar dos incansáveis esforços de seus adversários em destruí-lo. Em seu livro The Black Jacobins (Os jacobinos negros), o intelectual antilhano C.L.R. James - que em vida foi meu amigo e apoiou as reivindicações do Movimento Negro brasileiro ao VI Congresso Pan-Africano, realizado em 1974 na Tanzânia - observa que dois caribenhos, "usando a tinta da Negritude, inscreveram seus nomes de maneira indelével na história de nosso tempo". James está se referindo a Aimé Césaire e Marcus Garvey. Para ele, Garvey está na vanguarda do grupo de negros radicais do século XX cujas ideias e programas ainda reverberam nos movimentos de libertação de nossos dias. Isso se deve, em grande medida, ao trabalho incansável daquela que por décadas o acompanhou na luta e que, depois de sua morte, dedicou a existência à preservação de sua memória e à divulgação de suas ideias. Estou falando de sua viúva, Amy Jacques Garvey, por quem tive a honra de ser recebido em minha passagem pela Jamaica, em 1973. 

O garveísmo inspirou muitos líderes africanos, como o ganês Kwame Nkrumah, apóstolo do pan-africanismo, bem como a jovem liderança que, nos anos 60, faria avançar a um ponto sem precedentes a luta dos afro-americanos. Sua preocupação com a auto-imagem dos negros, com o valor do ensino da História Africana, com a unidade dos povos da África e da diáspora, mas sobretudo sua disposição de homem simples e prático, capaz de traduzir para as massas negras despossuídas a mensagem do pan-africanismo, e de tomar medidas práticas para concretizá-la - tudo isso fez de Marcus Garvey um homem que merece a admiração e o respeito, não apenas dos africanos e seus descendentes, mas de todos aqueles comprometidos de coração com a mudança efetiva das relações sociais e raciais.

Axé, Marcus Garvey!

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/206794

 


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Modibo Keita: Discurso do 1º de maio (1967) como presidente do Mali

 Um discurso de Modibo Keita, Presidente do Mali, contido na rubrica geral de um artigo intitulado "Trabalhadores malianos comemoram com entusiasmo o primeiro de maio de 1967" no órgão de língua francesa da União Sudanesa-RDA. L'Sssor Hebdomadaire (The Weekly Progress), Bamako, Vol 9, No 405, 2 May 1967, pp 4, 5.

 Discurso parte da seleção trazida por Fuca, Insurreição CGPP: 

Palavras de Independência da África II: Nkrumah, Olympio, Keita e Kaunda. (Pdf aqui) ou no link: https://drive.google.com/file/d/1It8Mjb-riPZAuG7gDUOzu15QJ23GJ_Oz/view?usp=sharing

Como em todos os anos, a liderança nacional do partido e do governo se junta através de mim nas festividades do primeiro de maio, que é um grande dia para os trabalhadores.

Este dia se comemora uma importante vitória na luta, muitas vezes mortal, da classe trabalhadora internacional em alcançar maior bem-estar em um sistema de produção do qual essa classe é o fator determinante. É tanto uma luta econômica quanto política, porque a classe trabalhadora compreendeu muito cedo que para se libertar da exploração depende de certas pré-condições políticas, cuja realização envolve todo o sistema social.

Em setembro de 1960, através de nossa escolha de soberania total e completa, que por si só foi um ato de verdadeira revolução, também escolhemos livremente o caminho socialista para o desenvolvimento após uma análise objetiva das condições reais de nosso país.

Já dissemos que nosso país, em razão de sua posição no continente, longe dos portos e isolado dos mercados mundiais, não ofereceu incentivo ao investimento privado sob o regime colonial.

Em condições como essa, deve ficar claro para qualquer pessoa que a maior despesa e o maior esforço no desenvolvimento de nosso país devam obrigatoriamente deixar ao Estado.

Além disso, era impensável, devido às condições sob as quais nossa batalha pela independência nacional foi travada, uma batalha cujo sucesso dependia em grande parte do espírito indomável de luta das massas, sob a liderança dos trabalhadores informados das cidades, que nosso Partido deveria seguir um caminho diferente para o desenvolvimento, cujo único objetivo seria colocar a riqueza principal da nação à disposição de toda a comunidade nacional.

Encaramos qualquer outra escolha simplesmente como traição, que teria enganado as massas de nosso povo em uma vitória que nunca poderia ter sido conquistada sem sua participação decisiva.

E assim, hoje, como sempre, a liderança nacional do Partido continua acreditando que apenas o socialismo, que significa a nacionalização dos principais meios de produção e planejamento, é a maneira razoável e justa capaz de tirar nosso país de seu estado de subdesenvolvimento.

Mas não é fácil construir o socialismo, como já descobrimos.

Ontem, na fase inicial da batalha que tivemos que lutar, e na qual a grande maioria dos trabalhadores desempenhou um papel vital, o problema era ganhar nossa liberdade, destruir um sistema. Hoje, porém, o problema é construir um Estado, uma nova nação, recusando-se a aceitar os padrões simples de submissão, ou seja, procurar encontrar o caminho próprio e original, o caminho certo para nós, o caminho que melhor se adapte às condições objetivas de nosso país.

O jogo é extremamente difícil e extremamente delicado.

Gostaria de lembrar aqui a todos os trabalhadores que, assim como antes, quando estávamos lutando contra a opressão colonial, é seu trabalho dar o exemplo de devoção e altruísmo nesta nova fase da nossa luta, que podemos e devemos vencer, desde que não esqueçamos as condições para o sucesso em uma batalha política.

Antes de tudo, e aqui estou falando para todos os quadros do Partido, nunca devemos esquecer que a primeira condição para vencer uma batalha política é o apoio total das massas ou lealdade da maioria, se não de todo o nosso povo, por nossa política, por nossos objetivos e pelos meios que escolhemos para alcançá-los.

Agora, temos vinte anos de experiência para mostrar que o povo do Mali nunca nos negou seu apoio e confiança.

Nosso trabalho, então, e o que nunca devemos esquecer ou negligenciar, é procurar e encontrar novamente o caminho das massas, permanecer solidamente juntos e explicar-lhes repetidamente nossos problemas e as soluções escolhidas pelo Partido como um todo. Esse deve ser o ponto principal de nossa atividade na situação atual. Se não arcamos com isso, outros que não têm as mesmas razões que a nossa, de se aproximar às políticas do nosso Partido, assumirão o nosso lugar - e, obviamente, eles farão isso à maneira deles.

Devemos estar cientes de outro fato fundamental: desde 1960, os problemas de construção econômica que o país enfrenta se tornam cada vez mais difíceis, cada vez mais complicados. Como consequência disso, nosso Partido precisa crescer e seus quadros devem ampliar seus conhecimentos para assumir novas responsabilidades. É óbvio que, para explicar, convencer e mobilizar o povo, precisamos primeiro nos conhecer e entender os modos de liderança de um Estado. E isso, por sua vez, é um trabalho que está rapidamente se tornando cada vez mais difícil e complexo.

Já sabemos que, à medida que avançamos na aplicação de nossa política de desenvolvimento socialista, todo tipo de dificuldade é encontrada, o que deixa as massas mais desconcertadas com os problemas econômicos. Sob tais condições, devemos estar prontos para os questionamentos que irão nos fazer, porque não importa para onde se vai, o povo precisa entender, se quisermos avançar.

Os quadros políticos e sindicais devem fornecer as respostas a essas perguntas, que nunca devem ser consideradas como suspeitas a priori.

A única maneira de os quadros serem capazes de assumir essa tarefa delicada é continuar com seus estudos intelectuais e ideológicos, para compreender cada vez mais claramente os problemas complexos de nossa construção nacional em um mundo dividido, cada vez mais conturbado e inquieto.

Devemos estimular e incentivar o diálogo no Partido e em todas as nossas organizações democráticas e populares. No entanto, é óbvio que nós, líderes políticos e administrativos que formam os quadros, não ficaremos tentados a encorajar o diálogo, mesmo que ele seja o sopro de vida para partidos únicos, se não temos respostas a oferecer e se estamos confusos diante dos problemas políticos e econômicos que nos pressionam por todos os lados.

Isso nos dá uma compreensão da perigosa tentação de substituir o método de persuasão e explicação, o único adequado às nossas políticas, por restrições, matando assim o espírito da livre discussão, ficaria claro que isso não teria proveito em um governo como o nosso.

Portanto, é dever dos trabalhadores mobilizar dentro de suas organizações trabalhistas para torná-las movimentos ativos, cientes do fato de que são os principais seguimentos interessados, pois são as pessoas que mais se beneficiam com o advento triunfante de uma economia socialista.

Eles também devem entender que cabe a eles o ônus da vigilância, para garantir que os princípios democráticos estabelecidos por nosso Partido sejam aplicados adequadamente.

Os trabalhadores também devem redobrar seus esforços no trabalho cotidiano e despertar para o fato de que nunca construiremos nosso país com preguiça, desordem e irresponsabilidade.

Em suma, é essencial que, ao fazermos nossas declarações públicas, elas devem corresponder às nossas ações cotidianas, os quadros trabalhistas e políticos em todos os lugares fornecem um exemplo de altruísmo, honestidade e devoção aos ideais daquele socialismo que prometemos construir.

Desde aquele dia, sete anos atrás, quando aderimos à soberania, que significa responsabilidade, a liderança nacional nunca traiu sua confiança nos trabalhadores e em seus líderes.

Em nossos serviços públicos, em todas as empresas e empresas estatais, grupos políticos e comitês sindicais foram criados.

A liderança nacional do Partido e do Governo apontou repetidamente o papel adequado dos órgãos desses trabalhadores em nossos serviços públicos, nossas corporações e empresas estatais, que são a base material da economia socialista que estamos construindo.

O estatuto geral que rege as empresas nacionais atribui às organizações de trabalhadores certas responsabilidades reais na administração: enquanto os órgãos do Partido e da União recebem o trabalho de motivação e controle em todos os órgãos do Estado.

Além disso, o Partido e o Governo nunca hesitaram em confiar as mais altas responsabilidades aos quadros treinados na luta sindical.

Mas devemos admitir que algumas fraquezas notáveis vieram à tona. Frequentemente, as Associações de Trabalhadores da Administração, que representam uma conquista social da maior importância, se tornaram estrelas, por assim dizer, e alguns líderes se separam dos outros trabalhadores que eles representam.

Os comitês do Partido e do sindicato, que deveriam promover uma concorrência saudável entre os trabalhadores, que deveriam criar novas relações de cooperação em nossas corporações e empresas estatais, nem sempre tiveram êxito em suas tarefas.

Além do mais, devemos repetir que a luta contra a fraude e a especulação não chegou a um fim vitorioso, porque os trabalhadores, apesar de sua maioria, não conseguiram assumir esta tarefa vital na construção de nossa economia.

Os trabalhadores ainda precisam entender que aqueles que pilharam a riqueza nacional, aqueles que, por suas práticas fraudulentas, põem em risco nosso governo socialista e suas realizações altamente importantes, devem ser rastreados impiedosamente e entregues aos órgãos policiais do Estado.

Em muitos casos, os trabalhadores simplesmente não tinham consciência política e ainda não conseguiram se livrar de certos complexos que os fazem sentir que isso seria como caguetar, e não uma demonstração de coragem cívica.

No entanto, devemos compreender que o inimigo mais danoso em nosso governo é a fraude e a especulação em nossa produção essencial.

Todo membro ativo da União Sudanesa das Repúblicas Democráticas Africanas, e principalmente os trabalhadores, devem entender que a luta contra práticas especulativas, uma fonte de inflação e de altos custos de vida, não é simplesmente o trabalho dos serviços especializados do Estado. A extensão do crime contra a nação é tão grande que exige a ajuda de todos os membros ativos para que ele chegue ao fim, com todo o rigor necessário.

Camaradas trabalhadores, Mali tem seus detratores juramentados que veem apenas nossos problemas, as falhas inerentes a qualquer empreendimento humano, que fecham os olhos para nossas realizações e nossos sucessos, embora estes estejam lá para todos verem.

E, portanto, nunca podemos voltar com muita frequência para observar as realizações do nosso Partido durante os breves sete anos desde que conquistamos nossa independência de volta.

Todos os membros ativos de nosso Partido e de nossas organizações democráticas e populares devem estar profundamente cientes do alcance e do significado dessas realizações, para estarmos mais bem armados contra os inimigos do nosso governo, cuja propaganda insidiosa deve ser combatida com os fatos que existem, palpáveis e inegáveis. Devo poupar uma enumeração dessas realizações aqui.

Obviamente, tudo isso não poderia ter sido feito sem alguns erros, alguns graves, ou sem falhas, algumas amargas.

Mas somos um partido com um longo histórico de lutas feitas de reveses e sucessos, e por isso nunca tivemos medo de encarar nossos erros de frente, e realizar nossa própria autocrítica, condição indispensável para nossos futuros saltos de progresso, e lembrar em todas as circunstâncias que nosso país não pôde ser construído com calma.

Essa política sempre exigiu um grande esforço de austeridade de todas as pessoas; ainda exige sacrifícios que o Estado deve distribuir de maneira justa entre o povo, de acordo com a capacidade de cada um de contribuir.

Aqui, novamente, os trabalhadores, a maioria dos quais são pessoas privilegiadas em comparação com os camponeses, devem dar o exemplo de altruísmo, e devem se livrar de uma vez por todas da ideia ultrapassada de direitos finalmente conquistados.

Em nossa situação atual, não pode haver interesse adquirido, direito adquirido na perpetuidade, desde que nossa principal preocupação seja economizar para que possamos investir e lançar as bases para o avanço econômico de nosso país.

Em suma, deve ficar claro a todos os trabalhadores que os salários em qualquer Estado moderno só pode ser uma função do volume total de produção, que se resume finalmente às possibilidades econômicas da nação.

Todos nós, em nossos escritórios, nossas lojas e nossos campos, devemos perceber que é sendo diligente em nosso trabalho, e aumentando nossa produtividade, que aumentaremos nossa renda nacional, e, assim, permitir ao Estado pagar mais aos trabalhadores e elevar seus padrões de vida, que é a aspiração natural de qualquer estado socialista.

Desde 1966, alguns grandes investimentos foram feitos, com a ajuda de auxilio externo e os enormes sacrifícios que fizemos. Atualmente, o Estado do Mali possui uma quantidade muito considerável de capital, cuja administração adequada deve permitir que nossa economia gere o impulso e a expansão necessários para resolver nossos problemas financeiros.

A consecução desses objetivos pressupõe uma redução no custo de produção e uma alta taxa de retorno em todos os setores da economia, graças à competência e consciência que os trabalhadores demonstram ao motivar as unidades em que atuam. O principal motor do desenvolvimento econômico é o homem tecnicamente qualificado e politicamente consciente, que deve sempre procurar ampliar seu conhecimento técnico e sua formação cultural geral.

O grau de consciência política pode ser medido por certas atitudes que podem ser vistas todos os dias no comportamento do trabalhador em serviço: o respeito pelo bem geral e pelo bem público, a lealdade à empresa, demonstrada não apenas pela pontualidade, mas também por seu trabalho duro e constante durante o horário de trabalho.

Neste momento, a República do Mali precisa de motoristas que mantenham seus veículos adequadamente e tenham sempre o cuidado de poupar as despesas do Estado que devem sair de nossas reservas de moeda. Precisamos de trabalhadores que evitem todo desperdício de material e toda deterioração de material em nossas fábricas. Precisamos almoxarifes que vigiem atentamente os estoques confiados a eles.

Se não conseguirmos mais homens como esses em nossas fábricas e nossos serviços, nossa experiência será irrevogavelmente comprometida pela mediocridade e descuido dos homens que devem conduzi-la. Todo trabalhador deve entender que seu destino está ligado organicamente ao de todos os setores da economia.

Falando novamente sobre uma concorrência saudável, um bom método acaba de ser colocado em prática no estabelecimento do título de "trabalhador de vanguarda", como recompensa para os trabalhadores que desinteressadamente fazem seus trabalhos, tornando-os um exemplo para seus companheiros. Por outro lado, devemos erradicar o efeito nocivo dos trabalhadores incompetentes e descuidados. Repito que os responsáveis por nossos serviços públicos e empresas não devem hesitar em tomar as mais severas sanções contra esses homens.

Camaradas, sempre dissemos que a independência, para nós, não é um fim em si, mas apenas um meio de libertar nosso país da penúria econômica.

Aqueles que tiveram a coragem política de dizer não à escravidão e assumir sua independência diante de ameaças e intimidações não podem vacilar em coragem quando chega a hora de enfrentar todas as consequências do ato. Ao lutar por nossa soberania, nossa ambição era e é sair da armadilha do subdesenvolvimento – e poder explorar adequadamente a grande riqueza de nosso vasto e belo país.

Essa ainda é a mesma batalha. Eu já disse muitas vezes que estamos destinados a ter sucesso, destinados a vencer a batalha pelo futuro do nosso país, e também porque não há dúvida de que o resto da África achará impossível permanecer indiferente à experiência do Mali.

Mais uma vez, a ação dos trabalhadores em seus sindicatos, nos órgãos do Partido e de outras organizações populares, desempenhará um papel preponderante, se não determinante, no sucesso desse poderoso trabalho de renovação nacional.

Irrevogavelmente, votamos em favor do socialismo, porque acreditamos que esse é o caminho do desenvolvimento que responde às verdadeiras necessidades e interesses de nossa nação.

O capitalismo, apesar dos prodigiosos avanços que fez para a humanidade nas áreas da ciência e das técnicas, não conseguiu resolver o problema social. Falhou em abolir a pobreza entre as grandes massas populares e ainda mantém a grande maioria das pessoas rigidamente excluídas das riquezas e do prazer de aprender.

Foi dito que "as civilizações morrem por causa de sua estreiteza". Quanto a nós, finalmente escolhemos um regime econômico baseado na propriedade coletiva das grandes riquezas de nosso país, para que nenhuma minoria monopolize os frutos do trabalho da sociedade, e para que uma divisão justa do produto do trabalho possa estar subjacente à nossa organização social.

É assim que nos apresentamos diante de todos os nossos parceiros, que devem nos aceitar como somos.

A contabilidade da ação do nosso Partido está lá e é positiva, e claramente visível para todos aqueles que não são impedidos pelo ódio e pela má fé de vê-la.

Foi antes de tudo nossa soberania inquestionável que nos deu liberdade, a joia mais brilhante de um povo.

São nossas conquistas nos domínios econômico e social que são a admiração de todos que vêm visitar nosso país sem ideias pré-concebidas.

Mas o trabalho ainda não está concluído, e o caminho a seguir é longo e difícil.

A liderança nacional do Partido está convencida de que a tarefa de renovação nacional à qual nos comprometemos não está além dos poderes de nosso povo, que escolheram irrevogavelmente a liberdade e um caminho de desenvolvimento que levará a uma sociedade mais justa e equitativa.

Depende do grau de conscientização dos trabalhadores, sua mobilização contínua para proteger as realizações de nossa revolução, e a pureza da orientação de nosso Partido, se nossas ambições e aspirações em direção a um maior bem-estar na justiça social serão realizadas em breve.

O empreendimento, camaradas trabalhadores, é difícil, mas é também inspirador. Contudo, a evidência não é suficiente para mostrar que a dificuldade nunca afastou o povo maliano que se apresenta com alternativas heroicas quando se depara com questões que envolvem sua liberdade?

Agora digo: tenham coragem e com a garantia de que o sucesso está no fim do caminho, desde que todos ajudem a preservar a unidade política que nós trouxemos em nosso país, eu terminarei com o grito, viva o Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Mali. Viva a solidariedade internacional dos trabalhadores em todos os continentes. Viva a União Sudanesa das Repúblicas Democráticas Africanas!




quarta-feira, 15 de julho de 2020

Kwame Nkrumah: Discurso na OUA (1963) - A África deve unir-se.

O discurso icônico de Kwame Nkrumah, presidente da independência de Gana, na cerimônia inaugural da Conferência da OUA em Addis Abeba, Etiópia, em 1963.

 Discurso parte da seleção trazida por Fuca, Insurreição CGPP: 

Palavras de Independência da África II: Nkrumah, Olympio, Keita e Kaunda. (Pdf aqui) ou no link: https://drive.google.com/file/d/1It8Mjb-riPZAuG7gDUOzu15QJ23GJ_Oz/view?usp=sharing


Excelências, colegas, irmãos e amigos.

No primeiro encontro de Chefes de Estado africanos, ao qual tive a honra de ser anfitrião, havia apenas representantes de oito Estados independentes. Hoje, cinco anos depois, nos encontramos com representantes de nada menos do que trinta e dois Estados, os convidados de Sua Majestade Imperial, Haile Selassie, o primeiro, e o Governo e o povo da Etiópia. À Sua Majestade Imperial, desejo expressar, em nome do Governo e do povo de Gana, meu profundo agradecimento pela recepção cordial e hospitalidade generosa.

O aumento de nosso número neste curto espaço de tempo é um testemunho aberto da onda indomável e irresistível de nossos povos pela independência. É também um sinal da velocidade revolucionária dos eventos mundiais na segunda metade deste século. Na tarefa que temos diante de unificar nosso continente, devemos entrar nesse ritmo ou ficaremos para trás. Essa tarefa não pode ser deixada para outra época além da nossa. Ficar para trás neste momento sem precedentes de ações e eventos em nosso tempo será cair no fracasso e na nossa própria ruína.

Um continente inteiro nos impôs um mandato para estabelecer os alicerces de nossa União nesta Conferência. É nossa responsabilidade executar este mandato, criando aqui e agora a fórmula sobre a qual a superestrutura necessária pode ser erguida.

Neste continente, não se demorou muito para descobrir que a luta contra o colonialismo não termina com a conquista da independência nacional. A independência é apenas o prelúdio de uma luta nova e mais envolvida pelo direito de conduzir nossos próprios assuntos econômicos e sociais; construir nossa sociedade de acordo com nossas aspirações, sem impedimentos dos controles humilhantes e esmagadores das interferências neocolonialistas.

Desde o início, somos ameaçados pela frustração, onde a mudança rápida é imperativa; e pela instabilidade, onde o esforço continuado e a ordem são indispensáveis.

Nenhuma ação esporádica ou resolução piedosa pode resolver nossos problemas atuais. Nada será útil, exceto a ação conjunta de uma África unida. Já alcançamos o estágio em que devemos nos unir para não cairmos na mesma condição que fez da América Latina a presa relutante e aflita do imperialismo, após um século e meio de independência política.

Como continente, emergimos para a independência em uma era diferente, com o imperialismo cada vez mais forte, mais cruel e experiente, e mais perigoso em suas associações internacionais. Nosso avanço econômico exige o fim da dominação colonialista e neocolonialista na África.

Assim como entendemos que a formação de nossos destinos nacionais exigia de cada um de nós nossa independência política e direcionando toda a nossa força a essa conquista, no entanto, devemos reconhecer que nossa independência econômica reside em nossa união africana e requer a mesma concentração da conquista política.

A unidade do nosso continente, não menos que a independência de cada país, será adiada, ou até perdida, se nos associarmos com o colonialismo. A unidade africana é, acima de tudo, um reino político que só pode ser conquistado por meios políticos. O desenvolvimento social e econômico da África virá apenas dentro do reino político, e não o contrário. Os Estados Unidos da América, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, foram as decisões políticas dos povos revolucionários antes de se tornarem realidades potentes de poder social e riqueza material.

Como, exceto por nossos esforços conjuntos, as partes mais ricas e ainda escravizadas de nosso continente serão libertadas da ocupação colonial e ficarão disponíveis para nós no desenvolvimento total de nosso continente? Cada passo na descolonização do nosso continente trouxe maior resistência nas áreas em que tropas coloniais estão disponíveis a favor do colonialismo.

Esse é o grande desígnio dos interesses imperialistas que sustentam o colonialismo e o neocolonialismo, e estaríamos nos enganando da maneira mais cruel se considerássemos suas ações individuais separadas e não relacionadas. Quando Portugal viola a fronteira do Senegal, quando Verwoed alocou um sétimo do orçamento da África do Sul para forças armadas e policiais, quando a França constrói como parte de sua política de defesa uma força intervencionista que pode intervir, mais especialmente na África francófona, quando Welensky fala da Rodésia do Sul se juntando à África do Sul, tudo faz parte de um padrão cuidadosamente calculado, trabalhando para um único fim: a escravização contínua de nossos irmãos ainda dependentes e um ataque à independência de nossos Estados soberanos da África.

Temos alguma outra arma contra esse projeto além da nossa unidade? Nossa unidade não é essencial para proteger nossa própria liberdade, assim como conquistar a liberdade para nossos irmãos oprimidos, os combatentes pela liberdade?

Não é somente a unidade que pode nos fundir em uma força efetiva capaz de criar nosso próprio progresso e fazer nossa valiosa contribuição para a paz mundial? Que Estado africano independente reivindicará que sua estrutura financeira e instituições bancárias serão totalmente aproveitadas para o seu desenvolvimento nacional? Quem afirmará que seus recursos materiais e energias humanas estão disponíveis para suas próprias aspirações nacionais? Quem negará uma medida substancial de decepção e desilusão em seu desenvolvimento agrícola e urbano?

Na África independente, já estamos reexperimentando a instabilidade e frustração que existiam sob o domínio colonial. Estamos aprendendo rapidamente que a independência política não é suficiente para nos livrar das consequências do domínio colonial. O movimento das massas do povo da África pela liberdade desse tipo de domínio não foi apenas uma revolta contra as condições que ele impôs.

Nosso povo nos apoiou em nossa luta pela independência porque acreditava que os governos africanos poderiam curar os males do passado de uma maneira que nunca poderia ser realizada sob o domínio colonial. Se, portanto, agora que somos independentes, permitimos que existam as mesmas condições que existiam nos dias coloniais, todo o ressentimento que derrubou o colonialismo será mobilizado contra nós.

Os recursos estão lá. Cabe a nós reuni-los no serviço ativo de nosso povo. A menos que façamos isso com nossos esforços combinados, dentro da estrutura de nosso planejamento combinado, não progrediremos no ritmo exigido pelos acontecimentos de hoje e na disposição de nosso povo. Os sintomas de nossos problemas crescerão e os próprios problemas se tornarão crônicos. Será tarde demais para a Unidade Pan-Africana nos garantir estabilidade e tranquilidade em nossos trabalhos para um continente de justiça social e bem-estar material. A menos que estabeleçamos a Unidade Africana agora, nós, que estamos sentados aqui hoje, seremos as vítimas e mártires do neocolonialismo.

Temos diversas evidências de que os imperialistas não se afastaram de nossos assuntos. Há momentos, como no Congo, em que sua interferência se manifesta. Mas geralmente é encoberta por muitas agências, que se intrometem em nossos assuntos domésticos, e fomentam dissensões dentro de nossas fronteiras criando uma atmosfera de tensão e instabilidade política. Enquanto não acabarmos com as causas profundas do descontentamento, prestamos ajuda a essas forças neocolonialistas e nos tornaremos nossos próprios executores. Não podemos ignorar os ensinamentos da história.

Nosso continente é provavelmente o mais rico do mundo em minerais e materiais primários industriais e agrícolas. Somente no Congo, as firmas ocidentais exportaram cobre, borracha, algodão e outros bens no valor de 2, 773 bilhões de dólares em dez anos, entre 1945 e 1955, e da África do Sul, as empresas de mineração de ouro ocidentais obtiveram lucro, nos quatro anos, entre 1947 e 1951, de 814 bilhões de dólares.

Nosso continente certamente excede todos os outros em potencial de energia hidrelétrica, que alguns especialistas avaliam sendo 42% do total do mundo. Que necessidade existe para continuarmos abastecendo (hewers) as áreas industrializadas do mundo?

Dizem, é claro, que não temos capital, habilidade industrial, comunicação ou mercado interno, e que nem sequer podemos concordar entre nós sobre a melhor forma de utilizar nossos recursos.

No entanto, todas as bolsas de valores do mundo estão preocupadas com os minérios de ouro, diamantes, urânio, platina, cobre e ferro da África. Nosso capital flui em correntes para irrigar todo o sistema da economia ocidental. Acredita-se que 52% do ouro em Fort Knox neste momento, onde os EUA armazenam seu ouro, tenham se originado em nossas Costas. A África fornece mais de 60% do ouro do mundo. Grande parte do urânio para energia nuclear, de cobre para eletrônica, de titânio para projéteis supersônicos, de ferro e aço para indústrias pesadas, de outros minerais e matérias-primas para indústrias leves - o poder econômico básico das potências estrangeiras - vem do nosso continente.

Especialistas estimaram que somente a bacia do Congo pode produzir alimentos suficientes para satisfazer as necessidades de quase metade da população de todo o mundo.

Durante séculos, a África tem sido a vaca leiteira do mundo ocidental. Foi o nosso continente que ajudou o mundo ocidental a construir sua riqueza acumulada.

É verdade que agora estamos rejeitando o jugo do colonialismo o mais rápido possível, mas nosso sucesso nessa direção é igualado por um intenso esforço por parte do imperialismo de continuar a exploração de nossos recursos, criando divisões entre nós.

Quando as colônias do continente americano procuraram se libertar do imperialismo no século XVIII, não havia ameaça de neocolonialismo no sentido em que o conhecemos hoje. Os Estados americanos estavam, portanto, livres para formar e moldar a unidade mais adequada às suas necessidades e estruturar uma constituição para manter sua unidade sem qualquer forma de interferência de fontes externas. Contudo, estamos lidando com intervenções externas, então precisamos nos juntar na unidade africana que, por si só, pode nos salvar das garras do neocolonialismo.

Nós temos os recursos. Foi o colonialismo em primeiro lugar que nos impediu de acumular o capital efetivo; mas nós mesmos falhamos em fazer pleno uso de nosso poder na independência e mobilizar nossos recursos para decolar num desenvolvimento econômico e social completo e mais eficaz. Estamos muito ocupados cuidando de nossos Estados separados para entender completamente a necessidade básica de nossa união, enraizada em um objetivo comum, em um planejamento comum e em um esforço comum. Uma união que ignora essas necessidades fundamentais não passa de uma vergonha. É apenas unindo nossa capacidade produtiva e a produção resultante que podemos acumular capital. E assim que começarmos, o impulso aumentará. Com o capital controlado por nossos próprios bancos, atrelado ao nosso verdadeiro desenvolvimento industrial e agrícola, faremos o nosso avanço. Acumularemos máquinas e estabeleceremos siderúrgicas, fundições e fábricas de ferro; vincularemos os vários Estados do nosso continente com comunicações; surpreenderemos o mundo com nossa energia hidrelétrica; drenaremos brejos e pântanos, limparemos áreas infestadas, alimentaremos os subnutridos e livraremos nosso povo de parasitas e doenças. Está dentro da possibilidade da ciência e da tecnologia fazer até o Saara florescer em um vasto campo com vegetação verdejante para desenvolvimentos agrícolas e industriais. Utilizaremos o rádio, a televisão e os grandes jornais impressos para elevar nosso povo dos retrocessos sombrios do analfabetismo.

Uma década atrás, essas seriam palavras visionárias, as fantasias de um sonhador ocioso. Mas esta é a era em que a ciência transcendeu os limites do mundo material e a tecnologia invadiu os silêncios da natureza. Tempo e espaço foram reduzidos a abstrações sem importância. Máquinas gigantes fazem estradas, limpam florestas, escavam barragens; caminhões e aviões gigantes distribuem mercadorias; enormes laboratórios fabricam remédios; pesquisas geológicas complexas são feitas; poderosas centrais elétricas são construídas; colossais fábricas erguidas - tudo a uma velocidade incrível. O mundo não está mais se movendo pelos caminhos do mato ou pelos camelos e burros.

Não podemos nos dar ao luxo de acompanhar nossas necessidades, nosso desenvolvimento, nossa segurança ao andar de camelos e burros. Não podemos nos dar ao luxo de não derrubar os arbustos de atitudes obsoletas que obstruem nossa estrada para o caminho moderno da conquista recente e mais ampla da independência econômica e para elevar a vida de nosso povo ao mais alto nível.

Mesmo para outros continentes sem recursos da África, esta é a era que vê o fim das necessidades humanas. Para nós, é uma simples questão de apreender com certeza nossa herança usando o poder político da unidade. Tudo o que precisamos fazer é desenvolver com a nossa força unida os enormes recursos do nosso continente. Uma África unida fornecerá um campo estável de investimento estrangeiro, o que ajudará enquanto não se comportar de maneira adversa aos nossos interesses africanos. Pois esse investimento agregaria suas empresas ao desenvolvimento da economia nacional, ao emprego e ao treinamento de nosso povo e será bem-vindo à África. Ao lidar com uma África unida, os investidores não precisarão mais pesar com preocupação os riscos de negociar com os governos de um período que pode não existir no período seguinte. Em vez de negociar com tantos Estados separados ao mesmo tempo, eles estarão lidando com um governo unido que segue uma política continental harmonizada.

Qual é a alternativa para isso? Se vacilarmos nesta fase, e deixarmos o tempo passar para o neocolonialismo consolidar sua posição neste continente, qual será o destino de nosso povo que depositou sua confiança em nós? Qual será o destino dos nossos combatentes pela liberdade? Qual será o destino de outros territórios africanos que ainda não estão livres?

A menos que possamos estabelecer grandes complexos industriais na África - o que só podemos fazer com a África unida - devemos ter nosso campesinato à mercê dos mercados estrangeiros e enfrentar a mesma inquietação que derrubou os colonialistas? Que utilidade para o agricultor tem educação e mecanização, que utilidade tem mesmo o capital para o desenvolvimento; a menos que possamos garantir para ele um preço justo e um mercado pronto? O que os camponeses, trabalhadores e agricultores ganharam com a independência política, a não ser que possamos garantir a eles um retorno justo pelo seu trabalho e um padrão de vida mais alto?

A menos que possamos estabelecer grandes complexos industriais na África, o que o trabalhador urbano, e todos aqueles camponeses em terras superlotadas, têm ganhado com a independência política? Se eles permanecerem desempregados ou em ocupação não qualificada, o que lhes valerá as melhores instalações para educação, treinamento técnico, energia e ambição que a independência nos permite proporcionar?

Quase não existe Estado Africano sem problemas de fronteira com seus vizinhos adjacentes. Seria inútil enumerá-los aqui, porque eles já são familiares a todos nós. Mas deixe-me sugerir a Vossa Excelência que este resquício fatal do colonialismo nos levará à guerra um contra o outro à medida que nosso desenvolvimento industrial não planejado e descoordenado se expande, assim como aconteceu na Europa. A menos que consigamos deter o perigo através da compreensão mútua sobre questões fundamentais e através da Unidade Africana, que tornarão obsoletas e supérfluas as fronteiras existentes, teremos lutado em vão pela independência. Somente a Unidade Africana pode curar essa ferida inflamada de disputas de fronteiras entre nossos vários Estados. Excelências, o remédio para esses males está pronto em nossas mãos. Encara-nos de frente em todas as barreiras alfandegárias, grita para nós cada coração africano. Ao criar uma verdadeira união política de todos os Estados independentes da África, podemos enfrentar, esperançosamente, todas as emergências, todos os inimigos e todas as complexidades. Isso não é porque somos uma raça de super-homem, mas porque emergimos na era da ciência e tecnologia em que pobreza, ignorância e doença não são mais os mestres, mas os inimigos da humanidade. Surgimos na era do planejamento socializado, quando a produção e a distribuição não são governadas pelo caos, pela ganância e pelo interesse próprio, mas pelas necessidades sociais. Juntamente com o resto da humanidade, despertamos dos sonhos utópicos para buscar projetos práticos de progresso e justiça social.

Acima de tudo, emergimos em um momento em que uma massa de terra continental como a África, com sua população próxima de trezentos milhões, é necessária para a capitalização econômica e rentabilidade dos métodos e técnicas produtivas modernas. Nenhum de nós, trabalhando isoladamente ou individualmente, pode alcançar com êxito o desenvolvimento pleno. Certamente, nessas circunstâncias, não será possível prestar assistência adequada aos Estados irmãos que tentam, nas condições mais difíceis, melhorar suas estruturas econômicas e sociais. Somente uma África unida que funcione sob um governo da União pode mobilizar vigorosamente os recursos materiais e morais de nossos países separados e aplicá-los de maneira eficiente e energética para trazer uma rápida mudança nas condições de nosso povo.

Se não abordarmos os problemas na África com uma frente comum e um propósito comum, ficaremos discutindo entre nós até sermos colonizados novamente e nos tornarmos portagens de um colonialismo muito maior do que sofremos até então.

Devemos nos unir. Sem necessariamente sacrificar nossas soberanias, grandes ou pequenas, podemos, aqui e agora, forjar uma união política baseada na Defesa, Negócios Estrangeiros e Diplomacia, uma Cidadania comum, uma moeda africana, uma Zona Monetária Africana e um Banco Central Africano. Devemos nos unir para alcançar a libertação total do nosso continente. Precisamos de um sistema de Defesa comum com um Alto Comando Africano para garantir a estabilidade e a segurança da África.

Fomos encarregados dessa tarefa sagrada por nosso próprio povo, e não podemos trair sua confiança ao falhar com eles. Iremos zombar das esperanças de nosso povo se mostrarmos a menor hesitação ou atraso ao abordar realisticamente esta questão da Unidade Africana.

O fornecimento de armas ou outra ajuda militar aos opressores coloniais na África deve ser considerado não apenas como auxílio à derrota dos combatentes da liberdade que lutam pela independência africana, mas como um ato de agressão contra toda a África. Como podemos enfrentar essa agressão, exceto pelo peso total de nossa força unida?

Muitos de nós transformamos o não-alinhamento em um artigo de fé neste continente. Não temos desejo nem intenção de sermos atraídos pela Guerra Fria. Mas com a atual fraqueza e insegurança de nossos Estados no contexto da política mundial, a busca por bases de influência traz a Guerra Fria para a África com seu perigo de guerra nuclear. A África deve ser declarada uma zona livre de armas nucleares e das exigências da Guerra Fria. Mas não podemos tornar essa demanda obrigatória, a menos que a sustentemos com uma posição de força que pode ser encontrada apenas em nossa unidade.

Em vez disso, muitos Estados africanos independentes estão envolvidos em pactos militares com as antigas potências coloniais. A estabilidade e a segurança que esses dispositivos procuram estabelecer são ilusórias, pois as potências metropolitanas aproveitam a oportunidade para apoiar seus controles neocolonialistas por envolvimento militar direto. Vimos como os neocolonialistas usam suas bases para entrincheirar-se e atacar Estados independentes vizinhos. Tais bases são centros de tensão e potenciais pontos dos perigos de conflitos militares. Eles ameaçam a segurança não apenas do país em que estão localizados, mas também dos países vizinhos. Como podemos esperar tornar a África uma zona livre de armas nucleares e independente da pressão da Guerra Fria com esse envolvimento militar em nosso continente? Apenas contrabalanceando uma força de defesa comum com uma política de defesa comum baseada no nosso desejo de uma África livre da ordem estrangeira ou da presença militar e nuclear. Isso exigirá um Alto Comando Africano abrangente, especialmente se os pactos militares com os imperialistas forem renunciados. É a única maneira de romper esses vínculos diretos entre o colonialismo do passado e o neocolonialismo que nos interrompe hoje.

Não queremos nem visualizamos um Alto Comando Africano nos termos da política de poder que agora governa grande parte do mundo, mas como um instrumento essencial e indispensável para garantir a estabilidade e a segurança em África.

Precisamos de um planejamento econômico unificado para a África. Até que o poder econômico da África esteja em nossas mãos, as massas não podem ter nenhuma preocupação real e nenhum interesse real em salvaguardar nossa segurança, em garantir a estabilidade de nossos regimes e em dobrar suas forças para o cumprimento de nossos fins. Com nossos recursos, energias e talentos juntos, temos os meios, assim que demonstrarmos vontade, de transformar as estruturas econômicas de nossos Estados individuais da pobreza para a riqueza, da desigualdade para a satisfação das necessidades populares. Somente de forma continental poderemos planejar a utilização adequada de todos os nossos recursos para o pleno desenvolvimento de nosso continente.

De que outra forma manteremos nosso próprio capital para o nosso desenvolvimento? De que outra forma vamos estabelecer um mercado interno para nossas próprias indústrias? Pertencendo a diferentes zonas econômicas, como quebraremos as barreiras cambiais e comerciais entre os Estados africanos, e como os economicamente mais fortes entre nós poderão ajudar os Estados mais fracos e menos desenvolvidos?

É importante lembrar que o financiamento independente e o desenvolvimento independente não podem ocorrer sem uma moeda independente. Um sistema monetário apoiado pelos recursos de um Estado estrangeiro está ipso facto sujeito aos acordos comerciais e financeiros desse país estrangeiro.

De modo que temos tantas barreiras alfandegárias e cambiais como resultado de estarmos sujeitos aos diferentes sistemas monetários de potências estrangeiras, isso serviu para aumentar a diferença entre nós na África. Como, por exemplo, comunidades e famílias relacionadas podem negociar e apoiar-se mutuamente, se se encontram divididas por fronteiras nacionais e restrições de moeda? A única alternativa aberta a eles nessas circunstâncias é usar moeda contrabandeada e enriquecer criminosos e trapaceiros nacionais e internacionais que atacam nossas dificuldades financeiras e econômicas.

Atualmente, nenhum Estado africano independente tem a chance de seguir um curso independente de desenvolvimento econômico, e muitos de nós que tentamos fazer isso estamos quase arruinados ou tivemos que voltar ao rebanho dos antigos governantes coloniais. Esta posição não será alterada, a menos que tenhamos uma política unificada trabalhando no nível continental. O primeiro passo para nossa economia coesa seria uma zona monetária unificada, com, inicialmente, uma paridade comum acordada para nossas moedas. Para facilitar esse arranjo, Gana mudaria para um sistema decimal. Quando descobrimos que o arranjo de uma paridade comum fixa está funcionando com êxito, parece não haver razão para não instituir uma moeda comum e um único banco de emissão. Com uma moeda comum de um banco de emissão comum, poderemos caminhar com nossos próprios pés porque esse arranjo seria totalmente respaldado pelos produtos nacionais combinados dos Estados que compõem a união. Afinal, o poder de compra do dinheiro depende da produtividade e da exploração produtiva dos recursos naturais, humanos e físicos da nação.

Enquanto asseguramos nossa estabilidade por um sistema de defesa comum, e nossa economia está sendo orientada além do controle estrangeiro por uma moeda comum, Zona Monetária e Banco Central de Emissão, podemos apurar os recursos de nosso continente. Podemos começar a verificar se, na realidade, somos os mais ricos, ou não, como fomos ensinados a acreditar, os mais pobres entre os continentes. Podemos determinar se possuímos o maior potencial em energia hidrelétrica e se podemos aproveitá-lo e outras fontes de energia para nossas próprias indústrias. Podemos continuar planejando nossa industrialização em escala continental e construindo um mercado comum para quase trezentos milhões de pessoas.

O planejamento continental comum para o desenvolvimento industrial e agrícola da África é uma necessidade vital.

Tantas bênçãos devem fluir de nossa unidade; tantos desastres devem seguir nossa contínua desunião, que nosso fracasso em nos unir hoje não será atribuído no futuro apenas ao discurso falho e à falta de coragem, mas por nossa capitulação diante das forças do imperialismo.

A hora da história que nos trouxe a esta assembleia é uma hora revolucionária. É a hora da decisão. Pela primeira vez, o imperialismo econômico que nos ameaça é desafiado pela vontade irresistível de nosso povo.

As massas do povo da África estão clamando por união. O povo da África pede uma quebra das fronteiras que os mantem separados. Eles exigem o fim das disputas fronteiriças entre os Estados africanos irmãos - disputas que surgem das barreiras artificiais que nos dividiram. Foi o propósito do colonialismo que nos deixou com o irredentismo fronteiriço que rejeitou nossa fusão étnica e cultural.

Nosso povo clama por unidade para que não percam seu patrimônio no serviço perpétuo do neocolonialismo. Em seu fervoroso esforço pela unidade, eles entendem que apenas essa realização dará pleno significado à sua liberdade e à nossa independência africana.

É essa determinação popular que deve nos levar a uma União de Estados Africanos Independentes. Em atraso, há perigo para o nosso bem-estar, para a nossa própria existência como Estados livres. Sugeriu-se que nossa abordagem de unidade fosse gradual, que fosse feita por partes. Este ponto de vista concebe a África como uma entidade estática com problemas "congelados" que podem ser eliminados um a um e quando tudo tiver sido resolvido, podemos nos reunir e dizer: “Agora está tudo bem. Vamos nos unir”. Essa visão não leva em consideração o impacto das pressões externas. Também não toma conhecimento do perigo de que o atraso possa aprofundar nossos isolamentos e exclusividade; que pode ampliar nossas diferenças e nos separar cada vez mais na rede do neocolonialismo, para que nossa união se torne apenas uma esperança enfraquecida, e o grande projeto da redenção completa da África se perca, talvez, para sempre.

Expressa-se também que nossas dificuldades poderiam ser resolvidas simplesmente por uma maior colaboração por meio de associação cooperativa em nossas relações interterritoriais. Essa maneira de encarar nossos problemas nega uma concepção adequada de suas inter-relações e mutualidades. Nega a confiança num futuro para o progresso africano, na independência africana. Trai um senso de solução apenas na dependência contínua de fontes externas por meio de acordos bilaterais para formas econômicas e outras formas de ajuda.

O fato é que, embora estivéssemos cooperando e nos associando uns aos outros em vários campos de empreendimentos comuns, mesmo antes dos tempos coloniais, isso não nos deu a identidade continental e a força política e econômica que nos ajudariam a lidar efetivamente com os problemas complicados que hoje enfrentamos na África. No que diz respeito à ajuda externa, a África Unida estaria em uma posição mais favorável para atrair assistência de fontes estrangeiras. Há a vantagem muito mais convincente que esse acordo oferece, pois a ajuda virá de qualquer lugar para a África, porque nosso poder de barganha se tornaria infinitamente maior. Não dependeremos mais da ajuda de fontes restritas. Teremos o mundo para escolher.

O que estamos procurando na África? Estamos procurando acordos, concebidas à luz do exemplo das Nações Unidas (ONU)? Um tipo de organismo como a ONU cujas decisões são formuladas com base em resoluções que, em nossa experiência, às vezes foram ignoradas pelos Estados membros? Onde os agrupamentos são formados e as pressões se desenvolvem de acordo com o interesse do grupo em questão? Ou pretende-se que a África se transforme em uma organização perdida dos Estados, segundo o modelo da organização dos Estados americanos, em que os Estados mais fracos dentro dele podem estar à mercê dos mais fortes ou mais poderosos, política ou economicamente, ou à mercê de algumas nações ou grupos externos de nações poderosas? É este o tipo de associação que queremos para nós mesmos na África Unida da qual todos falamos com tanto sentimento e emoção?

Excelências, permita-me perguntar: este é o tipo de estrutura que desejamos para a nossa África Unida? E arranjos que no futuro poderiam permitir Gana ou Nigéria ou Sudão, Libéria, Egito ou Etiópia, por exemplo, usar a pressão que a influência política ou econômica superior dá, para ditar o fluxo e a direção do comércio de, digamos, Burundi ou Togo ou Niassalândia (Malawi) ou Moçambique?

Todos nós queremos uma África unida, unida não apenas em nosso conceito que a unidade pode denotar, mas unidos em nosso desejo comum de avançar juntos e lidar com todos os problemas que podem ser mais bem resolvidos apenas em uma base continental.

Quando o primeiro Congresso dos Estados Unidos se reuniu há muitos anos na Filadélfia, um dos delegados fez a primeira tarefa de unidade, declarando que eles haviam se encontrado em um "estado de natureza", em outras palavras, eles não estavam na Filadélfia como sendo da Virginia ou da Pensilvânia, mas simplesmente como americanos. Essa referência a si mesmos como americanos era naqueles dias uma experiência nova e estranha.

Posso me atrever a afirmar igualmente nesta ocasião, Excelências, que nos encontramos aqui hoje não como ganenses, guineenses, egípcios, argelinos, marroquinos, malianos, liberianos, congoleses ou nigerianos, mas como africanos. Os africanos uniram-se em nossa decisão de permanecer aqui até chegarmos a um acordo sobre os princípios básicos de um novo pacto de unidade entre nós, o que garante para nós e para o futuro um novo arranjo do governo continental.

Se conseguirmos estabelecer um novo conjunto de princípios como base de uma nova Carta ou Estatuto para o estabelecimento de uma Unidade Continental da África e a criação de progresso social e político para nosso povo, então, a meu ver, esta Conferência deve marcar o fim de nossos vários agrupamentos e blocos regionais. Mas se fracassarmos e deixarmos escapar essa grande e histórica oportunidade, devemos dar lugar a uma maior dissensão e divisão entre nós, pela qual o povo da África nunca nos perdoará. As forças e movimentos populares e progressistas na África nos condenarão. Estou certo, portanto, de que não devemos falhar com eles.

Já falei longamente, Excelências, porque é necessário que todos nós expliquemos não apenas um ao outro presente aqui, mas também ao nosso povo que nos confiou o destino da África. Portanto, não devemos deixar este local até que tenhamos criado ferramentas eficazes para alcançar a Unidade Africana. Para esse fim, proponho agora para sua consideração o seguinte:

Como primeiro passo, Excelências, uma Declaração de Princípios que nos una e à qual todos devemos ser fiéis e leais, e a definição dos fundamentos da unidade deve ser estabelecida. E também deve haver uma declaração formal de que todos os Estados Africanos Independentes aqui e agora concordam com o estabelecimento de uma União de Estados Africanos.

Como um segundo e urgente passo para a realização da unificação da África, um Comitê de Ministros das Relações Exteriores de toda a África será criado agora, e que antes de sairmos desta conferência, um dia deve ser fixado para que eles se encontrem.

Este Comitê deve estabelecer, em nome dos Chefes de nossos Governos, um corpo permanente de funcionários e especialistas para elaborar um mecanismo para o Governo da União da África. Este corpo de funcionários e especialistas deve ser composto por dois cérebros de cada Estado Africano Independente. As várias cartas dos agrupamentos existentes e outros documentos relevantes também podem ser apresentados aos funcionários e especialistas. Um praesidium (comitê) constituído pelo Chefe dos Governos dos Estados Africanos Independentes deve ser chamado a cumprir e adotar uma Constituição e outras recomendações que lancem o Governo da União da África.

Também devemos decidir sobre a alocação em que esse corpo de funcionários e especialistas funcionará como a nova sede ou capital do governo da União. Algum lugar central na África pode ser a sugestão mais justa em Bangui, na República Centro Africana, ou em Leopoldville, no Congo. Meus colegas podem ter outras propostas. O Comitê de Ministros das Relações Exteriores, funcionários e especialistas devem ter poderes para estabelecer:

1. Uma Comissão para formular uma Constituição para um Governo da União dos Estados Africanos;

2. Uma Comissão para elaborar um plano em todo o continente para um programa econômico e industrial unificado ou comum para a África; este plano deve incluir propostas para a criação de:

• Um mercado comum para a África

• uma moeda africana

• Zona Monetária Africana

• Banco Central Africano, e

• Sistema de Comunicação Continental;

3. Uma comissão para elaborar detalhes de uma política externa e diplomacia comuns;

4. Uma Comissão para elaborar planos para um Sistema Comum de Defesa;

5. Uma Comissão para fazer propostas para a Cidadania Africana Comum.

Essas comissões reportarão ao Comitê de Ministros das Relações Exteriores que, por sua vez, deverá submeter ao Praesidium, dentro de seis meses após esta Conferência, suas recomendações. A reunião do Praesidium em conferência na sede da União considerará e aprovará as recomendações do Comitê de Ministros das Relações Exteriores.

A fim de fornecer fundos imediatamente para o trabalho dos funcionários permanentes e especialistas da sede da União, sugiro que um Conselho especial seja criado agora para trabalhar um orçamento para isso.

Excelências, com estas etapas, eu afirmo, estaremos irrevogavelmente comprometidos com o caminho que nos levará a um governo da União da África. Somente uma África unida com direção política central pode fornecer material eficaz e apoio moral aos nossos combatentes da liberdade no sul da Rodésia, Angola, Moçambique, sudoeste da África, Bechuanalândia (Botsuana), Suazilândia, Basutolândia (Lesoto), Guiné Portuguesa, etc. e, é claro, na África do Sul.”

Fonte: https://face2faceafrica.com/article/read-kwame-nkrumahs-iconic-1963-speech-on-african-unity