quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Conto: Bate-boca deselegante - Henrique Cunha Jr

Bate-boca deselegante

Todos viram e não interviram. Ficaram paralisados, perplexos, sem nenhum reflexo e quando saíram do pasmo, os fatos já eram fatos.

- Vamos para a delegacia que vou dar queixa. Esta neguinha me paga.

A diretora, ainda numa atitude de pedir calma, tenta intervir e conciliar. Aliás, melhor inteirar-se do acontecido. Ao ouvir os gritos, tinha jogado os papéis ao vento e ido de encontro ao alarido. Na fila dos espantados, alguém diz:

- É a professora Marli, a loira.

No reflexo do movimento dá de encontro com ela e seus xingos. Quase tropeça nos resmungos. Toda molhada, totalmente despenteada, tem os braços amarrados, os cotovelos ensanguentados. Nem ouve as perguntas a diretora. De nada adianta aclamar. Ela não atende ao clamar que vamos conversar. Está possessa e possessa continua. Entra no carro e manda tocar para a delegacia de polícia.

Os alunos todos na algazarra, os professores todos pelos corredores correndo a corrente do testemunho dos fatos. Trata-se de repor o curso da normalidade, retornar às aulas, dizer as crianças que nada de anormal tinha ocorrido, que fora apenas uma crise nervosa de uma das colegas, melhor dizendo, das duas.

Comentário em voz baixa, em entremeios de segredo.

- Mas que baixaria, a que ponto a nossa escola chegou... Professor se estapeando pelos corredores e saindo para delegacia de polícia.

A mais velha das docentes acha aquilo indecente, olha em censura silenciosa, diz como única palavra que felizmente está próxima de sua aposentadoria e que as pessoas no seu tempo, ou melhor dizendo, as professoras, se davam respeito. Completa, indo embora: - Onde já se viu?

- O que aconteceu?

- Nada – resposta cínica de uma das testemunhas oculares do sucedido e ainda não explicado.

Bom, todos viram e agora nínguem tinha visto nada.

No entanto, já virando jocosa fofoca alguém narra:

- Em miúdos, a professora Feliz da Conceição.

- Logo ela, que é tão educada – retruca a ouvinte.

- Pois bem, ela mesma, agarrou a professora Marli, derrubou-a e arrastou-a pelos corredores até o banheiro e lá dentro, lá dentro... – Toma fôlego agravando que sobe as escadas em direção à diretoria.

Quem ficou para trás não era elo de informação da notícia.

- Não consegui ouvir direito o que ocorreu lá dentro, mas devia ser coisa séria, pois os tons foram de profundo espanto, imensa censura.

Num entredentes quase sorrindo, de compreensível pequena satisfação, a faxineira prepara-se para dar todo o serviço:

- A professora Feliz da Conceição arrastou a professora Marli para o banheiro, e...

- Arrastou pelos corredores e ninguém fez nada?

- Foi tudo tão rápido e muito inesperado – diz uma das testemunhas, a mais nervosa de todas.

- Mas o que deu na Feliz da Conceição para tanta violência, tanta discordância? Ela que sempre foi tão cordata?

- Por que a professora Marli estava tão molhada? O que aconteceu?

Aí, a servente ri. Não aguenta e ri mais, rápido engole o riso pela desaprovação dos olhares. Assim, no entanto, depois de tomar coragem e fôlego, volta ao ponto onde estava antes de ser interrompida.

Olhos ficaram maiores que a testa. Espanto.

- Mas foi assim

Da pausa ao suspiro profundo a diretora expressa sem uma palavra sua preocupação.

- Dona Marli chamou a Dona Conceição de nega fedida. Dona Conceição arrastou-a até o banheiro, pôs a cabeça dela na privada e deu descarga, oras! Foi isto!

A história termina aí. Ou começa. Os comentários têm as tonalidades de pretos e brancos. Um diz que a professora Feliz da Conceição, depois que entrou para o movimento negro, ficou tão racista... Poucas vozes censuram a agressão nas palavras da professora Marli. Só uma voz menciona o racismo, e logo é silenciada.

- Mas precisava tanta agressão? – sacode uma cabeça interrogando a voz dissidente.

Ninguém se lembra que, na eleição passada para a coordenação, a professora Marli reuniu as professoras brancas, e as supostamente brancas, para dizer que elas não deixariam uma negra exibida mandar nelas.

Ninguém disse nada, mas nós adoramos a feliz concessão da Feliz da Conceição.


(Conto extraído do Livro Tear Africano – Henrique Cunha Jr)


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