quinta-feira, 26 de março de 2020

Breve Nota: Cemitério do Vivos/O Estrangeiro/ Crônica de uma Morte Anunciada


Na mera opinião de quem vos escreve, existe ainda um grande paradoxo em nossos dias. Estamos cuidando cada vez mais de nós mesmo e das pessoas ao nosso redor, ou em tempos modernos e com toda essa correria e turbilhão de informações, estamos mais egocêntricos e não nos prestamos a compreender quem está ao nosso lado?

Assim, com esse breve paragrafo, procuro indicar três livros que tratam muito da subjetividade humana, mas que podemos fazer, tranquilamente, uma leitura para a realidade coletiva da atualidade. E, além do mais, é quarentena devido à Pandemia Corona vírus (embora negada por alguns abutres), então, por vezes, buscamos indicações e aí vão três pesos da literatura mundial! E fáceis e mais rápidos de ler, no entanto imensos em conteúdos!

E como o Insurreição CGPP já pautou - de uma maneira nua e crua - as mortes, o encarceramento, e essa certa apatia perante as injustiças cometidas aos que já são ‘excluídos’, eis uma outra forma mais branda e mais literária de refletir acerca dessas questões. Segue a indicação!


1 O Cemitério do Vivos – LIMA BARRETO
2 O Estrangeiro – ALBERT CAMUS
3 Crônica de uma Morte Anunciada – GABRIEL GARCIA MARQUEZ


 


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Fichamento: MANIN, B. As metamorfoses do governo representativo


Fichamento: MANIN, B. As metamorfoses do governo representativo. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Outubro de 1995, 29.

Parte 1: Panorama das modificações da democracia representativa (§1-8)
A democracia representativa está passando por uma crise nos países ocidentais, pois tal modelo criou, ao longo dos tempos, um abismo entre representantes e representados, algo que por anos a representação política esteve bem ancorada na confiança exercida pelos governados perante seus governantes. O autor vai tratar das modificações conhecidas da democracia representativa, duas mais evidentes, tidas a partir do século XIX, tem relação ao direito ao voto através de um sufrágio ampliado, e o crescimento dos partidos de massa, onde os programas políticos se tornaram os principais conteúdos para competição eleitoral, dois elementos que não existiam na fundação do governo representativo das revoluções inglesa, americana e francesa, na qual se tinha uma lógica que a divisão entre facções poderia ser uma ameaça ao sistema emergente.
Enquanto para uns esse modelo de partidos significava uma crise de representação, para outros passa a existir uma reaproximação dos representantes aos representados, pois os representados se formavam através de uma militância de base. Mas, de modo geral, o surgimento desse novo modelo, que pôs em crise o parlamentarismo, foi tido como um progresso da democracia representativa, até porque se assemelhava mais à democracia do autogoverno da antiguidade.
Adiante, com base na crise atual, o autor propõe que esteja surgindo outro modelo, que põe em crise os outros dois tratados até então, que coloca em questão o caráter das modificações do parlamentarismo ao partidarismo.

Parte 2: Os 4 princípios do governo representativo (§9-39)
Nesta parte, o autor destaca a existência de quatro princípios práticos do governo representativo examinado desde sua origem até seus desdobramentos.
A: Os representantes são eleitos pelos governados (§10-13)
Primeiramente, o autor nota que há uma certa incompatibilidade entre democracia e representação periódica, apesar da democracia representativa romper com a conquista do poder pelo direito divino, de nascimento, de riqueza ou de saber, e reforçar o poder de escolha dos governados. Mesmo assim esse sistema não exime a diferença de status e função entre o povo e o governo, ou seja, o povo não governa a si mesmo e delega a função aos representantes. Com isso, os fundadores do governo representativo não viam problema se o poder fosse continuamente exercido pelas elites por meio da representação, por isso adotou-se as eleições ao invés de cogitar sorteios. De certa maneira, o povo fica relegado a escolher a que tipo de elite votar tendo como controle o não voto na próxima eleição.

B: Os representantes conservam uma independência parcial diante das preferências dos eleitores (§14-22)
Esse princípio se dá primeiro pela não existência dos mandatos imperativos, onde os governantes devem fazer estritamente a vontade dos representados, ao contrário disso eles devem governar para a nação e não apenas para o grupo que os elegeram. Em segundo, pela não existência de um sistema permanente para revogação dos governantes, assim o único mecanismo para avaliar os representantes é a não reeleição, mas cabe então o julgamento através dos desejos e perspectivas do povo, que mesmo não cumpridos consegue-se avaliar e confiar no patriotismo do governante e que ele pôde tomar decisões mais aptas sem a influência de “paixões desordenadas”.
Com isso a representação se torna um sistema superior tanto pela consolidação de um processo decisório mais racional e menos passional como pela questão de uma maior divisão do trabalho do povo e todos os entraves de disponibilidade de tempo na sociedade moderna.

C: Independência da opinião pública sobre os assuntos políticos sem o controle do governo (§23-30)
O autor demonstra que com base em dois elementos pode se estabelecer o que significa liberdade de opinião pública
C1.1- Se faz necessário que os governados tenham acesso à informação política para exercerem o direito de formar opinião sobre assuntos políticos.
C1.2- O segundo elemento da liberdade de opinião pública é a liberdade para expressar opiniões políticas. Está associado à liberdade de expressão política a liberdade de religião. Em sua dimensão política, isso representa a contrapartida da ausência de direito de instrução aos representantes, que mesmo não sendo obrigados a seguir estritamente a vontade dos governados, não se pode negar as reivindicações organizadas coletivamente.

 D: As decisões políticas são tomadas após debate (§31-39)
Os representantes são dotados de ampla liberdade de expressão dentro da assembleia, sendo que, a liberdade deve se dá conforme a lei, e o debate é o caminho mais adequado para determinar a verdade. Apesar do debate não estar de tal forma presente no pensamento dos fundadores do governo representativo em comparação com as análises posteriores, é evidente que a representação sempre esteve ligada à discussão. Assim, o governo representativo foi interpretado e justificado, desde sempre, como um sistema político em que a assembleia desempenha um papel decisivo, garantindo, a priori, a diversidade social e a validade de uma decisão consentida pela maioria ao final dos debates.

Parte 3: Os três tipos de representação (§40-97)
A: O governo representativo do tipo parlamentar (§40-47)
A1: Eleição dos representantes pelos governados - O governo é eleito com base na confiança dos eleitores, essa confiança tem caráter pessoal e decorre de uma identidade dos cidadãos junto aos representantes. O governo do tipo parlamentar tem como característica a contínua seleção de uma elite, chamada de “os notáveis”, pois eram os que tinham maiores recursos para disputar o poder.
A2: Independência parcial dos representantes – O governo é livre para votar e agir de acordo com suas convicções pessoais, não precisa se ater aos compromissos externos ao parlamento.
A3: Liberdade de opinião pública – Por parte dos representados, exercer a liberdade somente através do voto pode restringir a amplitude de uma opinião pública, sendo que algumas manifestações devem ser feitas fora do momento das eleições. Então, pode acontecer a não coincidência das expressões eleitorais e não eleitorais da opinião. E, por vezes, o povo chega “as portas do Parlamento”, o que pode gerar conflitos.
A4: Decisões políticas tomadas após debates – A princípio a discussão pode ter um caráter mais relevante nesse modelo, pois os representantes não devem ter opiniões pré-estabelecidas anteriormente aos debates, a opinião nesse modelo pode ser consentida após os debates.

B: A democracia de partido (§48-67)
B1: Os representantes são eleitos pelos governados – Em decorrência da ampliação do sufrágio, passa a se distanciar a relação de representantes e representados a partir da criação do partido de massa. Isso implica no enfraquecimento político dos notáveis, e na ascensão de uma outra elite, talvez a que tivesse pertencido a classe operária outrora. O sentimento de pertencimento e identidade social determina muito mais as atitudes eleitorais do que a análise do programa do partido, então existe ainda uma relação de confiança, só que não mais numa pessoa e sim num partido.
B2: Independência parcial dos representantes – Neste caso os representantes não administram seus mandatos conforme suas convicções pessoais, eles estão submetidos às determinações de um partido político. Os programas dos partidos são definidos pelos líderes do partido.
B3: A liberdade de opinião pública – Grande parcela da opinião pública é influenciada pelas ações do partido político, que desencadeia numa orientação pública em prol do governo, no caso em favor dos representantes que detém maioria no governo.
B4: Decisões políticas tomadas após debates – As orientações já são pré-estabelecidas pelo próprio partido, não havendo a possibilidade de alterações pós debate. Com isso, a relação de consenso se dá entre partidos.

C: A democracia do público (§68-97)
C1: Os representantes são eleitos pelos governados – Neste modelo percebe-se a quebra de vínculos originados pelas características sociais, econômicas e culturais para determinação do voto dos eleitores. Nisso, os votos podem variar de eleição para eleição sem que as condições sociais tenham mudado de fato.
C1.1: A personalização da escolha eleitoral – As pessoas votam de modo diferente dependendo da personalidade dos candidatos. Os partidos ainda têm papel fundamental, mas são submetidos ao carisma e decisão do representante. Esse representante deve ter por característica a comunicação e uma boa imagem. Deve enfatizar as propostas simples e claras para que o público possa compreender e obter maior confiança em suas propostas.
C1.2: Os termos gerais da escolha eleitoral – Neste quesito cria-se, propositalmente, por parte dos candidatos, um antagonismo evidente entre um programa e outro, no intuito de definir bem os adversários, e por vezes, focar mais em combate-los do que apresentar ou esclarecer suas próprias propostas. O autor compara fazendo uma metáfora ao teatro, pois na democracia do público os representantes políticos são atores que incitam um princípio de divisão no interior do eleitorado. Aqui um eleitorado que não participa da política sendo apenas um espectador.
C2: A independência parcial dos representantes – Nesse momento, em que a imagem do representante muito significa para sua eleição, fica assegurada, então, a independência parcial do representante, até porque não se teve um compromisso claro com o programa do partido.
C3: A liberdade da opinião pública – Devido o avanço dos meios de comunicação e da tecnologia, a opinião pública percebeu um declínio de influência dos partidos na imprensa de opinião, agora as pessoas escolhem sua fonte de informação conforme a sua inclinação partidária. Com isso ocorre a não coincidência entre expressões eleitorais e não eleitorais da opinião. Nesse modelo ocorre também as pesquisas de opinião enviesadas de acordo com o interesse de cada partido.
C4: As decisões políticas são tomadas após debates – No que tange às discussões em assembleia, a democracia de público se assemelha à democracia de partido, as decisões são tomadas nos grupos de cada partido. A novidade nesse tipo de representação está na identificação de eleitores flutuantes, que possuem maior acesso a informação e podem se instruir razoavelmente para trocar de candidato e de partido se julgarem necessário.
Vale frisar, portanto, que a crise da representatividade do governo se configura pelo afastamento das questões políticas do povo, e de tal forma tal representação não está caminhando nos trilhos da democracia.

Fuca, Insurreição CGPP

sábado, 31 de agosto de 2019

Breve nota – Relatório Professores Excelentes do Banco Mundial

Com base na leitura do relatório Professores Excelentes (2014) do Banco Mundial acerca da melhoria na aprendizagem dos estudantes da América Latina e Caribe, traço abaixo um breve comentário sobre minha sensação pós leitura de tal manual, nota essa que se atem ao reflexo de um cenário neoliberal na educação, abstraindo ainda (nessa nota) uma leitura que contenha um viés racial e de gênero, que de fato existem.

É de causar no mínimo um estranhamento ao relacionar e/ou enxergar as ações do Banco Mundial apenas pelo viés do altruísmo despendido aos Países do chamado Terceiro Mundo. Se faz necessário perpassar, mesmo que superficialmente, pelo contexto em que o Banco Mundial foi criado e consolidado. É de suma importância, também, buscar revelar algumas questões e consequências que estão imbricadas no pano de fundo deste ato de ajudar, ao suposto estimulo de reduzir a pobreza, ou de se preocupar com o desenvolvimento dos Países da América Latina e do Caribe, - para se utilizar apenas de algumas falas que essa instituição gostaria que existisse ao se avistar sua estrutura de forma rasa.
Para se chegar direto ao ponto, baseando aqui na análise de Mike Davis em Planeta Favela, são justamente essas ações do Banco Mundial em conjunto com o Fundo Monetário Internacional (F.M.I) que culminam nas faltas de estruturas, aumento da pobreza, favelização, e a precarização das condições de trabalho nos países do chamado terceiro mundo. E por mais que a crítica de Davis não esteja voltada unicamente à educação, é importante frisar que toda esta falta de estrutura e austeridade imposta por estas instituições se consubstancia na precarização do sistema educacional, direta ou indiretamente.
O Banco Mundial em conjunto com o FMI ao intervirem na estrutura política dos países do terceiro mundo, visam nitidamente implantar uma reestruturação neoliberal nas economias do terceiro mundo, sobretudo nas economias urbanas, pois tais países se encontram endividados devido os juros elevados que são cobrados como condição aos empréstimos cedidos pelo Banco Mundial e FMI. (DAVIS, 2006:151). Ao prefaciar Istvan Meszaros em A Educação Para Além do Capital, Emir Sader revela em síntese o que representa o viés neoliberal para educação.
“No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo se vende, tudo se compra”, “tudo tem preço”, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro. ” (Prefácio de Emir Sader, p.16)
É interessante notar, em suma, que estes empréstimos são mais uma das reinvenções que o capital se submete para conseguir manter seu constante acumulo, pois assim aufere a imposição dos seus Planos de Ajuste Estrutural (PAE) agindo através do desenvolvimento geográfico desigual que é um dos principais sustentáculos do capitalismo. Toda a acumulação infinita de capital existe certamente de forma combinada, é uma ação meticulosamente organizada, e isso reflete na maneira com a qual este relatório do Banco Mundial tratou o sistema educacional, tanto na parte estrutural quanto na parte regional.
Na estrutura buscou-se personificar a educação no sentido de que o pleno êxito da escola estaria puramente condicionado na produtividade de uma aula dos professores, tratando, assim, o conhecimento e a educação como mercadoria. Portanto, a aula de cada docente seria travestida em força de trabalho, que não deixa de ser uma mercadoria no sistema capitalista em que o trabalhador deve vender para gerar a mais-valia num produto, pois é basicamente a força de trabalho que transforma dinheiro em capital.
No que tange à regionalização proposta pelo relatório, ela se inspira na divisão feita pelo Consenso de Washington, que foi outra recomendação de ode ao neoliberalismo na América Latina e Caribe, tendo como orientação uma reforma fiscal, a abertura de mercado, políticas de privatizações, dentre outras medidas. Há de se perceber que tal relatório (Professores Excelentes) não foi desenvolvido para outros países do terceiro mundo.
Vale lembrar que na ótica de Davis, as crises desencadeadas entre as décadas de 70 e 80, no mundo subdesenvolvido, foram mais devastadoras do que a Grande Depressão de 1929, apenas para se ter uma dimensão do que os ajustes dessas instituições alcançaram, ou seja, intensificaram a precariedade e a degradação em países que já tinha passado outrora pela pilhagem e brutalidade das colonizações cometidas pelos países imperialistas.
“Entre 1974 e 1975, o Fundo Monetário Internacional, seguido pelo Banco Mundial, mudou o seu enfoque dos países industriais desenvolvidos para o Terceiro Mundo, que cambaleava sob o impacto dos preços cada vez mais altos do petróleo. Ao aumentar passo a passo os seus empréstimos, o FMI ampliou aos poucos o alcance das ‘condicionalidades’ coercitivas e ‘ajustes estruturais’ que impunha aos países seus clientes. Como enfatiza a economista Frances Stewart em importante estudo*, os ‘fatos exógenos que precisavam de ajuste não foram atacados por essas instituições, os maiores deles sendo a queda dos preços das commodities e os juros exorbitantes das dívidas’, mas todas as políticas nacionais e todos os programas públicos foram alvo de excisão. ” (DAVIS, 2006:156)
*Stewart, Adjustment and Poverty, p.213



Fuca cgpp - 19

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Esboço de texto/projeto sobre o Quilombo do Cedro - SP


NOTICIA: QUILOMBOLAS SÃO CONDENADOS A PAGAR R$ 6 MILHÕES POR INCÊNDIO QUE DESTRUIU AS SUAS CASAS
https://theintercept.com/2019/04/18/quilombolas-incendio/

ESBOÇO

A LUTA PELA POSSE FUNDIÁRIA: o caso do Quilombo Cedro em Barra do Turvo - SP

1)      Objetivo Geral

Este projeto tem como objetivo compreender os entraves institucionais, pós abolição da escravatura, que acarretam no adiamento contínuo do processo pela posse definitiva da terra no Quilombo Cedro, em Barra do Turvo - SP.

1.2) Objetivos Específicos

Através do resgate histórico-social, demonstrar como se deu o processo de aquisição e regulamentação de terras no Brasil a partir da década de 1850 e, sobretudo, no período pós abolição. Mais adiante, analisar as mutações existentes com a promulgação da Constituição Federativa de 1988 e como essa legislação reverberou de fato nas comunidades tradicionais quilombolas. Para então compreender os conflitos de interesses (por vezes violentos) entre o Povo Tradicional do Quilombo Cedro e os mais diversos setores, a exemplo de fazendeiros, latifundiários, posseiros, e inclusive o próprio Estado.

2) Fundamentação Teórica

A partir do acesso à alguns documentos que retratam a execução de dois incêndios criminosos cometidos por terceiros em parte da área que está em movimentação de adquirir a propriedade da terra definitiva pertencente ao Quilombo Cedro, será possível aglutinar alguns fatores que agem como forças antagônicas à comunidade tradicional do Cedro. Em suma, os incêndios ocorreram num intervalo de seis anos, e como já existia o procedimento de reconhecimento das terras quilombolas em andamento, o Estado (Ministério Público Estadual) decidiu que a comunidade deveria arcar com as despesas do incêndio e também da fiscalização das terras. Após o primeiro incêndio criminoso, como estavam sem acompanhamento jurídico, os próprios quilombolas assumiram a responsabilidade do reflorestamento do local incendiado e devastado com recursos da própria comunidade. No segundo incêndio, em 2016, a comunidade foi multada em seis milhões de reais. Essa multa se torna mais uma forma de retardar ainda mais a consolidação da posse fundiária definitiva.

Esses entraves não são pontuais, e com base nisso, através da historiografia dos Quilombos de Flávio dos Santos Gomes em Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil, esta pesquisa resgatará a origem, a formação e a definição do que foi (do que é) e representa os quilombos tanto no passado como no presente, para então chegar em um dos pontos de sua exclusão, o racismo anti africano. Adota-se, então, que um quilombo era organizado a partir de escravos fugitivos e que surgiu por volta de 1575 na Bahia, ou seja, dos canaviais e engenhos da região nordeste do Brasil que se têm as primeiras evidências das fugas de escravizados para estabelecer uma vida organizada em comunidade num território estratégico e afastado. Porém, nem todo escravo fugitivo se constituía um quilombo ou fugia para um já existente. (SANTOS, 2015) Vale frisar que cada quilombo se desenvolveu e interagiu de formas distintas de acordo com cada espaço geográfico ocupado dentro do Brasil.

Para ir além de interpretar quilombos apenas como modo de organização isolada geograficamente e de composição de escravos fugitivos, será utilizado o trabalho de Ilka Boaventura Leite, Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas, que aborda de forma mais aprofundada as questões conceituais e normativas dos quilombos no Brasil. Não é no sujeito individual que se reconhece um quilombola e sim no coletivo, na comunidade. A terra é extremamente importante, mas não é pela terra que se define um quilombola, com isso, levanta-se a questão de visualizar um quilombo como apenas sinônimo de preservação de um patrimônio cultural ou se é uma questão de direito à terra e à diversidade étnica. (LEITE, 2000)

Após essa conceituação, este trabalho perpassará para outro fator que concretiza a exclusão e desigualdade no campo, e em particular das comunidades quilombolas, que é a questão da propriedade privada absoluta. Até a primeira metade do século XIX, a terra quando negociada de forma relativa servia somente de instrumento de conquista de riqueza, a terra em si não detinha um preço. A riqueza era medida através do escravo, ou seja, o escravo e sua força de trabalho eram os referenciais de riqueza, que no período de transição do trabalho escravo ao trabalho livre, e com a promulgação da Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), a terra para a ser valor de riqueza e a única maneira legitima de aquisição é a mercantilização da terra culminando, em linhas gerais, na propriedade privada absoluta dos fazendeiros. (SUZUKI, 2007)

Este quesito vai de encontro à luta da comunidade quilombola do Cedro em Barra do Turvo - SP, que se encontra numa posição de consolidação do reconhecimento de suas terras historicamente habitadas (com seus laços familiares já comprovados pelo certificado da Fundação ITESP e Fundação Palmares) e entre a especulação de lotes para terceiros nas imediações do seu território, além da usurpação de suas terras pelos fazendeiros. A titulação da propriedade quilombola é imprescindível não somente para evitar que suas terras sejam tomadas, mas para que a comunidade passe a ter acesso aos programas governamentais e assim poder melhorar suas condições de vida.

3) Metodologia
               
Na realização desse trabalho será desenvolvida a pesquisa de bibliografias referentes ao campesinato, a questão agrária e as comunidades quilombolas, seja em livros, teses e dissertações, artigos disponíveis na internet, análise documental e pesquisas de campo contendo entrevistas com moradores, lideranças comunitárias, representantes de organizações não governamentais (ONGs) que atuam no território, gestores públicos, e funcionários dos Mosaicos das Unidades de Conservação na qual o Quilombo Cedro faz parte.

4) Cronograma
5) Referências:

LEITE, I. B. "Os quilombos no Brasil : questões conceituais e normativas.". Florianopolis : Nuer-UFSC, 2000.

MARTINS, J. de S. "Os camponeses e a política no Brasil". São Paulo : Petrópolis, 1981.

SANTOS, F. G. dos. "Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil". São Paulo : Claro Enigma, 2015.

SOUSA, A. A. G. de. Limites da propriedade privada absoluta: luta das comunidades quilombolas Poça e Peropava pelo direito de posse no Vale do Ribeira/SP. São Paulo : dissertação USP, 2011.


SUZUKI, J. C. Modernização, território e relação campo cidade - uma outra leitura da modernização da agricultura. São Paulo : Agrária online, 2007.

Fuca CGPP 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

TRABALHAR O SAL E AS MIGRAÇÕES INTERNAS


TRABALHAR O SAL E AS MIGRAÇÕES INTERNAS

“Trabalhando o sal
É amor, o suor que me sai
Vou viver cantando
O dia tão quente que faz
Homem ver criança
Buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro
Pra vida de gente levar”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

No intuito de estabelecer uma relação entre migração e a obrigatoriedade de venda da força de trabalho por parte dos trabalhadores, este texto visa abarcar o contraste capitalista entre cidade e campo e o âmbito das migrações internas brasileira, e como neste sistema capitalista o trabalhador se torna submetido ao capital através da sua mobilidade da força de trabalho.
Para evidenciar esses paralelos será utilizada a música Canção do Sal, de Milton Nascimento, em conjunto com dois textos estudados em sala de aula, um de Jean-Paul de Gaudemar, O conceito marxista de mobilidade do trabalho e outro de Paul Singer, Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo.
A música, neste caso, pode ser engendrada como uma representação social das realidades e dos conflitos vividos seja na cidade ou no campo e, sobretudo, pode reforçar a perspectiva legitima do espaço vivido para além ou conectado com o espaço percebido e concebido.
A música Canção do Sal relata o trabalho na salina, onde se é submetido a uma jornada de trabalho extensa para, quiçá, se obter os meios de subsistência tanto do trabalhador em si como de sua família. Pode-se perceber que há uma divisão do trabalho reduzida na descrição contida na letra, algo mais típico nos campos onde o mesmo trabalhador geralmente desenvolve e realiza diversas funções e etapas na fabricação de um mesmo produto. Parte do processo deste trabalho se encontra no trecho a seguir:

“Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Existe um conjunto de disparidades entre cidade e campo que culmina, entre outras coisas, na desvalorização do trabalho no campo, seja região litorânea ou rural, devido a concentração de capital nas cidades industrializadas e urbanizadas. A questão da divisão social do trabalho configura uma das diferenças entre cidade e campo.
A introdução de uma adequada divisão do trabalho com funções imbricadas entre si gera um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. De acordo com Adam Smith, a agricultura não comporta muitas subdivisões do trabalho como a manufatura pode proporcionar, e com base nisso Smith julgava, ainda, que uma sociedade estaria num estágio primitivo se sua divisão de trabalho fosse reduzida, pois a agricultura não conseguiria acompanhar o aprimoramento das forças produtivas da manufatura rumo a aquisição de riquezas.
A propensão do ser humano em realizar trocas está na origem da divisão do trabalho, no caso do trabalhador deve-se vender uma grande quantidade de sua força de trabalho como mercadoria de troca no sistema capitalista.
Existem diversos condicionantes para que os trabalhadores possam vender sua mercadoria, a força de trabalho. Gaudemar evidencia que a mobilidade do trabalho é algo crucial que o trabalhador deve obter para vender sua mercadoria já que é inerente ao capitalismo a constante mutação espacial em busca de capital. O sustentáculo do capitalismo se dá na perpetuação de desigualdades geográficas onde por um lado gera fatores para aglomeração de capital, que assim necessita de maior abundância de força de trabalho nesses espaços, ocorrendo o movimento oposto/inverso em outros espaços, que por vezes já foram explorados.
Para se adaptar a essa mobilidade há algumas características a serem cumpridas pelo trabalhador, tais como qualificação e liberdade. Na canção do Sal o trabalhador almeja um futuro melhor para seu filho através dos estudos, assim não precisaria se submeter ao trabalho semelhante ao do pai, que trabalha o dia inteiro sob o sol quente para receber pouco.

“Filho vir da escola
Problema maior de estudar
Que é pra não ter meu trabalho
E vida de gente levar. ”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Mas é necessário abordar melhor a mobilidade do trabalho assim como a força de trabalho se caracteriza numa mercadoria. O valor de troca é medido pela quantidade de trabalho socialmente necessário à produção da mercadoria considerada. Chama-se trabalho abstrato o suor, o esforço e a quantidade de energia humana do trabalhador dispensados num produto. E o que gera valor ao produto é a força de trabalho, o valor não se dá na circulação nem na troca de mercadorias. É a própria força de trabalho que torna possível se ter um valor de uso superior ao valor de troca de um produto, transformando dinheiro em capital.
Para a força de trabalho se consolidar como mercadoria no sistema capitalista, é necessário que ela esteja propensa a mobilidade e que essa força de trabalho seja, de certa forma, indiferente perante ao trabalho a ser exercido no cenário de fluidez do capital, no sentido de que se deve ter a capacidade de aplicar a força de trabalho em diversos ramos e atividades. Então, antes de tudo (ou outra condição), o trabalhador precisa encontrar-se livre, tanto na questão da "liberdade de escolher" onde empregar sua força de trabalho como livre em não se ter outra ocupação ou fonte de renda.
Sendo assim, a mobilidade da força de trabalho é uma exigência ao trabalhador e ao mesmo tempo o baluarte do capitalismo, ou seja, a existência do capitalismo se desenvolve e permanece porque existe a mobilidade da força de trabalho.
Então, na canção, quando o trabalhador da salina se refere aos estudos do filho, indiretamente se trata do possível desenvolvimento de uma capacidade maior de migrar, já que no campo não se terá a mínima valorização de sua mão-de-obra se o filho permanecer imóvel na mesma função do pai.
O trabalho precisa ser produtivo, e é considerado um trabalho produtivo aquele que consegue valorizar o capital, ou em outras palavras, que se possa ser efetivo na realização da mais-valia.

“Trabalhando o sal
Pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa
Encontrar a família a sorrir”
(Milton Nascimento. Canção do Sal)

Se na música tem-se retratada a vida de uma família, é importante frisar que as condições e os motivos de migrar estão atrelados a uma determinação de classes, a abordagem da questão migratória deve se dar como um processo social dada as condições históricas de um grupo social ao invés da atividade de um indivíduo apenas. Uma pessoa ou um grupo quando migra carrega consigo sua posição de classe.
As migrações internas seguem basicamente o rearranjo espacial das atividades econômicas, Paul Singer utiliza o conceito de aglomeração espacial das atividades - que se traduz em sua urbanização, sendo um requisito de sua crescente especialização e consequente complementariedade na relação cidade/campo.
Uma aglomeração também no sentido de polos de crescimento pode ser vista, que remete ao tempo (abstrato, que é dinheiro no capitalismo) que deve ser reduzido pelas facilidades dos polos industriais, mas que após certo tempo de exploração e de acumulação exacerbada vem o êxodo, assim o capital terá que visar outros espaços.
As migrações internas podem ser datadas desde a década de 1930 a partir da legislação do trabalho, mas que se intensificou depois dos anos 1950 atingindo, então, seu ponto culminante pós década de 1970, época de uma industrialização e urbanização rápida. Vale frisar que a industrialização não ocorre de forma espontânea no capitalismo, pois exige alguns arranjos institucionais para que se consolide a sua "explosão".
Ao se voltar para canção, portanto, pode constatar a precariedade das condições de trabalho onde o trabalhador no auge de sua liberdade se encontra obrigado a trabalhar o dia inteiro sob o sol quente para poder sobreviver minimamente, já seu filho está fadado ao mesmo destino se não buscar as vias de migração.

Referências:

GAUDEMAR, J. P. de. O conceito marxista de mobilidade do trabalho, In: A mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977, p.180-210.

Milton Nascimento. Canção do Sal. Disponível em <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/1160872/>, acesso em 10/05/2019

SINGER, P. I. Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo, In: Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense/CEBRAP, 1975 (1*ED. 1973). p.29-60.

SMITH, A. A riqueza das nações. Nova cultural, 1988, v.1, p.17-54.


Fuca CGPP 2019

sábado, 9 de março de 2019

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 2.

Rap e História; a arte da revolução e a revolução da arte. Parte 2.

Miguel Angelo (LIL X) - CEO na empresa W-BOX - GOLD. 
Posse Entre o Céu e o Inferno, Insurreição CGPP.

Vou continuar essa incursão na produção cientifica sobre o rap no contexto da cultura Hip Hop seguindo com a referência de KRS-ONE (Knowledge Reigns Supreme), a Realeza do Conhecimento Supremo pra mim. O Fuca (CEO do Insurreição CGPP), sentiu essa falta e eu fiquei muito sensível a demanda, então bora lá!

Eu sou um professor original, ponto final (KRS-ONE)

“Comecei a militar na escola contra o sistema público de educação, mas as horas vagas pertenciam as quadras de basquete” (KRS-ONE)

Nosso pioneiro de certa forma do gangsta rap do lado leste, hoje com 54 anos, lançou “The Gospel of Hip Hop: First Instrument” em 2009 e é a terceira obra (The Science of Rap é de 1995 e Ruminations - Welcome Rain de 2003) deste rapper que além do mais é também um filósofo de ponta nos EUA, um aclamado professor e palestrante (mais de 500 palestras registradas em diversas universidades norte-americanas), e, sem dúvidas, um dos maiores e mais importantes militantes da causa negra no universo conhecido. Considerada uma obra prima, o livro que segue o mesmo formato da bíblia tem nada menos que 800 páginas, se tornou um manual para os membros da cultura Hip Hop e chama atenção quanto a ousadia em apresentar uma abordagem epistemológica que dialoga muito original, amalgamando filosofia prática, espiritualidade (sua mãe o introduziu nos estudos em teologia ainda quando ele era uma criança) e experiência prática recontando a história do Hip Hop com a agência de quem viveu o movimento desde seu surgimento, preservar o futuro é a incumbência do movimento Hip Hop segundo KRS. KRS-ONE (nascido Lawrence Parker) conta a história do Hip Hop como quem conta sobre sua própria biografia a partir de sua adolescência sem lar pelas ruas do Brooklyn (NY), filho de um homem da Jamaica e de uma mulher afro-americana com mestrado em educação, as primeiras rimas que o levaram ao mainstream, e os estudos que em sua filosofia da “auto-criação”. A obra se enquadra na linha de pesquisa que busca identificar na cultura Hip Hop os elementos da transformação social; saúde, amor, consciência e riqueza são alguns dos valores e metas que KRS-ONE apresenta como partes integrantes da plataforma de transformação que o movimento Hip Hop construiu para a comunidade negra. Foram nada menos que 14 anos de pesquisa empírica no desenvolvimento da obra que, segundo seu autor, busca acima de tudo a paz, a autoconfiança e a verdade (num dialogo interessante com os princípios do MAAT e a escola filosófica de Pth em KMT). O jornal Guardian chamou KRS de “Apostolo do Hip Hop”, o próprio disse na matéria de setembro de 2009; “Daqui a 100 anos esse livro será a nova religião da Terra” (talvez em menos de um século eu diria), e prossegue; "Em cem anos, tudo o que estou dizendo para você será de conhecimento geral. As pessoas ficarão tipo 'Por que ele teve que explicar isso? Não era óbvio? No meu tempo, não é óbvio. “Sou o Hip Hop” é a proposta da obra, entenda bem “Nós” somos o Hip Hop, pois essa é a lógica do valor de autoconfiança a qual a obra remete. Em termos de espiritualidade KRS explica o Hip Hop como religião; "Eu respeito o cristianismo, o islamismo, o judaísmo, mas esse tempo acabou. Eu não tenho que passar por qualquer religião [ou] linha de pensamento. Eu posso me aproximar de Deus diretamente. Nós tínhamos passado por todas as religiões do mundo no momento em que eu ainda tinha doze anos de idade" Mas a proposta não é nada simples e realmente é ousada; “A proposta é definitivamente controversa porque eu também estou dizendo que estou disposto a desistir da minha identidade afro-americana para me tornar Hip hop. Muitas pessoas não gostam disso. Americanos negros podem ser "hiphop", mas também nigerianos, cubanos e italianos. Estou disposto a ir além da minha cultura nata para criar toda uma nova civilização."

“Quando sai de casa minha mãe me deu uma ordem; me tornar um artista de rap e estudar a filosofia metafísica” (KRS-ONE)

“Não sou um filósofo de terno e gravata ou tweed, sou daqueles que veio de baixo, que saiu do seminário das ruas” (KRS-ONE)

“Existe um momento na vida em que o ritualismo e o intelecto deve ser posto de lado para que possamos pegar as armas” (KRS-ONE)

KRS-ONE começou a carreira no Boogie Down Productions, que com Criminal Minded de 1986 basicamente fundou o gangsta rap na costa leste pela originalidade da lírica de conteúdo violento e de contestação social, o próprio Ice Cube afirma que Ice T e KRS-ONE são os primeiros. O Boogie Down Productions saiu de uma articulação com Scott Sterling, um assistente social que o auxiliava KRS no tempo em que este viveu em um abrigo para jovens. Sterling foi assassinado no Bronx um ano após o lançamento de Criminal Minded. Como ativista é importante lembrar do coletivo “Stop the Violence” ainda em 1988 que deste então reúne diversos membros da cultura hip hop em turnês pelos guetos dos EUA buscando soluções pacíficas para os conflitos existentes nas comunidades. As batalhas de rima foi justamente uma proposta do “Stop the Violence” para a redução da violência armada entre jovens negros; “Você pode matar com o poder das palavras, na batalha das ideias” disse o Professor KRS-ONE, mas ponderou; “O Mundo é violento, a realidade é violenta, e muitas vezes as pessoas se utilizam de violência contra mim, evidentemente que em situações assim eu posso reagir também com violência”. Nelly, Method Man, Busta Rhymes, The Game, Hakiem fazem parte do Stop the Violence. Na área da educação desenvolveu o projeto HEAL (Educação Humana Contra Mentiras) em 1990 que se articula com o álbum Civilization vs. Technology do mesmo ano (o objetivo cumprido deste álbum foi arrecadar dinheiro para fazer 16 milhões de cópias em fitas cassetes com a gravação de uma de suas palestras na Universidade de Stanford). Na sua longeva carreira como rapper KRS-ONE tem 19 álbuns no catálogo, 3 de ouro com mais de 500 mil cópias vendidas, fora as incontáveis participações colaborativas.

“Eu não faço parte do entretenimento, eu sou o edutain-KRS-One- entertaining "!

“A lei das ruas é a única lei que eu realmente respeito.” KRS-One

Vou fechar essa nota com a entrevista/debate de/com KRS na matéria “O Professor Pode ser Ensinado?” em colaboração com Michael Lipscomb, o artigo foi publicado pela editora da Universidade de Indiana e é produto do Centro de Pesquisa Hutchins para africanos e afro-americanos da Universidade de Harvard.

Michael Lipscomb:
É óbvio que a história é importante para você. A história é como a auto-estima para você. Mas me parece que você deposita a história na política, e isso nem sempre pode funcionar. Por que usar a história como ferramenta política?

KRS-One:
Porque é distorcendo a história que muitas pessoas se tornam poderosas. Então, nitidamente a história é uma ferramenta política. É o tecido de nossas vidas. Sua cultura, e você mesmo.

ML: Mas há muitas maneiras de olhar América. Existem alguns que digamos, e eu sou um deles, que veem a América, em aspectos importantes, uma experiência cultural africana. O que é irônico é que quando um branco de classe média quer ser considerado culto, ele ou ela vai para essa análise.

KRS: Certo.

ML: O que, de certo modo, contradiz o que você está dizendo. O domínio político não é correspondido pelo domínio cultural. Como você acha que a política se relaciona com conhecimento cultural e como se pode usar conhecimento cultural como uma maneira edificante de auto estima?

KRS:
Temos que olhar para a nossa história. Para entender a natureza da fera você tem que entender sua história. Esta cultura americana não é de todo como a cultura africana. Isto é a cultura africana depois de ter nos enlouquecido. Esta é a cultura africana depois de ter sido assassinada, roubada, espancada. Antes do colonialismo nossa história é rica, desenvolvemos nossa própria civilização que teve sua própria cultura. Eles se vestiram, agiram, falei, fiz tudo de forma totalmente diferente. Eu uso a história como uma ferramenta política para rastrear como as pessoas chegaram ao poder. Eles não derrubaram a África por causa da cor, do preconceito. Foi economia - e foi também uma questão de poder. Agora, o que é o indivíduo sem a cultura?

ML: A cultura africana?

KRS: A cultura correta. O indivíduo faz parte das massas. As massas vêm primeiro e o indivíduo vem por último. Na América, o indivíduo vem em primeiro lugar e as massas vêm por último. Se massas vierem antes do indivíduo é a cultura que virá antes do indivíduo. Você faz parte de uma multiplicidade de pessoas que aprenderam e lutaram por anos e no fim a luta é sua cultura. Isso é o que te dá conteúdo. Isso é o que faz de você o africano, o asiático, o Japonês: Você é o que sua cultura lhe ensinou a ser, como você age e inclusive o que vc pensa de uma certa maneira. Quando essa cultura é despojada de você, você é deixado sem nada. Você é como um copo vazio. E as pessoas podem derramar qualquer coisa que quiserem em vc.

ML:
Eu fiquei surpreso, aliás, que W. E. B. Du Bois estava ausente da lista de leitura que você propaga, porque ele é muito importante para lidar com isso. Eu duvido que fomos totalmente despojados nossa cultura. Olhe para a história americana em meados do século XIX, em escritores como Emerson e Thoreau. Eles estavam preocupados com a ideia de Europa e a tarefa de sair debaixo de uma noção da antiguidade europeia, para que pudessem forjar outra identidade cultural. Teve uma profunda ambivalência nesta questão. Ao mesmo tempo, nas regiões do sul os aristocratas enviaram seus filhos para a Europa para "cultura". Então, nesse sentido, éramos os únicos americanos verdadeiros, porque nós tínhamos crescido aqui. Nós tivemos que lidar com essa realidade.

KRS: Não necessariamente. Eu sinto como se a América nem existe. Os únicos verdadeiros americanos são os índios americanos e eles não chamam esse lugar de América. Assim, o que é a América?

ML: América é a sombra; eu penso isso, imagino que é o que você está tentando dizer. Para muitos, a América é uma espécie de Europa bastarda. É provável que muitos europeus tenham perpetuado essa noção. Os negros fizeram a América. Como James Baldwin costumava dizer, "somos Americanos porque não sabemos nada". Por outro lado, temos formações culturais complexas como o jazz, que não é música africana ...

KRS: Jazz é música africana.

ML: Tem elementos africanos como polirritmia ....

KRS: Qualquer coisa criada por um homem negro é africana. As pessoas dividem as coisas ferrenhamente em decorrência da maneira como fomos ensinados. Nós fomos mortos mentalmente. Se um gato tinha gatinhos no forno, você vai chamá-los de muffins?

ML: Eu acho que lidar com a África e com as pessoas, sempre vai ser um pouco mais complicado que isso. Apesar de tudo, a África é uma formação profundamente heterogênea múltiplas de culturas e grupos étnicos. A cultura iorubá é distinta da cultura ibo e ambos são distintos da cultura Hausa, e elas não coexistem exatamente em harmonia perfeita. É como a Europa: lá não existe uma quantidade substancial de unidade coesa, eles tiveram duas guerras mundiais que atestam isso.

KRS: Mesmo assim, o título afro-americano é um título falso. É um título de escravo. Qualquer coisa ligada à americano é o equivalente a deixar cair a bomba em Hiroshima na história da escravidão e na história da aniquilação dos indígenas. ..

ML: Estamos falando de dois diferentes tipos de América. Eu concordarei que há todo um segmento da América que está atada a uma concepção europeia de socialismo. Mas na África, vê-se mesma coisa. Abaixo do vigésimo paralelo há mais do que um punhado de nações que tem ditaduras negras e cuja os cidadãos não podem votar.

KRS: Bem, isso é hoje, depois do neoliberalismo. A África na sua história antiga, antes da invasão da Pérsia, da Grécia e Roma, era economicamente, psicologicamente e tecnologicamente estável; racialmente e culturalmente era um lugar estável para se estar.

ML: Ainda havia luta, ainda havia conflitos, havia ainda a expansão e contração dos impérios indígenas.

KRS: Não, não antes da invasão de Grécia e Roma.

ML: Essa é uma conjectura duvidosa

KRS: Na verdade, a razão pela qual eles foram derrotados é porque eles não tinham as armas sofisticadas que Roma, Grécia e Pérsia tinham quando o Egito foi invadido. A África não evoluiu para esse estágio de tecnologia porque tinha alcançado um estágio de civilização que foi afastando-se disso. Claramente, nosso tempo e dinheiro estavam indo para a educação e conhecimento. É quando eu encontro o declínio do povo africano: quando eles foram introduzidos na Europa. Na verdade, toda essa corrida para nos introduzir na Europa só fez nos destruir.

ML: Eu acho que isso é simplesmente superstição. Até mesmo o Chanceler Williams, que escreveu "A destruição da civilização negra", afirmou que, entre suas principais fontes utilizou Heródoto, "o pai da história", que foi alguém que admirava a África. Ele teve que se passar por "escravizado", a fim de obter a história sobre África. O que ele fez foi apenas pegar, através de várias fontes, as imagens boas sobre a África em meio o que havia de ruim sobre a África. Então ele simplesmente realizou uma seleção; justamente o que os brancos fizerem, mas dando ênfase em suas dimensões negativas. Você cria uma história oficial e depois começa a construir uma cultura teórica em torno disso, enfatizando qualquer coisa que suporte sua história e deixando de falar do restante. O perigo é que muito dos rappers podem cair em uma contraficção com outra história oficial e acabam fazendo exatamente o que eles condenam os europeus por terem feito.

KRS: Eu estou atentando sempre para não fazer. Toda minha história vem de um ponto de vista lógico, realmente não é ponto de vista histórico. Se você for a uma outra terra e saqueia, estupra e mata povos mentalmente e fisicamente - para o seu próprio benefício, você é um assassino e um ladrão.

ML: Você está dizendo que os africanos nunca fizeram isso?

KRS: A cultura egípcia fez isso constantemente. Sim, há muita culpa na cultura africana, mas a cultura africana, ao contrário da cultura europeia, estava muito longe deste universo. Nós estávamos passando por um estágio do que realmente podemos chamar de capitalismo. Na televisão, eles mostram isso como escravidão, mas em seu sentido político era capitalismo. O Egito estava avançando e evoluindo em um estado de harmonia universal ou de unidade -porque os africanos viajaram o mundo. Em qualquer lugar do mundo, se você queria aprender, você tinha que ir até o Egito.

ML: Mas eu até questiono toda essa ideia do Egito como berço cultural. A historiografia ainda está evoluindo. Há historiadores brancos importantes que defendem o Egito como berço cultural. Você leu o "Athenas Negra" de Martin Bernal?

KRS: Sim.

ML: Ele traça as questões culturais em parte através do desenvolvimento da língua grega. E o que você encontra em grego é algo com ambas influências níticas e semíticas. E tem havido uma quantidade crescente de pesquisas arqueológicas sobre as antigas civilizações enterradas sob o Sudão. Então eu estou desconfortável com esta ideia predominante que retrata o Egito como único farol da iluminação da África.

KRS: Eu dou ênfase no Egito porque foi um dos principais locais de aprendizagem. Este foi o primeiro lugar que a Grécia atacou: foi provavelmente uma das mais populosas áreas para os estudiosos. Mas a África como um todo fez parte de um grande desenvolvimento do aprendizado. Meu ponto, voltando para ele como ferramenta política, é que a subjugação dos outros é a forma como as pessoas ganham seu poder político, e eles fizeram isso tirando nossa história. Conhecimento é por saber, uma coleção de fatos; a inteligência é a capacidade de conhecer, avaliar e questionar. Obviamente, se alguém está lhe dando conhecimento, e você não tem a inteligência para assimilar isso, você é basicamente um escravo para a pessoa que lhe deu o seu conhecimento. Eles ditam como eles querem a forma como vc deve ser e agir. O que aconteceu é que o africano tem sido despojado não de conhecimento, não de suas datas, fatos e números, mas de sua inteligência, de sua capacidade de avaliar o que está sendo arrebatado ao seu redor

ML: Afro-americanos são frequentemente uma fotografia confusa, mais ou menos libertos de suas contrapartes africanas. Muitos Afro-americanos tomaram parte de movimentos modernos. Marcus Garvey não pôde iniciar seu movimento na Jamaica. Ele tinha que vir para a América. Interessantemente seu herói era Booker T. Washington. Então, o que eu vejo são diferentes níveis de Africanidade. Onde você está posicionado em relação a isto? Parte do que traz sua música é a variedade de sons de reggae que você emprega. Como Bob Marley, você joga reggae em uma tradição do rock.

KRS: Meu pai é jamaicano. Minha mãe é americana. . . eu sou nascido na América. Denuncio essa ideia de identidade americana.

ML: Eu acho que isso tem muito a ver com o fato de que os índios negros do oeste nunca foram capazes de aceitar o fato de que os negros são uma minoria na América. Você lida com isso em uma de suas próprias músicas. Mas você não acha interessante que Jamaicanos fujam da ilha onde são a maioria tão rapidamente quanto os cubanos brancos fugiram de Castro?

KRS: Bem, a razão é a desgraçada pobreza que existe lá. Todo mundo está perseguindo os itens materiais. Jamaicanos não são diferentes. Eles querem uma casa, um carro, uma garota ou um homem. A América é apresentada a eles na televisão como sendo a terra onde as ruas são pavimentadas com ouro. Então naturalmente eles deixam sua terra pobre para vir para a América. Eu só acho que todos os africanos sobre o mundo deveriam ser africanos, chamar si e reconhecer-se como africanos. Assim como os italianos se reconhecem como italianos.

ML: Por quê? A América é um fenômeno diferente comparado a Itália.

KRS: Mas a América não existe.

ML: Sim, isso acontece: na verdade, o norte Americano criou uma cultura que é distinta do que podemos ver em qualquer região da Itália. Historicamente, as pessoas quem vem aqui porque querem fugir de sua terra natal, por várias razões, filhos, como você disse, e muitas vezes motivados pela perspectiva de novas oportunidades. Mas talvez eles simplesmente queriam fugir. Para começar de novo.

KRS: Certo.

ML: Frequentemente eles estavam interessados em manter sua cultura, seus laços com uma existência mais antiga. Isso é o que D. H. Lawrence pode ter tido em mente quando disse que a América é uma Europa recriada. Mas parte do que é básico e distintivo para a cultura é a experiência da escravidão, o drama interracial, James Baldwin fala que se criou não só um novo tipo de homem negro, mas um novo tipo de homem branco também. Por esse raciocínio, então, quem pode dizer que os americanos negros não são americanos, eu posso?

KRS: Se negros americanos fossem americanos, nós não teríamos vindo para cá em navios negreiros.

ML: Você está negando a realidade da transição. Ela está aqui.

KRS: É como chegamos aqui. Todo o mundo mais veio aqui procurando uma maneira melhor da vida. Os africanos vieram algemados. Nós não pedimos para vir para cá. Então agora que estamos aqui e você se adapta e gera filhos que cresceram aqui na América, nós rapidamente somos chamados de americanos. Quando, na verdade, a América é o que tem nos matado por quinhentos anos.

ML: Por outro lado, nós estamos construindo a América por quinhentos anos.

KRS: Com base na força do opressor

ML: Legalmente, estamos na América. E há a décima terceira, décima quarta e a décima quinta emenda do nosso lado. Desde a 1865, fomos tomados como parte da Política americana.

KRS: Olhe para a Proclamação de Emancipação. Diz que a partir de janeiro, 1 de janeiro de 1863, todas as pessoas mantidas dentro de um estado ou parte de um estado em rebelião armada era livre. Os estados que estavam em rebelião armada eram estados confederados. Os estados do norte não tinham rebeldes armados em rebelião. Em última análise, Lincoln enganou as pessoas africanas ao fazerem-nas acreditar que elas seriam beneficiadas quando na verdade tudo fazia parte de um acordo com todas as pessoas tidas como escravos dentro de um estado que estava em rebelião armada. Então todos os estados do sul, todos os escravos do Sul estavam livres quando, na verdade, lá era um governo totalmente diferente. O Norte tinha escravos.