quarta-feira, 24 de março de 2021

Manuel Querino - O Colono Preto Como Fator da Civilização Brasileira - breve nota

Texto publicado em 1918, por Manuel Querino (1851-1923), nos documentos do 6º Congresso Brasileiro de Geografia.

O autor buscou evidenciar a contribuição dos africanos como os principais propulsores de desenvolvimento do Brasil em todos os aspectos, pois com os africanos vieram a mão de obra qualificada e de fato produtiva, apesar de ser trabalho forçado, escravidão. Os portugueses fizeram o papel improdutivo, de destruição e de parasitismo, apenas se beneficiando do trabalho duro dos africanos. Ou seja, foi a contribuição preta que realmente erigiu a civilização brasileira.

Contudo, acredito ser melhor apropriado o uso de expressões tais quais: principal construtor da civilização, principal força de trabalho, pois no caso de colono ou colonização se refere justamente à destruição. Ou seja, um papel de co-colonizador no Brasil não seria apropriado porque a colonização foi uma obra de genocídio físico e cultural realizado pela cultura ocidental (no caso pelos portugueses).

Manuel Querino buscou, também, confrontar as teorias racistas de Nina Rodrigues, por exemplo, da eugenia. E acabou colocando a miscigenação como algo de bom no Brasil.

Vamos aos capítulos.

Portugal no Meado do Séc. XVI

Nesse capítulo, o autor demonstra, em suma, que a violência ancorada pela ganância portuguesa não seria produtiva para uma colonização, a exemplo dos saques prejudiciais ocorridos na Índia culminando em ruinas. No território brasileiro aconteceria o mesmo. O indígena se afastando do litoral para o interior agravou, em síntese, a situação de improdutividade. Restando, então, a busca pela mão de obra africana como saída de evitar o total colapso. Com a presença forçada dos africanos pode-se intensificar a produção de cereais e da cana de-açúcar, além de explorar da terra o diamante e metais preciosos.

Chegada dos Africanos no Brasil, Suas Habilitações

O autor faz referência à colonização mulçumana na África, que introduziu, na visão dele, os modos civilizados aos sertões do Continente Negro. Isso antes da chegada dos europeus (portugueses). E que, assim sendo, através do tráfico de escravos, esses africanos chegavam aqui já com qualificações, sobretudo aplicações para força de trabalho.

Isso reforça o papel crucial dos africanos, já que os portugueses já haviam iniciado uma enorme destruição dos povos indígenas e sem os indígenas os portugueses eram incapazes de dar prosseguimento ao seu empreendimento aventureiro de colonização devido também às limitações e dificuldades de adaptações geográficas para o trabalho. (e o seu parasitismo, diga-se de passagem).

 Interessante notar que conforme a economia colonial muda o ramo focal, a especialidade africana é mais reivindicada intensificando, assim, o tráfico de africanos. No caso o autor se refere à mudança do século 17 para a mineração no sudeste ao invés dos engenhos de açúcar no nordeste.

Primeiras Ideias de Liberdade, o Suicídio e a Eliminação Física dos Senhorios

“O castigo nos engenhos e fazendas, se não requintava, em geral, em malvadez e perversidade, era não raro severo, e por vezes cruel.” Com isso, suscitava o desejo de liberdade constante (indo contra a docilidade do trabalhador escravo, apesar de às vezes o autor ter descrito assim.) A primeira ideia de liberdade veio através do suicídio para negar a condição de escravizado. 

“Depois, entenderam os escravizados que o senhorio era quem deveria padecer morte violenta, a que se entregavam os infortunados cativos. Não vacilaram um instante e puseram em prática os envenenamentos, as trucidações bárbaras do senhorio, dos feitores e suas famílias. Era a vingança a rugir-lhes na alma; era a repulsa provocada pelos desesperos que lhes inspirava o horror da escravidão.” 

Passando, então, do suicídio ao extermínio do senhorio. Já que o problema não se estava resolvido com as duas ideias anteriores, começaram as fugas e a resistência coletiva, organizando verdadeiros núcleos de trabalho.

Resistência Coletiva, Palmares, Levantes Parciais

Escapando das fazendas e dos engenhos, os escravizados pretos construíram a Confederação de Palmares. “...em Palmares os elementos aí congregados não tiveram por alvo a vingança: bem ao contrário, o seu objetivo foi escapar à tirania e viver em liberdade, nas mais legítimas aspirações do homem.”

“Os fundadores de Palmares ... procuraram refúgio no seio da natureza virgem e aí assentaram as bases de uma sociedade, a imitação das que dominavam na África, sua terra de origem, sociedade, aliás, mais adiantada do que as organizações indígenas. Não era uma conquista movida pelo ódio, mas uma afirmação legítima do desejo de viver livre, e, assim, possuíam os refugiados dos Palmares as suas leis severas contra o roubo, o homicídio, o adultério, as quais na sua vida interna observavam com rigor.”

O autor relata, ainda, outros levantes parciais e batalhas contra as incursões das forças coloniais.

As Juntas Para As Alforrias

O autor enfatiza o trabalho comprometido como meio de saída da opressão e para liberdade. No caso as juntas foi outro meio, ou seja, era o dinheiro guardado pra comprar a liberdade. E de fato o trabalho duro o africano fez mesmo, como exemplificado pela história de Chico Rei (MG). Citando o escritor Afonso Arinos, no artigo Atalaia Bandeirante, tem:

“A custa de um trabalho insano, feito nas curtas horas reservadas ao descanso, o escravo rei pagou a sua alforria. Forro, reservou o fruto do seu trabalho para comprar a liberdade de um dos da tribo; os dois trabalharam juntos para o terceiro; outros para o quarto, e assim, sucessivamente, libertou-se a tribo inteira. Então, erigiram a capela de Santa Ifigênia, princesa da Núbia. Ali, ao lado do culto à padroeira, continuou o culto ao rei negro, que, pelos seus, foi honrado como soberano e legou às gerações de agora a lenda suave do Chico Rei.”

Fenômeno que aconteceu também na Bahia, de acordo com o autor.

O Africano Na Família, Seus Descendentes Notáveis

Esse capítulo foi iniciado com a seguinte citação de Alexandre Melo Morais Filho.

“Percorrendo a história, deixando iluminar-nos a fronte a luz amarelenta das crônicas, não sabemos ao certo quem maior influência exerceu na formação nacional desta terra, se o português ou o negro. Chamado para juiz nesta causa, necessariamente o nosso voto não pertence ao primeiro.”

Finalizando, o autor acaba exaltando o caráter de miscigenação do Brasil, talvez pelo negro ser propulsor – na visão dele - de tal miscigenação, consciente que esse fator eliminaria as raças originais... (um debate muito forte sobre miscigenação ocorria nessa época, importante colocar no contexto do início do século XX, e ao combate de teorias racistas, da eugenia, de Nina Rodrigues entre outros.)  

Em outro ponto, Querino não deixa de enfatizar ainda que toda riqueza na mãos dos brancos foi fruto do trabalho árduo dos pretos. No mais, vale deixar mais essa descrição do autor...

“Trabalhador, econômico e previdente, como era o africano escravo, qualidade que o descendente nem sempre conservou, não admitia a prole sem ocupação lícita e, sempre que lhe foi permitido, não deixou jamais de dar a filhos e netos uma profissão qualquer. Foi o trabalho do negro que aqui sustentou por séculos e sem desfalecimento a nobreza e a prosperidade do Brasil: foi com o produto do seu trabalho que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio, indústria etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilização brasileira. Quem quer que compulse a nossa história certificar-se-á do valor e da contribuição do negro na defesa do território nacional, na agricultura, na mineração, como bandeirante, no movimento da independência, com as armas na mão, como elemento apreciável na família, e como o herói do trabalho em todas as aplicações úteis e proveitosas. Fora o braço propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do país, na cultura intelectual e nas grandes obras materiais, pois que, sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores nem educandos: feneceriam as aspirações mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas.”

 


livro pdf:

https://cadernosdomundointeiro.com.br/pdf/O-colono-preto-como-fator-da-civilizacao-brasileira-2a-edicao-Cadernos-do-Mundo-Inteiro.pdf

"Manuel Raimundo Querino (1851-1923) foi um dos mais interessantes intelectuais do Brasil, homem de pensamento e de ação, e um precursor em termos de cultura. Escritor, abolicionista engajado, e professor do que era à época o ensino técnico, Querino notabilizou-se como ensaísta de uma nascente antropologia brasileira, disposto à controvérsia sobre o que deveria ser uma visão satisfatória com respeito à relação entre raça e nacionalidade, e autor de livros didáticos, para formar desenhistas profissionais como ele próprio...."

sexta-feira, 19 de março de 2021

África Difícil – Raimundo Souza Dantas – Breve Nota/trechos

 I- África Difícil

- Experiência Africana de um Embaixador Negro, livro publicado em 1965.

- Relato pessoal em forma de diário no período de dois anos em que foi embaixador do Brasil em Gana.

- Sendo Gana o epicentro das lutas revolucionárias pela independência, um período de mudanças rápidas onde exigia uma constante transformação, Gana encarava bem essa época conseguindo avanços em diversos setores e aspectos, apesar de ainda, no geral, ser pouco para os desafios postos de pobreza e subdesenvolvimento da maioria da população ganense.

- Mas a busca era constante por autonomia e formas autênticas de resolução de seus problemas (Gana). A tentativa existia mesmo tendo que recorrer em alguns aspectos aos ‘ex-colonizadores’. Pois, novamente, o desenvolvimento deveria ocorrer num curto espaço de tempo, sendo uma experiência única também para a África Preta.

- Inegável a presença de ajuda estrangeira, o autor destaca algumas presenças, Israel, Eua, França, Alemanha e Rússia. Evidenciando um certo distanciamento no convívio com os africanos desta última.

(...) “Contudo, não é pequena a influência comunista na África, embora já tenha sido maior. Dizia-se, por exemplo, que países como Gana, do grupo dos revolucionários agressivos, marcados pela influência comunista, pressagiavam dependência crescente face à Moscou, Pequim e Havana, apesar de sua ambição de vestir conforme figurino próprio. O exemplo de Gana, de cujo processo fui testemunha por mais de dois anos, prova que a influência em questão diminuiu muito, bastante mesmo, merecendo uma retificação no que tange ao julgamento das tendências dominantes. Vejamos os fatos históricos: apesar do decantado neutralismo, Gana realmente esteve muito mais voltada para o mundo comunista. Houve momentos em que os observadores consideraram Nkrumah completamente irrecuperável, exatamente na época em que iniciava eu a missão diplomática de que me honrarei para sempre. Foi nos fins de 1961, o dirigente voltava de longa viagem pelo mundo socialista, tendo se demorado na Rússia e na China, onde deu largas à sua admiração pela rapidez do progresso naquelas áreas. Retornou à Gana profundamente impressionado, mas muito vacilou, embora tenha assumido algumas posições e adotado soluções bastante características. O seu partido, o CPP, enveredou por uma ação socializante e mais ampla possível. Como se sabe, a base comunitária africana favorece, por si só, um sistema de vida mais próximo ao socialismo, mas está muito longe de facilitar o comunismo. Dessa realidade comunitária aproveitaram-se os ideólogos do CPP, para desencadear sua ação de propaganda de um ideário radical. Reconheceu porém Nkrumah, após vacilações e recuos, a impossibilidade de promover o desenvolvimento de seus país seguindo semelhante caminho. Recentemente, informações que nos chegaram, muito precárias, como tudo que sobre a África colhemos de terceiros, porque manipuladas ou distorcidas, dão conta de retificações levadas a efeito por Nkrumah, retificações essas sob o argumento de que Gana não possui atualmente os meios de realizar o socialismo. Assim é que, entre outras, adotou recentemente medidas econômicas liberais, fazendo inclusive o elogio do capitalismo. Conforme essa nova orientação, Gana terá uma economia mista, não pensando impor qualquer limitação aos investimentos privados. Justificando-se, acentua o líder ganense que, antes de promover o socialismo, para o qual o seu país não possui ainda os meios necessários, prefere preocupar-se agora em possibilitar os fundamentos reais sobre os quais poderá erigi-los, que são a modernização da agricultura e a industrialização de Gana. O que prova tudo isso é que os africanos buscam mesmo, cometendo erros e acertos, de experiência em experiência, ao longo de sua revolução, a conquista de um equilíbrio, repito, para substituir o que lhe foi destruído pelas forças e a prática colonialistas. (...)” pp.19-20.

 

II- Missão Condenada: Diário

- O autor inicia seu relato pelo seu retorno à África relembrando sua primeira estada em 1961. Agora de volta, em fevereiro de 1963, após a renúncia de Jânio Quadros, transformando em pesadelo o que outrora fora conquista. Foram 14 meses duros na África. Eis sua volta de férias.

- Adiante o autor relata sua rotina de embaixador, suas pretensões de leituras e releituras além de possibilidade de dedicação à escrita literária, apesar de parco tempo livre. Na sua volta de 2 meses de férias percebe uma atmosfera diferente em Acra.

- “Sem data — Encontro Acra diferente, sem a atividade e a animação que lhe davam ares de grande capital; Parece vencida, para não dizer morta. Como que existe um esmorecimento geral, perdeu o dinamismo, não mais existe a vitalidade antiga. O ritmo é outro, tudo marcha lentamente. A Acra de hoje não é nem a sombra daquela cidade movimentada, alegre, espírito triunfal, de quando aqui cheguei pela primeira vez. Talvez seja consequência dos momentos difíceis passados com o clima de terror inaugurado por elementos da oposição fantasma a Nkrumah, os quais atentaram vezes seguidas contra a sua vida, no ano passado. Predomina a incerteza, algum medo, existe sem dúvida retraimento e aguarda-se modificações de métodos e linguagem. Mas, não nos precipitemos.” (p.30)

 

- Acra certamente era a capital das lutas e o autor compara a cidade com Dakar e Lagos, mas certamente menos moderna, depois da comparação diz um ponto que acho interessante.

“Acra, pois, feia e desarmônica, é mais genuína do que outras capitais, além de ser mais representativa, sendo como foi, e como ainda o é, o grande centro irradiador do nacionalismo africano, cenário das conferências e dos encontros que mais influíram no aceleramento do processo de descolonização. Não é uma cidade sem história, tem um passado que lhe empresta orgulho e substância. Muito antes dos europeus se instalarem em suas praias, com os seus castelos e fortes, o que começou a ocorrer no Século XIV, Acra já tinha história, era um dos centros mais importantes do período pré-colonial, ainda agora insuficientemente conhecido, pois muitos historiadores europeus consideram a história africana apenas a partir da presença dos ocidentais no Continente Negro. Para eles a África não tem História a não ser a partir da colonização, considerando-a antes daquele período apenas como terra de tribos incapazes de progresso, em perpétuas guerra de destruição, A verdade, porém, é muito outra. Graças aos esforços de pesquisadores da História africana, destacando-se entre eles estudiosos nascidos na própria África, começamos a conhecer as grandes civilizações que se desenvolveram no Continente Negro, seus períodos de grandeza e de declínio.”

(...)

 

- “13, fevereiro — Compareci esta tarde à minha primeira recepção diplomática, após reassumir o posto. Foi no Alto Comissariado do Canadá, onde encontrei praticamente os personagens de sempre. Conheci porém o famoso Martin Appiah Danquah, o cérebro da política cacaueira de Nkrumah. É um homem simpático, sorridente como todo ganense. Falou de seu desejo de nova visita ao Brasil, dizendo guardar boas recordações da Bahia. Esteve ele em Itabuna e Ilhéus, correndo parte da zona cacaueira. Conversamos longo tempo, perguntando-me ele, a certa altura, se era verdade o que diziam sobre os meus antepassados. Queria, aliás, saber ao certo se realmente os meus bisavós foram ewes ou ashantis, respondo-lhe eu ignorar se procediam mesmo de uma das duas raças.

— De qualquer forma, deve sentir-se em casa, não? — indagou, com uma gargalhada”

 

- Contudo, apesar da ancestralidade, o autor se vê oriundo duma civilização diferente, apesar de reconhecer certos laços.

- O autor continua seu diário onde perpassa pelos eventos diplomáticos, onde visita um professor que de certa maneira se opõe a Nkrumah, outro lhe pergunta se há discriminação racial no Brasil e seu gesto mesmo não muito enfático na resposta demonstra que sim, e isto de certa maneira o atormenta, relatando desanimo em sua missão por diversas vezes e por variados motivos.

- Apesar de citar o temperamento difícil de Vivaldo Costa de Lima, relata seus avanços nos estudos culturais e religiosos, mas destaca os africanos Nana Kobina Nktsia, da Universidade de Gana e Kofi Antubam, do Achinota College.

 

***

- E já em outro encontro...

 

“O professor Ciril Fiscian relembrou-me a homenagem prestada pela comunidade ‘Tá-bom’ ao Embaixador do Brasil e respectiva família, dizendo não ter comparecido por motivo de doença. Vale a pena rememorar a recepção, pelo significado de que se revestiu. Tudo correu assim: um ganense falando excelente português, cujo nome me escapa no momento, procurou-me certa manhã na Chancelaria, para informar-me do desejo da comunidade brasileira em Acra. Combinamos, para o dia seguinte, encontro com um personagem devidamente credenciado do chamado povo ‘Tá-bom’, o Reverendo G. K. Nelson, capelão do Exército de Gana, que me ofereceu breve informe sobre a fundação e desenvolvimento da nossa comunidade”... p.44 (...)

 

- página 47 – discurso Nelson...

 

"Excelências. Em nome do Chefe, da Rainha e do povo que formam esta comunidade, em Acra, sinto-me honrado em dar as boas-vindas ao Senhor Embaixador R. Souza Dantas, do Brasil, a esta comunidade e também a Gana.

"Já é por demais sabido que a comunidade brasileira de Acra se compõe de descendentes dos imigrantes brasileiros que saíram da Bahia e aqui chegaram em 1836. E como não poderia deixar de ser, foi logo desde o início nossa grande vontade, ao oferecer uma homenagem ao Senhor Embaixador, aproveitar a ocasião para render sincero tributo ao Nii Ankrah de Obtoblohum. Pois foi ele o nosso grande anfitrião, vez que hospedou em seu palácio os nossos antepassados que pisaram pela primeira vez em solo ganense (na ocasião a antiga Costa do Ouro).

"Nossos bisavós, por sua vez, logo adquiriram a amizade e logo se tornaram merecedores da grande estima do povo Ga, pois que muito ajudaram este povo financeiramente e na luta contra os outros povos da terra.

"Nossos antepassados também contribuíram de maneira decisiva para o engrandecimento da vida social de Acra e de Gana, e foram eles que introduziram aqui muitos hábitos civilizados, como, por exemplo, o uso das roupas europeias, o querosene.

"É bem verdade que nenhum de nós aqui presente já visitou o Brasil, mas isso não importa: continuamos a considerar o Brasil a nossa terra-mãe, e esperamos ansiosamente, Senhor Embaixador, por esta oportunidade de congraçamento, em Gana. E digo mais: nós nos sentimos no dever de lhe oferecer esta recepção, vez que o Senhor Embaixador é o representante legítimo de um país que nós consideramos, como já disse, nossa terra-mãe.

"E esperamos assim que, enquanto o Senhor Embaixador permanecer em Gana, possa contar com a nossa sincera ajuda a qualquer momento, mas logicamente, sem infringir de leve sequer, a nossa lealdade ao Governo de Gana. E esperamos, também, que o Senhor Embaixador possa ajudar a qualquer membro desta comunidade, se aparecer ocasião para tal.

"Senhor Embaixador: o Chefe, a Rainha e os membros da comunidade brasileira em Acra lhe desejam uma estada feliz em Gana. Muito obrigado, Fortunato Antônio Nelson, Nii Azumah III”.

 

 

- página 50 – 25, fevereiro...Lendo Os Condenados da Terra...

 

25, fevereiro — Leitura de Les Damnés de Ia Terre. Muito se escreverá ainda sobre o processo de descolonização, mas acredito que nenhum outro livro como este de Frantz Fanon. Além de terrificante, pelos aspectos que passa em revista e analisa, como também pelos problemas que examina, é uma verdadeira apologia da violência. Para Frantz Fanon, a violência é a única arma viável contra o colonialismo. Através da introspecção e da observação, cheio de cólera e paixão, êle apresenta um quadro que se poderia dizer apocalíptico. Para ele, só há um valor, só uma arma, só um princípio: a violência. Afirma que a violência dos colonialistas só pode ser vencida pela violência. Livro terrível, que arrepia e arrebata. Realmente, a atmosfera da descolonização foi a da violência, continua sendo a da violência, será a da violência, mesmo quando ela pareça ausente.”

 

-  página 52 – 1º março..

 

1º, março — Começam a enfeitar a cidade, para as comemorações da Independência. As mesmas decorações dos anos anteriores, mal apercebidas pelo povo. Mas não será de outra natureza, essa indiferença? A verdade é que alguma coisa mudou. A vida torna-se cada vez mais cara, a miséria cada vez maior. Contudo, Gana é o país mais bem aparelhado, aquele que oferece melhores perspectivas. As dificuldades passarão, pois além de ser bastante rico, imensas as suas possibilidades de desenvolvimento econômico, os seus dirigentes empenham-se, com energia, comandados por Osagyefo, em plantar uma indústria verdadeiramente africana. Para isso, porém, tornam-se necessários sacrifícios imensos. Entre os projetos em realização, o que maiores sacrifícios têm reclamado é o da barragem do Rio Volta, que fornecerá energia para uma indústria nascente e diversificada.”

 

***

- página 65 – li entre outros...

 

“Li, entre outros documentos, breve depoimento de Silvanus Olympio, Presidente da República do Togo. Fala aquele descendente de brasileiro, com um toque quase patético, sobre o que, na sua opinião, deveria ser a unidade africana. Avistei-me com Silvanus Olympo por três vezes, em Lomé, por ocasião das festividades comemorativas da Independência do Togo, em 1962, às quais compareci como representante do governo de meu país, na qualidade de Embaixador. Deram-se assim os três encontros: o primeiro, na mesma tarde em que cheguei a Lomé (era a minha segunda viagem à capital togolesa). Foi em seu gabinete de trabalho, no Palácio Governamental, quando o sondei sobre a possibilidade de uma viagem sua ao Brasil, dando-lhe ao mesmo tempo ciêncía do interêsse do meu país em manter relações diplomáticas com o seu, aquele da área atlântica onde a comunidade brasileira é mais numerosa. A segunda vez foi no desfile da Independência e, o terceiro, no banquete oferecido no Benin Hotel. Falando para a esposa, dissera ele, sorrindo para minha mulher, ao ser-lhe ela apresentada:

- Veja você como nos parecemos todos. Em tudo, mas em tudo mesmo. Na côr, no gosto pela vida, na gentileza. Em tudo, em tudo mesmo. Somos irmãos, estamos apenas separados pelo oceano — e riu, o seu riso simpático e aberto.

No Rio, oito meses depois, num tórrido fim de tarde de janeiro, escutei pelo rádio a notícia de sua morte, assassinado por um dos que sustentaram o golpe de Estado que o derrubou do poder.”

(...)

 

- página 72 – 13 de março...

 

13, março — Grande sensação na cidade de Acra. Os responsáveis pelos atentados à bomba, ocorridos no ano passado, estão em julgamento. Os nomes de Adamafio e Ako-Adjei aparecem como autores e animadores do plano de derrubada do regime de Osagyefo. São aqueles dois antigos Ministros, e mais o Secretário administrativo do Partido da Convenção Popular, Coffie Grable, acusados diretamente, constando o processo, inclusive, haver o primeiro fornecido as bombas para os atentados contra Nkrumah. Enquanto lia o relato da Suprema Corte, tinha presente ao espírito a figura arrogante, antipática e grosseira do antigo Ministro das Informações, Adamafio. Lembro-me da primeira visita que lhe fiz, acompanhado de homens de negócios do Brasil. Recebeu-nos éle com manifesta má-vontade, sequer levantou-se. Ouviu-nos com impaciência, passando um olhar indiferente pelos planos que lhe foram exibidos, para terminar desencorajando-nos com a seguinte frase:

— Dentro de um ano seremos uma República Socialista e então enxotaremos todos os estrangeiros exploradores de Gana. Por conseguinte, não há muita oportunidade para negócios desse tipo.

Ê um personagem antipático e antipatizado. O povo tinha-lhe horror — e ninguém mostrou surpresa na madrugada em que correu a notícia de sua prisão, como traidor. Ninguém entendeu foi estar Ako-Adjei envolvido na trama. Quase todos mostraram-se perplexos. Com desprezo, alguns tentaram explicar a sua traição:

— Trata-se de um intelectual.

Acredita-se que os implicados nos atentados, em atendimento ao que exigem as multidões do CPP, serão condenados à morte.”

(...)

 

- pág 90 – 24 abril...

“..decisão de deixar o posto. Espero fazê-lo em agosto. Impossivel ficar mais tempo. As divergências são grandes. Seria inútil permanecer. Não concordo em que sejamos apenas informantes. Nossa presença deveria ser marcada pela agressividade, através uma ação positiva. Da maneira que vamos, transformamo-nos numa repartição puramente burocrática. Para que serve a presença do Embaixador? Apenas para mostrar-se nos coquetéis e nas recepções?”

(...)

 

- pág. 95 sem data... final do diário e retorno...

 

Sem data — Penso regressar em definitivo, ao Brasil, dentro de mais um mês. Já tenho inclusive os termos da carta ao Presidente Goulart, solicitando exoneração do honroso posto. Pretendo acentuar que não foi feito muito, tendo como objetivo o incremento de nossas relações comerciais, apesar das inúmeras solicitações no sentido de providências que, sem dúvida, reconheço não poderiam ser tomadas sem maiores estudos, relacionados com problemas de trocas, pagamentos, tarifas e fretes. É meu dever registrar que a nossa Embaixada jamais esteve devidamente aparelhada para funcionar eficazmente. Nada foi, realmente, feito para o incremento de nossas relações comerciais, tarefa que requereria atuação agressiva, na base de esquema inspirado no esforço coordenado e conjunto das diversas representações brasileiras nos países africanos, com o auxílio dos vários órgãos oficiais e privados que, direta ou indiretamente, influem no processo da produção exportável e sua comercialização. Não penso em escusar-me pelas coisas que deixaram de ser feitas, mesmo sem contar com a devida aparelhagem, mas não poderei deixar de referir-me ao que poderia ter sido a nossa ação em Gana, caso realmente tivéssemos tido condições de realizar tudo quanto foi planejado. Sei que não farei nenhuma carta nesses termos. Vai ser um pedido de exoneração puro e simples, alegando motivos de saúde. A verdade é que tudo não passou de um drama, que infelizmente não sei se o poderei dar aqui como encerrado para sempre.

Mas esse é o meu desejo. Mais do que isso, é o meu propósito.

(Acra, Gana, África Ocidental)”

 

***

Notas e trechos

Fuca, Insurreição CGPP

 

Perfil – Raimundo Souza Dantas

Fonte:  http://www.acordacultura.org.br/herois/heroi/raimundodantas

Nasceu em Estância/SE, em 11 de fevereiro de 1923. Filho de família humilde, de mãe lavadeira e pai pintor de parede. Raimundo desde muito cedo teve de trabalhar, aprendendo vários ofícios. Foi aprendiz de ferreiro e de marceneiro, e, ainda em Estância, foi entregador de embrulhos de uma casa comercial. Aos dezesseis anos foi trabalhar numa tipografia. Foi nessa tipografia que começaria o seu processo de alfabetização. Mudou-se para Aracaju passando a trabalhar na tipografia onde eram publicados os jornais de Estância e da própria capital sergipana.

Foi nessa época, já nas oficinas do Correio de Aracaju, ouvindo várias leituras de textos de Jorge Amado, Machado de Assis e Marques Rebelo, feitas com o auxílio do amigo Barbosa, um amante da literatura moderna, que consolidou seu letramento. Com ajuda do amigo Armindo Pereira, passaria a escrever no periódico Símbolo.

Aos dezoito anos (1941), chegou ao Rio de Janeiro onde começou a trabalhar no semanário Diretrizes, depois passou a colaborar nos periódicos Vamos Ler, Carioca e Diário Carioca, onde atingiu o posto de redator. Em 1944 escreveu seu primeiro livro, o romance, “Sete Palmos de Terra”, com uma linguagem simples e repleta de recordações de Estância.

No Rio, tornou-se amigo de grandes escritores, como Graciliano Ramos. No ano seguinte, em 1945, lançava seu segundo livro, de cunho autobiográfico, e fundava o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com Solano Trindade, Aladir Custódio e Corsino de Brito. Essa associação lutava pela inserção da população afro-brasileira no processo de redemocratização, através da luta pela melhoria das condições de trabalho e de educação.

Já como jornalista consagrado casou-se com Idoline com quem no ano seguinte teve seu primeiro filho, Roberto. Em 1949 publicaria mais um livro, desta vez para a Campanha de Educação de Adultos do Ministério da Educação e Saúde, onde relatava toda a sua trajetória de vida.

Foi nomeado oficial de gabinete do governo de Jânio em 1961, para em seguida ser designado a Gana como o primeiro embaixador negro do Brasil, em já nos anos 70, assumiu a embaixada da Argentina (1976).

Entre as duas nomeações, trabalhou no serviço público federal como técnico de assuntos educacionais, cabendo-lhe organizar no MEC o Setor de Relações Públicas. Foi membro do Conselho Nacional de Cinema, INC, e integrou a comissão para criação de serviços educacionais nos Museus; participou também do Conselho Estadual de Cultura, no Rio de Janeiro.

Obras publicadas: Sete palmos de Terra, 1944. Agonia, 1945. Bernanos e o problema do romancista católico, 1948. Solidão nos campos 1949. Vigília da Noite, 1949. Um Começo de Vida, 1949. Reflexões dos 30 anos, 1958. África Difícil, 1965.

Faleceu no Rio de Janeiro em 2002.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Mogobe Ramose: Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana – breve nota

Este artigo de Mogobe Ramose tem como objetivo assegurar a legitimidade da Filosofia Africana assim como de Filosofias próximas que sofreram a deslegitimação a partir dos ideais do Ocidente de colonização, escravidão e o violento racismo. E ainda evidencia essas filosofias silenciadas como libertadoras, a exemplo da Filosofia Ubuntu.

O Significado da Dúvida.

O autor revela que dois pilares, em suma, ancoravam a colonização: a religião que através do cristianismo visava converter o mundo ou todo o dito novo mundo. E segundo, a ideia filosófica de que somente o Ocidente seria dotado de racionalidade, tal alegação personificada na afirmação aristotélica “o homem é um animal racional”, ou depois por Papa Paulo III que declarava que “todos os homens são animais racionais”. Não considerando assim, nessa afirmação, os africanos, os ameríndios, os australasianos e, muito menos, as mulheres como seres humanos racionais. Isso se caracteriza na negação Ontológica dos Africanos, a negação da humanidade e, portanto, a dúvida sobre a existência de uma Filosofia Africana.

Sobre o Significado de Filosofia.

O autor aponta que etimologicamente a filosofia significa amor à sabedoria, e é o ser humano que está associado à busca dessa sabedoria.  Sendo assim, ela é onipresente e pluriversal. Pode-se então dizer que a Filosofia Africana remonta de tempos imemoriais até nossos dias. E mais, ela surge através do fundamento e da perspectiva pertencente à autoridade. “O exercício desta autoridade situa a questão no contexto de relações de poder. Quem quer que seja que possua a autoridade de definir, tem o poder de conferir relevância, identidade, classificação e significado ao objeto definido.” (Ramose:2011, p8) Desse modo, o poder do ocidente, através da brutalidade do colonialismo, estabeleceu a perspectiva ocidental como universal.

Pluriversalidade e Exclusão Filosófica.

Dessa forma, o autor propõe uma mudança de paradigma e trata de pluriversalidade ao invés de universalidade. E que essa universalidade se faz na prática de uma particularidade a fim de excluir outras, eliminando a pluriversalidade do ser. Neste trecho se postula que, “Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser. (Bohm, 1980, 30-31).”

Contudo, a particularidade é uma premissa para a filosofia apenas se for reconhecida como uma forma de compreender e interagir com a pluriversalidade do ser, e não para excluir outras filosofias.

As Implicações da Exclusão Filosófica.

- Anular a validade da particularidade como o ponto de partida da filosofia.

- Esta exclusão está em busca de outros fins que não a própria filosofia. Trata-se de uma tentativa de reivindicar para os protagonistas da exclusão o direito de ser o solo determinante do significado da experiência, do conhecimento e da verdade para todos.

-A obrigação moral de reconhecer a legitimidade da necessidade ontológica de continuar sendo (ser-sendo) para contrapor a morte ontológica programada pelo poder da universalidade.

-esse reconhecimento ontológico é o convite para estudar outras filosofias a fim de atingir a pluriversalidade do ser na filosofia.

- “A quinta implicação derivada da filosofia da exclusão é que títulos como A História da Filosofia (Copleston), Filosofia, História e Problemas (Stumpf and Fieser, 2002) deveriam ser ajustados por especificidades como em Uma História Crítica da Filosofia Ocidental (O’Connor, 1964). A atenção voltada para a história da filosofia deveria sempre lembrar cuidadosamente da dívida da filosofia grega para com o antigo Egito africano. Ela deveria também levar em consideração o mercado escravocrata transatlântico que separou forçosa e fisicamente povos da África de sua terra natal e seus parentes. A diáspora africana é, portanto, parte integrante da história da filosofia Africana.”

Filosofia Africana.

Aqui o autor indica que o uso da terminologia África (ou Africana) não se dá sem ressalvas quanto à sua origem estrangeira. E ao afirmar que não há bases ontológicas para negar a existência de uma filosofia africana e que a definição de filosofia perpassa uma narrativa de poder epistemológico, então se difere o filosofo profissional, que nasceu na África mas que possui um pensamento calcado nas epistemologias do Ocidente, como não sendo uma filosofia africana. Em suma, a filosofia não está dissociada do contexto histórico-intelectual em que ela pertence e nem do contexto social em que ela nasceu. E que o objetivo primordial da filosofia é a libertação humana.

O Reino Político na África

Antes de abordar a filosofia ubuntu, Ramose trata da questão do Reino político trazida por Kwame Nkrumah, que ao enunciar e enfatizar a consolidação do “reino político,” Nkrumah estava de fato tratando da necessidade da liberdade econômica da África colonizada, ou seja, independência econômica, para além da independência nominal de Gana e de outros países africanos. Em suma, criou-se um outro cenário no qual as riquezas e recursos naturais, minerais e humanos ainda estavam sob o domínio estrangeiro do colonizadores, mas agora de uma forma indireta. O que foi denominado de Neocolonialismo.

Com isso, deve-se ter ressalvas aos ‘pós’ no campo intelectual, a exemplo filosofia “pós-colonial”, (pois ainda se está, na verdade, no contexto de neocolonialismo.)

Filosofia Ubuntu

Ubuntu é um gerundivo (gerundive) abstrato que exprime a filosofia praticada pelos povos da África falantes do Bantu. Ele compartilha o caráter de gerundivo (gerundive)– isto é, a ideia de tornar-se, Ser (be-ing) e ser como manifestações do movimento como princípio do Ser- (be-ing)- com os verbos egípcios antigos, wnn(unen) “existir”, d d (djed) “ser estável”, “durável” e hpr (kheper) “tornar-se” (Obenga, 2004, 37-39). Como os antigos verbos egípcios referidos, a concepção filosófica ubuntu do mundo é que “Coisas não tem a fixidez e inflexibilidade que acreditamos que elas tenham. As coisas são mutáveis e em movimento na Terra, no céu, em baixo d’água, etc. A Terra e o céu, eles mesmos se movem” (Obenga, 2004, 39; Ramose, 1999, 50-53). Um dos problemas com as muitas definições e descrições do ubuntu é que ele é apresentado como uma filosofia da paz, ou mais especificamente, da submissão e infinita capacidade de perdoar (Daye, 2004: 160-65) sem considerar a violência como uma condição de possibilidade herdada ontologicamente para a sobrevivência dos adeptos da filosofia ubuntu. Esta omissão na realidade descaracteriza o ubuntu tornando-o suscetível a experiências de pensamento, por vezes muito estranhas que o retratam sem qualquer fundamento em sua antropologia, cultura e história. Esta tendência é dominante na África do Sul. 
(Ramose:2011, p16) 


Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana

(On the legitimacy and study of African Philosophy)  

M. B. Ramose, University of South Africa, Pretoria 

Tradução: Dirce Eleonora Nigro Solis/ Rafael Medina Lopes/ Roberta Ribeiro Cassiano

RAMOSE, M. B. Ensaios Filosóficos, Volume IV - outubro/2011

“Mogobe Ramose obteve primeiramente o título de bacharel em Artes na University of South Africa. A isto se seguiram os títulos de bacharel, licenciado e doutor em Filosofia obtidos na Leuven University (Katholieke Universiteit Leuven) na Bélgica. Possui também o título de mestre em Relações Internacionais da London University. Suas áreas de especialidade e principais interesses são Filosofia Africana, Filosofias da religião e do direito, defesas étnicas e filosofia das relações internacionais. Possui uma publicação vasta nas áreas mencionadas e seus trabalhos continuam a atrair a atenção de muitos estudiosos. Lecionou em duas universidades europeias e quatro universidades africanas, incluindo dois seminários católicos. Atualmente é professor extraordinarius na University of South Africa.”


nota por Fuca, insurreição cgpp. 2020.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

(Livro) Chancellor Williams: O Renascimento da Civilização Africana (pdf)

Baixar em pdf: https://drive.google.com/file/d/1FkBk1qJM0UBXYFY7-RY9vGkBMWoJb99W/view

O RENASCIMENTO DA CIVILIZAÇÃO AFRICANA
Chancellor Williams

Este livro [edição de 1961] é uma afirmação da Educação e uma defesa da Democracia Cooperativa como forma de vida para a nova África. Contém também um relatório sobre estudos sociais e as dimensões filosóficas e espirituais da vida africana e suas perspectivas para o futuro. Assim como em seu livro mais proeminente, A Destruição da Civilização Preta, Chancellor Williams fornece estratégias e táticas perspicazes para organizações, ativistas e acadêmicos sérios que trabalham na agenda do Renascimento Africano.

A ideia de unidade Pan-Africana, a união de um bilhão de pessoas africanas no mundo, não é apenas fantasia. Essa demanda surge em um momento em que a própria sobrevivência cultural e econômica do povo africano está em jogo. O impulso para tornar a unidade cultural, a continuidade histórica e a cooperação econômica do mundo africano uma realidade é a mensagem que o Chancellor Williams apresenta neste livro.

Chancellor Williams (1898-1992) foi escritor, professor universitário, historiador e o autor de "A Destruição da Civilização Preta: Grandes Questões de uma Raça, entre 4500 a.C. e 2000"."




sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Leiam o Jornal Yanda Panafrikanu - 4 edições de 2020

Eu, Fuca, fui convidado e colaborei com um conto no número 3 e com um texto no número 4. Enorme satisfação. No mais: confiram que o editorial é pesado, e um órgão oficial de difusão do pan-africanismo.

***

YANDA quer dizer REDE em kimbundu, língua bantu concentrada no noroeste de Angola, nomeadamente nas províncias de Luanda, Bengo, Malanje e Kwanza Norte, e falada pelo povo Ambundu. A ideia para o nome YANDA PANAFRIKANU partiu de diferentes imagens de rede, tanto pela nossa missão de uma construção política em rede, entre filhos e filhas no continente africano e na sua diáspora, para fortalecermos diálogos e ações, como também na perspectiva de uma rede que é lançada ao mar, buscando a autonomia para pescarmos as nossas ideias, identidades, culturas e alimentos. YANDA é simultaneamente trabalho colectivo e trabalho autônomo numa luta comum da negritude.

Página do Jornal Yanda Panafrikanu: https://www.facebook.com/pg/Yanda-PanAfrikanu-105000434608944/posts/

Segue as edições:

YANDA PAN-AFRIKANU - ANO I, Nº4

https://drive.google.com/file/d/1PoQjjzHHrL_w68iP1dzgn4-ju8HUc5CP/view

YANDA PAN-AFRIKANU - ANO I, Nº3

https://drive.google.com/file/d/10j1OFhjQdh5IeuYllL09kLJxjEiDsotk/view

YANDA PAN-AFRIKANU - ANO I, Nº2

https://drive.google.com/file/d/1ptH-WCSJwXR9iB8zXY2DKLxXPLvx8-0g/view?fbclid=IwAR2lgkTo8Roje7B2E3LgjoDP4MGpRl3nR7hNZxqPUiefWbfIndJI9_wsbVY

YANDA PAN-AFRIKANU - ANO I, Nº1

https://drive.google.com/file/d/1XDP_IWDLoebYysXq1YRlIq_o-3ikbB6Z/view?fbclid=IwAR0ekUM4qqLmmAZC9_EonGmh1TdgztN3bkO-vf1DXv3_EJ7Cc4jLuJ0iY1w


*O logotipo foi concebido por Cintia Ataliba, inspirado na ideia de redes como raízes ou rizomas conectados desde o continente até à diáspora.


sábado, 16 de janeiro de 2021

Podcast: Kitabu - Kwame Ture - Depois da Roda - out/20

Iniciativa da Biblioteca Comunitária Assata Shakur, imensamente grato pelo salve e pela troca que fizemos!!!


Podcast: KITABU - Kwame Ture - Depois da Roda - out/20

Descrição do episódio
Estamos de volta, hein?

Dessa vez pra falar sobre o grande Kwame Ture mais conhecido como Stokely Carmichael, que fez parte do SNCC e do partido dos panteras pretas.

O livro é: do poder preto ao pan-africanismo e para isso convidamos uma pessoa muito especial, o Fuca. Fuca é rapper do grupo Insurreição CGPP e tem traduzido o Kwame Ture. Vai perder? Da o play.

Confira mais do trabalho do Fuca através do blog https://insurreicaocgpp.blogspot.com/?m=1


ou pode dar o play aqui também:



Sigam a página da brilhante Biblioteca Comunitária Assata Shakur em todas as redes sociais que possuir.




quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

JALIL A. MUNTAQIM - A LUTA NACIONAL E INTERNACIONAL

A LUTA NACIONAL E INTERNACIONAL

Rumo a uma Nova Estratégia Global Revolucionária Pan-Afrikana

Por Jalil A. Muntaqim

Para compilados de textos em pdf aqui: Jalil Mutaqim - Escritos da Prisão

https://drive.google.com/file/d/1T-nw7vNcH5eD8KtFQ7OLbl3w_Wh7UEiD/view?usp=sharing

Estamos lutando por uma sociedade sem racismo e sem exploração, mas muitos não sabem que tipo de governo e sistema social isso implicaria. Portanto, pode parecer uma afirmação contraditória, mas eu sou da opinião que se este ponto não está evidente para o povo, então o povo não saberá onde precisa direcionar suas energias. É essencial que os revolucionários distribuam materiais e propaguem informações que forneçam a compreensão e a direção sobre o objetivo final da revolução. Os revolucionários devem assumir a responsabilidade e demonstrar o que propagam em realidade, atendendo às necessidades do povo. Por outro lado, se o povo não decide assumir a responsabilidade pelo tipo de sociedade em que deseja viver, não deve reclamar de sua opressão. Ser revolucionário significa ter um compromisso político e assumir a responsabilidade por esse compromisso.

No que diz respeito à autodeterminação Afrikana, nacionalidade e independência nos Estados Unidos, deve-se entender que os Estados Unidos são uma nação de colonos. A evolução histórica deste país é baseada na colonização e dominação de nativos americanos, Afrikanos, mexicanos/porto-riquenhos e asiáticos por colonos europeus. O sucesso desses colonos europeus no processo de colonização fez dos Estados Unidos a nação mais poderosa do mundo. Ainda assim, os conflitos socioeconômicos internos persistem, devido a forma como os Estados Unidos passaram a existir. A resolução dessas contradições/conflitos pode resultar na dissolução dos Estados Unidos, à semelhança do que aconteceu na URSS. Portanto, postula-se que a separação/independência pode ser o método para resolver essa contradição. Esta é uma abordagem particularmente viável à medida que os povos que são ‘colonizados domésticos’ nos EUA quiserem estabelecer sua soberania, e não se eles têm o direito de fazê-la. Ao tomar essa decisão, a luta manifestada por um movimento de independência muda inevitavelmente as dimensões socioeconômicas e políticas deste país. Afeta o determinante histórico, bem como o fundamento moral/espiritual cujo esta nação foi fundada. A luta pela libertação nacional dos povos que são colonizados domésticos obriga este país a ser responsável por esses colonizados. Ela força o país a considerar sua história, como seu povo vive em relação aos meios de produção e como a riqueza do país é então distribuída.

Uma vez que os EUA estão novamente ativos no continente Afrikano, o Afrikanos nos EUA devem se preocupar em como isso os afeta internamente. Essa ação dos EUA deve fazer com que a OUA se torne mais responsiva às necessidades do povo Afrikano. Para resolver o problema geral na Somália e em outras áreas da Áfrika, a OUA deve buscar os meios e métodos para estabelecer um governo somali e garantir a reforma democrática em outras partes do continente. Infelizmente, só depois que a Áfrika desenvolver uma força militar representativa intracontinental, a Áfrika será capaz de se estabelecer seriamente perante os assuntos globais. O que foi feito na tentativa de resolver a luta destrutiva na Libéria oferece possibilidades quanto ao que precisa ser desenvolvido em todo o continente Afrikano.

Em última análise, trata-se do problema do combate ao capitalismo internacional. No conceito marxista de desenvolvimento socioeconômico e nas relações das pessoas com os meios e o modo de produção, existe uma grande contradição entre dois grupos sociais. Esses grupos são identificados como a burguesia, os proprietários e controladores dos meios de produção; e o proletariado, os trabalhadores e operários que produzem riqueza para a burguesia. Esses antagonismos de classe estão diretamente centrados na distribuição da riqueza produzida pelo proletariado. Atualmente, a classe burguesa evoluiu para um corpo internacional de estrategistas globais, que continuam a se apropriar da riqueza do corpo internacional de proletários.

Nos últimos quinze anos, particularmente durante as presidências de Carter, Reagan e Bush, o corpo internacional de estrategistas globais, representando os interesses da classe burguesa, consolidou a hegemonia do capital monopolista. Essa consolidação evoluiu com o advento do G-7, da OTAN, do FMI, do Banco Mundial e da influência dominante dos EUA na ONU. Isso inclui outras organizações não governamentais (ONG’s), como a Comissão Trilateral, o Grupo de Bilderberg e órgãos supranacionais semelhantes. Em virtude dessas organizações internacionais conectadas e unidas por meio de uma rede de entidades corporativas, tem havido uma ascensão em direção a uma nova ordem internacional.

Com a dissolução da URSS comunista, que originalmente deu origem à internacional comunista, a classe do proletariado foi despojada, globalmente, de representação internacional. Embora existam organizações como a Organização Internacional do Trabalho e outros fóruns trabalhistas da ONU, elas foram cooptadas pela burguesia internacional.

É possível, então, compreender o desenvolvimento das relações internacionais com base nos determinantes econômicos e entender como esses determinantes se desenvolvem tanto no campo nacional quanto no internacional. Dentro da classe do proletariado, os esquerdistas continuam a se opor ao domínio do monopólio capitalista, mas estão desordenados e sem um centro de gravidade para a liderança, originalmente detido pelo Partido Comunista da URSS. Atualmente, frentes revolucionárias como a Brigada Vermelha, a Action Directe e a Facção do Exército Vermelho estão envolvidas em discussões sobre o futuro de seus movimentos à luz da unificação da Alemanha, da dissolução da URSS e do Tratado de Maastricht. Elas estão preocupadas com a consolidação da nova ordem internacional da burguesia capitalista e do imperialismo dos EUA. Os esquerdistas europeus lutam procurando os meios para restabelecer uma força política para combater a burguesia internacional e organizar um novo internacionalismo proletário.

Nos Estados Unidos, a burguesia capitalista, com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), forjou uma frente econômica unida entre os EUA, o Canadá e o México. A classe trabalhadora nos Estados Unidos, particularmente os sindicatos industriais, teme que o NAFTA se traduza na perda de empregos para os trabalhadores americanos. O interesse dos líderes corporativos dos EUA no NAFTA é a continuidade dos lucros para os proprietários (ações) das empresas envolvidas no NAFTA. Embora aparentemente o NAFTA e o Tratado de Maastricht sejam dois desenvolvimentos socioeconômicos e políticos distintos, na realidade os arquitetos desses estratagemas econômicos e políticos são os representantes da nova ordem internacional.

Parte da contradição neste desenvolvimento internacional é entre nações desenvolvidas e nações subdesenvolvidas. Com a consolidação das nações desenvolvidas em um sistema de economia de mercado internacional, essas nações desenvolvidas competem entre si pelo domínio do mercado. Isso inclui competir por influência e controle de recursos e trabalho em nações subdesenvolvidas, enquanto as nações subdesenvolvidas lutam para manter a interdependência econômica e política na proliferação do sistema de economia de mercado internacional. Essa competição entre as nações desenvolvidas tem o potencial de tornar a nova ordem internacional nula e vazia, ou de criar um equilíbrio de poder global hegemônico que dividirá o mundo em dois campos permanentes. As nações desenvolvidas podem se envolver em uma guerra econômica, como pode ser visto nos desacordos comerciais entre a França e os EUA, entre os EUA e o Japão, e/ou a continuação da divisão econômica global entre o Norte e o Sul. A contradição interna dentro do corpo político da burguesia internacional e do imperialismo capitalista oferece esperança para o proletariado internacional e as nações subdesenvolvidas.

Essencialmente, a esperança do proletariado internacional e das nações subdesenvolvidas é que a nova ordem internacional se fracione. Se a nova ordem internacional se fragmentasse em sistemas concorrentes de economia de mercado, isso permitiria às nações em desenvolvimento a oportunidade de negociar os meios e os métodos de seu desenvolvimento na arena econômica internacional mais ampla e no contexto político. Isso permitiria que a classe trabalhadora e seus representantes influenciassem o seu governo no que melhor serviria aos seus interesses. A divisão de entidades corporativas hegemônicas globais e seu controle governamental representativo dos assuntos internacionais permitem que estados-nação menores, mais fracos e subdesenvolvidos possam competir dentro das fissuras das divisões internacionais.

Como exemplo deste conflito Norte/Sul, o Dr. Mohammad Ibn Chambras, Secretário Adjunto das Relações Exteriores e líder da Delegação de Gana à Quadragésima Sétima Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, declarou:

“Em seu relatório anual, Development Cooperation 1991, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) confirmou, embora indiretamente, os temores da comunidade internacional de que a preocupação com os desenvolvimentos na Europa Oriental e na ex-União Soviética agravaria a marginalização da África. De acordo com a OCDE, não apenas a ajuda da ex-União Soviética e da Europa Oriental para a África Subsaariana quase caiu a zero; o desembolso de ajuda para a mesma área oriunda de outros países permaneceu estagnado. Em contraste, a OCDE estimou que as promessas de seus membros em novembro de 1991 para a Europa Oriental totalizaram US$ 45 bilhões, em comparação com seus compromissos oficiais anuais com a África de cerca de US$ 34 bilhões. Além disso, em sua reunião em Munique em julho deste ano, o Grupo dos Sete países industrializados endossou um pacote de assistência financeira de US$ 24 bilhões somente para a Federação Russa. Não é de se admirar, então, que o Banco Mundial, em seu relatório intitulado African External Finance in the 1990, preveja, para a África Subsaariana, um déficit financeiro variando entre US$ 7 bilhões em 1995. É neste cenário desanimador que o meu Governo apoia não só o apelo à anulação de dívidas por credores oficiais e bancos comerciais, como também por instituições multilaterais, mas também a convocação da proposta conferência internacional sobre o financiamento do desenvolvimento, que assume uma nova urgência em face desses fatos.”

Sem dúvida, o conflito entre Norte e Sul no desenvolvimento da nova ordem internacional deve ser resolvido por meio da convocação de uma conferência multilateral internacional que considere a disparidade econômica entre as nações desenvolvidas e as subdesenvolvidas. Por outro lado, afirma-se que na perspectiva de fortalecimento da nova ordem internacional, a burguesia capitalista deve estar preparada para reduzir suas margens de lucro e expectativas de expansão de longo prazo. (Consequentemente, a classe trabalhadora dos estados-nação desenvolvidos sofre uma diminuição do padrão de vida, impostos mais altos, alto desemprego e estagnação crônica). Em essência, a hegemonia da nova ordem internacional se baseia em ajudar os estados-nação subdesenvolvidos a se tornarem competitivos. Internacionalmente, deve forjar uma maior uniformidade em direção ao desenvolvimento econômico e político em estados-nação subdesenvolvidos. Sendo assim, a competição desses sistemas de economia de mercado será menos antagônica e o comércio internacional evoluirá em direção aos determinantes de oferta e demanda equitativos. Desse modo, a mais-valia de bens, trabalho/serviços, estará sujeita ao planejamento internacional e a investimentos no mercado global. As corporações multinacionais funcionariam como instituições governamentais, no lugar da ou na formação política e econômica direta, planejando, formulando e desenvolvendo as metas e aspirações políticas e socioeconômicas globais dos povos do mundo. Este é, em essência, o coração e o espírito da nova ordem internacional, onde a hegemonia global não é baseada na acumulação de capital por estados-nação individuais, ou seja, capitalista - imperialismo, mas sim Uma Ordem Mundial – um Governo.

Com base nessa análise, o coração e o espírito da nova ordem internacional é o advento de um governo mundial. Deve ser informado que tal ideia não é estranha aos que estão construindo a nova ordem internacional. Com a formação do G-7, da Comissão Trilateral, da OTAN, do FMI, do Banco Mundial, do Tribunal Mundial e das Nações Unidas (para citar as instituições mais proeminentes que refletem essa ideia), a nova ordem internacional tem em vigor as instituições essenciais para mover o mundo em um governo mundial. O que inibe este desenvolvimento são as condições econômicas desiguais acima mencionadas entre os vários estados-nação (Norte/Sul), as contradições ideológicas e econômicas internas entre a burguesia e o proletariado (divisões de classe); além da competição econômica interna e o conflito dentro do corpo político dos estados-nação dos sistemas capitalistas de economia de mercado.

Mas com a crescente dependência e influência da ONU para resolver conflitos internacionais, e o uso crescente do FMI e do Banco Mundial para controlar e distribuir riqueza internacionalmente sob os ditames do G-7, as contradições mencionadas são menos antagônicas para acomodar e garantir a manifestação de um governo mundial único.

O principal obstáculo para essa transição é a existência de sistemas de crenças (religiões) e ideologias/filosofias políticas divergentes. Aparentemente, esses obstáculos de “pensamentos” não impedirão um governo mundial único, mas simplesmente retardarão sua manifestação como autoridade global suprema. Por exemplo, a revolução islâmica e os movimentos fundamentalistas estão em oposição direta ao imperialismo dos EUA. Os estados-nação islâmicos e os movimentos fundamentalistas islâmicos subsequentes não se opõem a um governo mundial. Esses movimentos islâmicos estão lutando para estabelecer instituições e governos político-religiosos, socioeconômicos e socioculturais que reflitam a ideologia islâmica de um governo mundial. Claro, essa contradição está na base da cumplicidade do G-7 no bombardeio dos EUA à Líbia e ao Iraque, no seu fracasso em apoiar os muçulmanos na Bósnia, nas relações neocoloniais dos EUA com a Arábia Saudita, Kuwait e Egito e o conluio dos EUA com o sionismo de Israel resultando em danos para o povo palestino. Assim, a visão de mundo islâmica ressalta a contradição entre os estados-nação islâmicos e os sistemas de economia de mercado exemplificados pelo imperialismo capitalista.

Portanto, é uma hipótese que a nova ordem internacional deva criar uma nova “religião” que seja universal em qualidade, abraçando o conceito de um governo mundial dentro da crença holística de uma religião mundial (A Vinda do Messias e Mádi). Essas percepções podem oferecer aos revolucionários engajados nessas lutas uma compreensão de como melhor responder ao capitalismo internacional. Por exemplo, em Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, de Lenin, no Capítulo V – “A Divisão do Mundo entre as Associações Capitalistas”, ele apresenta:

“As associações monopolistas capitalistas - cartéis, sindicatos, trustes - dividem entre si, em primeiro lugar, todo o mercado interno de um país, e impõem seu controle, mais ou menos completamente, sobre a indústria daquele país. Mas, sob o capitalismo, o mercado interno está inevitavelmente ligado ao mercado externo. O capitalismo criou há muito tempo um mercado mundial. À medida que aumentava a exportação de capitais e as relações externas e coloniais, as 'esferas de influência' do grande monopolista se combinavam, se expandiam, as coisas tendiam 'naturalmente' para um acordo internacional entre essas associações e para a formação de cartéis internacionais.”

Obviamente, esses cartéis internacionais cooptaram e agora controlam seus governos, e esses governos (ou seja, o G-7) operam como agentes do capital internacional. Com relação a este desenvolvimento internacional do capital, Lenin apresentou ainda a respeito do imperialismo como esses cartéis internacionais operariam:

“Já que estamos falando de política colonial no período do imperialismo capitalista, deve-se observar que o capital financeiro e sua correspondente política externa, que se reduz à luta das grandes potências pela divisão econômica e política do mundo, dão origem a uma série de formas transitórias de dependência nacional. A divisão do mundo em dois grupos principais - de países proprietários de colônias por um lado e colônias por outro - não é a única característica típica deste período: também há uma variedade de formas de dependência; países que, formalmente, são politicamente independentes, mas que estão, de fato, enredados na nova dependência financeira e diplomática. Já nos referimos a essa forma de dependência - a semicolônia”.

É o caso de muitos estados-nação Afrikanos e latino-americanos, cujas economias estão em dívida com o FMI e o Banco Mundial, que são supostamente controlados em parceria corporativa pelo G-7.

No Capítulo VII, “Imperialismo como Estágio Particular do Capitalismo”, Lenin explica as cinco características essenciais do desenvolvimento do imperialismo capitalista. Ele então estabelece:

“Imperialismo é o capitalismo naquele estágio de desenvolvimento em que se estabeleceu a dominação dos monopólios e do capital financeiro; em que a exportação de capitais adquiriu grande importância; em que se iniciou a divisão do mundo entre os trustes internacionais; e em que a partição de todos os territórios do globo entre as grandes potências capitalistas foi concluída.”

Para entender melhor esse desenvolvimento, os revolucionários devem revisar e repensar como a nova ordem internacional evoluiu. O que foi apresentado oferece possibilidades particulares para o desenvolvimento futuro da nova ordem internacional - Governo Mundial Único.

Visto que a luta enfrentada pelas frentes revolucionárias é o desenvolvimento e a evolução do Governo Mundial Único, devemos aprender como fazer disso um desenvolvimento revolucionário.

Naturalmente, o desenvolvimento de um Pan-Afrikanismo internacional revolucionário depende de nossa compreensão do desenvolvimento do imperialismo capitalista e da nova ordem internacional. Nossa capacidade de combater o imperialismo capitalista está sujeita à nossa capacidade de organizar um novo movimento revolucionário anti-imperialista e pró-socialista Pan-Afrikanista. O curso de reconstrução de um movimento Pan-Afrikanista revolucionário será baseado em nossa capacidade de organizar movimentos populares de massa pela social-democracia e o controle dos meios e modos de produção. Esta organização do proletariado deve ser baseada no aumento de sua compreensão política tanto da natureza do capitalismo/imperialismo internacional quanto de como os sistemas de economia de mercado são controlados globalmente por alguns capitalistas monopolistas e seus governos representativos.

Por exemplo, sob a liderança enganosa de capitalistas monopolistas nos Estados Unidos, mais de 5 milhões de pessoas estão desabrigadas, 37 milhões não têm seguro saúde, 30 milhões são analfabetas, mais 30 milhões são analfabetas funcionais, mais de 1 milhão estão encarceradas e 60 milhões vivem na pobreza e lutam dia a dia. Em contraste, uma pequena fração da população controla uma riqueza enorme. O patrimônio líquido médio do 1% do topo das famílias nos EUA é 22 vezes maior do que o patrimônio líquido médio dos outros 99% das famílias. O ativo financeiro líquido médio do 1% do topo das famílias é 237 vezes maior do que o ativo financeiro líquido médio de 99% da população. Esse 1% possui 99% das ações em circulação.

A riqueza dos 5% mais ricos da população aumentou 37,7% de 1977 a 1988; a riqueza do 1% mais rico aumentou 74,2%. Ao mesmo tempo, o número de pessoas em situação de pobreza aumentou em 33%.

Metade de todos os Afrikanos nascidos nos Estados Unidos vive na pobreza. Isso é um aumento de 69% nos últimos anos. Um em cada dois filhos de pais Afrikanos na América nasce na pobreza e um em cada três idosos vive na pobreza. A expectativa de vida dos homens pretos no Harlem, em Nova York, é menor que a dos homens em Bangladesh. Embora este país prenda mais cidadãos do que qualquer outra nação industrializada, os EUA prendem homens pretos a uma taxa quatro vezes maior do que o apartheid na África do Sul e nove vezes mais do que os euro-americanos. Os pretos são apenas 12,5% da população americana, mas representam 47% da população carcerária do país, enquanto outros 30% da população carcerária é composta por latinos e outras pessoas de cor. Além disso, deve-se observar que 6% de todas as mulheres encarceradas são mulheres pretas, latinas, asiáticas e nativas americanas.

Com base no exposto, acredita-se que o futuro depende da capacidade dos revolucionários Pan-Afrikanos de educar e organizar a classe trabalhadora em sua relação com o monopólio/capitalismo internacional. É necessário apresentar e propor como o seu controle sobre os meios e os modos de produção melhor servirão suas vidas e o futuro de seus filhos.

Em última análise, a luta é uma questão da relação dos proletários com os meios e o modo de produção. É uma questão de como os revolucionários irão tirar a riqueza mundial do controle dos capitalistas internacionais, e colocá-la no controle do proletariado internacional. A redistribuição da riqueza mundial é o ideal da revolução internacional, e o fundamental para esse desenvolvimento é fazer com que a classe trabalhadora compreenda sua relação com os meios e o modo de produção. Dentro deste processo revolucionário está a luta para compreender a dinâmica de um nacionalismo revolucionário contra o imperialismo cultural, a democracia revolucionária em oposição à plutocracia e a democracia burguesa, e a construção do comunalismo Pan-Afrikano revolucionário em oposição ao capitalismo/imperialismo.

O desafio que se coloca à Áfrika, Europa e América Latina nesta conjuntura histórica é o de expansão e consolidação da socialdemocracia. É essencial que nesses três continentes se desenvolva uma frente revolucionária intracontinental que estabeleça uma agenda e uma plataforma política continental. A agenda e a plataforma política revolucionária devem evoluir a partir dos problemas comuns e mutuamente reconhecidos que confrontam a maioria dos Afrikanos, europeus e latino-americanos, ou seja, exploração capitalista, neocolonialismo e hegemonia imperialista.

Revolucionários em geral concordam sobre a natureza da opressão de seus povos e identificam adequadamente os inimigos dos oprimidos. Frequentemente, os revolucionários enfrentam e combatem diferentes aspectos da opressão, de acordo com a realidade do sofrimento das pessoas na época. No entanto, é sempre importante para os grupos revolucionários mais desenvolvidos estar na vanguarda, fornecendo liderança aos menos desenvolvidos. Esta liderança inclui análise e direção política, bem como ação que serve para expor e ampliar as contradições entre a classe burguesa capitalista internacional e o proletariado internacional. De muitas maneiras, isso é feito combatendo o oportunismo, o liberalismo, o revisionismo e apresentando continuamente posições políticas revolucionárias Pan-Afrikanistas firmes.

A política revolucionária Pan-Afrikana deve ser inclusiva, em vez de exclusiva. Embora a política revolucionária Pan-Afrikana mergulhe na dialética filosófica e teórica da luta, ela não deve, jamais, falar com os oprimidos e marginalizados de uma posição de elitismo, ao invés de se comunicar na própria linguagem do povo. Devem sempre oferecer liderança que atenda às necessidades imediatas dos pobres e oprimidos. O nível de desconfiança que o povo em geral tem em relação aos esquerdistas, em parte é devido ao fracasso dos esquerdistas em abraçar as demandas dos oprimidos. Os revolucionários Pan-Afrikanos não podem impor suas ideias e demandas de governo ao povo; é responsabilidade dos revolucionários Pan-Afrikanos dar credibilidade às demandas do povo e, desta forma, construir o Poder com o povo.

Esta é uma lição que os revolucionários precisam reaprender em termos da fórmula de trabalho desenvolvida pelo antigo Partido dos Panteras Negras (BPP, em inglês). A força do BPP estava na sua capacidade de falar com o povo sobre suas necessidades, e como o povo nas várias comunidades se identificavam com a luta. O BPP foi então capaz de desenvolver programas que aliviavam algumas das condições de privação de direitos e empobrecimento que o povo sofria. Ao fazer isso, o povo se uniu ao Partido e começou a aceitar a linha do Partido como sendo sua. Naturalmente, a diferenciação deve ser feita entre a linha das massas e da organização revolucionária. Esta lição fundamental deve ser implementada pelos revolucionários Pan-Afrikanos, onde houver necessidade, para construir um movimento popular de massa pela socialdemocracia.

Nos Estados Unidos, e particularmente no que diz respeito ao New Afrikan Independence Movement [Movimento de Independência da Nova Áfrika], o NAFTA deve ser realizado em justaposição à necessidade de zonas de livre comércio a serem desenvolvidas em comunidades empobrecidas. Este objetivo socioeconômico e político deve, no mínimo, desenvolver uma linha das massas em direção à redistribuição da riqueza, reparações, oposição socialdemocrata ao neocolonialismo doméstico, forjando o Pan-Afrikanismo com o propósito de estabelecer dupla cidadania no movimento de independência. No mesmo sentido, o apoio aos presos políticos de guerra é um objetivo político essencial que serve para validar a determinação militante da luta. Isso dá crédito a um segmento da comunidade-nação oprimida que lutou bravamente contra o racismo e a opressão nacional. A linha das massas deve confrontar a burguesia negra neocolonialista e seu desenvolvimento do capitalismo negro. Este é um assunto particularmente importante para o recente desenvolvimento do (pseudo) Pan-Afrikanismo por membros da burguesia negra.

A linha das massas na Europa deve incluir o determinante socioeconômico e político geral do Tratado de Maastricht e as questões específicas que abordam cada território no campo de batalha europeu. Enquanto isso, na Áfrika e na América Latina, uma linha das massas de proporção intracontinental deve ser desenvolvida para combater a hegemonia imperialista, o neocolonialismo, a questão da dívida externa e o desequilíbrio da dependência econômica entre o Norte e o Sul.

Uma vez que a linha das massas tenha sido identificada, acordada e ratificada pelos revolucionários (elementos de vanguarda) nas Américas, na Europa e na Áfrika, cada partido revolucionário, aliança, coalizão ou frente será responsável por apoiar a linha das massas.

Este apoio da linha das massas estará na base de como cada território aplica sua linha de partido, particularmente em termos de sua posição em relação às lutas populares, mobilizações das massas e luta armada. É fundamental ter em mente que o povo não luta por ideias e polêmicas filosóficas. Eles lutam por comida, abrigo, roupas e empregos, e no decorrer da luta por essas necessidades básicas, os revolucionários Pan-Afrikanos devem educá-los sobre como suas vidas são controladas pelo imperialismo capitalista. Ao obter esse entendimento, os oprimidos e marginalizados estarão mais dispostos a lutar pelo controle dos meios de produção e apoiar a revolução socialista.

Consequentemente, há a necessidade de impulsionar os objetivos da organização da linha das massas que acabará por desenvolver as lutas democráticas populares pela socialdemocracia e pela libertação nacional. E quando as lutas populares pela socialdemocracia e pela libertação nacional estiverem forjadas, a luta armada atinge seu mais alto grau de combate. É quando a mobilização popular de massa e a luta armada poderão tomar a ofensiva, exigindo o controle dos meios de produção. Até lá, os revolucionários Pan-Afrikanos devem continuar a se preparar em dois níveis: construir organizações sociais populares e formações revolucionárias de massa; e lutando para unificar uma vanguarda revolucionária Pan-Afrikana de significado internacional em apoio à capacidade dos revolucionários Pan-Afrikanos de se engajarem na luta armada.

Nos Estados Unidos, assim como na Europa e na Áfrika, várias formações revolucionárias do Novo Afrikano estão envolvidas em um sério debate e diálogo para o desenvolvimento de uma frente de libertação nacional. Prevê-se no processo de organização para a frente de libertação nacional, que essas formações continuarão a educar e organizar a classe trabalhadora contra os criminosos da pequena burguesia e da classe burguesa capitalista, e que eles continuarão a construir um apoio para os prisioneiros políticos revolucionários, e a vincular essas lutas aos movimentos de massa contra o imperialismo capitalista. Além disso, os revolucionários Pan-Afrikanos devem continuar a desenvolver cada uma de suas lutas para estabelecer alianças que estendam a unidade nas lutas revolucionárias em oposição à nova ordem mundial.

O futuro da luta revolucionária Pan-Afrikana, seu crescimento e desenvolvimento, e suas vitórias e derrotas repousa na resolução revolucionária de continuar as batalhas, de desenvolver uma compreensão crescente das lutas de libertação nacional e do internacionalismo revolucionário e, especialmente, de aprender as lições que ganharão as mentes e o comprometimento destemido da próxima geração de revolucionários Pan-Afrikanos.

Fonte:

Jalil A. Muntaqim, We Are Our Own Liberator: Selected Prison Writings, pp.199-211.

 

Jalil A. Muntaqim (Anthony Bottom -1951) - Preso político nos EUA por quase meio século (50 anos). Ex-membro do Partido dos Panteras Negras e da ala Exército de Libertação Negra.

Revolucionário e estudioso da FROLINAN - Front for the Liberation of the New Afrikan Nation [Frente para a Libertação da Nova Nação Afrikana].

Em breve estará disponível outros ensaios de Jalil A. Muntaqim, incluindo um manual revolucionário e as estratégias da FROLINAN, e seus escritos na prisão.

Por Fuca, 2021.