O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. pronuncia o
seguinte discurso) - Sr. Presidente, SRªS E SRS. senadores, Sob a proteção de
Olorum, inicio este pronunciamento.
Acontecimento mais relevante da história deste milênio, a
invasão do Continente Africano por europeus a partir do século XVI, com a
escravização e migração forçada de milhões de seus filhos e a transformação dos
restantes em súditos coloniais, alterou para sempre a face do planeta. Pode-se
afirmar, sem medo de exagero, que o transplante de enormes contingentes de
africanos para o outro lado do Atlântico não apenas moldou a face das
sociedades americanas, mas constituiu o principal motor de processos fundamentais,
como a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, responsáveis pela
configuração do mundo, tal como hoje o conhecemos. Dentre as consequências
negativas desse fato histórico encontram-se os principais vetores da
instabilidade de que padece não apenas a África mesma, mas igualmente boa parte
das Américas, sem esquecer a própria Europa. Questões como o racismo e a
xenofobia, que têm nos descendentes de africanos no Novo e no Velho Mundo
seus alvos preferenciais, encontram-se nas raízes de problemas como a
violência urbana, as crianças de rua, a favelização das metrópoles. Ao mesmo
tempo, as sequelas do colonialismo se espelham com clareza no empobrecimento e
nas sangrentas lutas fratricidas que nos acostumamos a associar a determinadas
regiões da África, frutos da atomização e do artificialismo que presidiram à
imposição das atuais fronteiras dos países africanos pelos centros
político-militares europeus de força.
Com todo o sofrimento e toda a dor que constituíram parte
integrante desse processo cruel, a história da resistência africana na própria
África e nas Américas é também uma saga repleta de heroísmo, bravura,
determinação e criatividade. Qualidades que possibilitaram que um povo dominado
pelo poder das armas, reforçado por toda espécie de ideologia mistificadora,
conseguisse impor boa parte de sua cultura, de seus valores, de sua arte, de
sua religião aos seus dominadores, a despeito da suposta superioridade por
estes autoproclamada. Tudo isso não aconteceu de graça, mas em resultado de uma
luta tão multifacetada quanto as próprias estratégias de dominação elaboradas
pelos escravizadores europeus e seus descendentes. Uma luta a um tempo nos
planos material e ideológico, envolvendo não somente as armas convencionais de
cada época e lugar em que tem sido travada, mas igualmente a palavra e o
pensamento, tendo por meta a derradeira conquista das consciências e mentes de
europeus, africanos e seus descendentes. Objetivo último dessa luta: a
supremacia final, para uns, ou a plena liberdade, para outros.
Uma das noções mais antigas entre os povos africanos
escravizados nas Américas é a de que sua liberdade não se resgataria com
simples apelos emotivos ao coração do dominador. Mais do que isso, a percepção
de que uma África unida, livre da hegemonia europeia, constituiria uma fonte de
força e apoio aos negros em todo o mundo. Essa visão, raiz mais profunda
daquilo que viria a ser conhecido como pan-africanismo, encontra-se presente,
mesmo que de forma incipiente, no ideário dos principais movimentos de luta
organizada contra a escravidão nas Américas. Estava presente em Palmares, que
congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em
busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe,
os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti.
O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do
mundo africano. Não há nenhuma conotação racista nessa unidade, que se baseia
não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos
históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em
face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo
reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista
com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da
Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de
milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída,
fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do
Caribe.
O primeiro registro histórico de uma reivindicação de caráter
tipicamente pan-africano data de meados do século XVIII, na forma de uma
petição em que escravos da colônia inglesa que um dia se transformaria nos Estados
Unidos da América pleiteavam a volta à África depois de libertados. A mesma ideia
presidiu à fundação em 1787, por um grupo de afro-americanos, da cidade de
Freetown - que mais tarde viria a ser a capital da Serra Leoa -, revertendo um
projeto originalmente racista e paternalista que só ganhou força quando
ressuscitado e recuperado por africanos e descendentes oriundos do Caribe e da
América do Norte.
O século XIX assistiu ao crescimento e consolidação do ideal
pan-africano, impulsionado, nos Estados Unidos, por nomes como Prince Hall,
John Russworm, o Bispo McNeil Turner e o grande ativista Edward Blyden. O mesmo
ideal que, sob diferentes formulações, propelia ao mesmo tempo os movimentos
anticoloniais africanos. Na África do Sul, por exemplo, desde a sua criação, no
início deste século, o Congresso Nacional Africano, que décadas mais tarde
concretizaria o sonho aparentemente utópico de um governo de maioria negra,
incorporou integralmente ao seu programa o ideal pan-africano. Como se percebe
no profético discurso do nacionalista sul-africano Isaka Seme, proferido em
1905 na Columbia University:
O gigante está acordando! Dos quatro cantos da terra os filhos
da África marcham em direção à porta dourada do futuro, carregando o
registro de proezas de valor realizadas.
Dentre os inúmeros intelectuais e ativistas dedicados à causa
pan-africana nestes últimos dois séculos, um nome se destaca: o de Marcus
Garvey, responsável pela fundação do principal movimento internacional negro em
toda a história - a UNIA (Universal Negro Improvement Association, Associação
Universal para o Avanço Negro), organização que chegou a ter 35 mil militantes
inscritos nos Estados Unidos, 52 filiais em Cuba, oito em Honduras, oito na
África do Sul, 47 no Panamá e 25 na Costa Rica -, onde tive a oportunidade de
visitar o casarão histórico em que funcionou seu quartel-general para a região,
ainda preservado na Província de Limón. Além de sucursais no Brasil, Equador,
Nigéria, Porto Rico, Austrália, Nicarágua, México, Barbados, Serra Leoa,
Inglaterra e Venezuela.
Marcus Garvey nasceu em St. Ann's Bay, na Jamaica, a 17 de
agosto de 1887. Filho de um pedreiro do mesmo nome, descendente dos
aguerridos maroons, que desafiaram - por vezes com sucesso - a
ordem colonial britânica na Jamaica e em todo o Caribe, cedo demonstrou uma
aguda inteligência e uma inquietação em face de problemas sociais e raciais que
iria acompanhá-lo até a morte. Já aos 16 anos, como aprendiz de gráfico, seu
primeiro emprego, o jovem Garvey iniciava sua atuação como ativista político,
participando de uma greve de sua categoria. Pouco depois, publicou seu primeiro
jornal, The Watchman (O Vigilante), em que expunha suas ideias
e preocupações sobre temas vinculados a raça e classe.
Essas preocupações o levariam em frequentes viagens ao exterior,
nas quais a visão dos descendentes de africanos ocupando em toda parte a base
da pirâmide social acabaria consolidando suas posições ideológicas e forjando
os elementos essenciais de sua plataforma anti-racista, antiimperialista e
anticolonialista. Assim foi no Panamá, porto de destino de milhares de
jamaicanos atraídos pelos empregos oferecidos com a construção do Canal, mas
discriminados em favor dos operários brancos. Também no Equador, na Nicarágua,
em Honduras, na Colômbia e na Venezuela, onde os negros, empregados na
mineração ou nas plantações de tabaco, pareciam incapazes de melhorar as
humilhantes condições em que viviam.
Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 de idade, chega a Londres, onde
vai trabalhar, estudar e desenvolver-se na percepção de novas dimensões da
luta negra. A capital do Império Britânico, ainda nos picos de seu poderio, era
o ponto focal da efervescente atividade intelectual e política que marcou o
período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, em
1911, a cidade abrigara um Congresso Mundial sobre Raça, organizado sob os
auspícios do Movimento Inglês de Cultura Ética - o mesmo Congresso em que o
representante brasileiro declarou candidamente estar o Brasil resolvendo seu
problema racial por meio da miscigenação, que acabaria com os negros dentro de
um século. À miscigenação, acrescente-se, devemos somar as péssimas condições
de vida que ajudariam a liquidar o povo afrodescendente neste país. A
literatura, as atitudes e os debates relativos a esse Congresso ainda eram
motivo de acesas polêmicas quando Marcus Garvey chegou a Londres. Igualmente
importante era a nova literatura anticolonial produzida na África Ocidental.
As ideias do jovem Garvey sobre a redenção africana ganharam
contornos definitivos quando se associou ao intelectual nacionalista Duse
Mohammed Ali, um egípcio de ascendência sudanesa que publicava o jornal
mensal The African Times and Orient Review. O período londrino
completou a educação política de Marcus Garvey. Ele estava pronto para a sua
tarefa. Em 1914, retornou à Jamaica e fundou uma organização, que denominou
Associação Universal para o Avanço Negro e Liga das Comunidades Africanas. Dois
anos depois, encorajado pelo líder afro-americano Booker T. Washington, desembarca
em Nova York. No Harlem, toma contato com as especificidades da questão racial
nos Estados Unidos. Os negros do Sul fugiam para o Norte, deixando atrás de si
o sistema aparteísta do Jim Crow, os linchamentos, a falta de direitos
políticos, a servidão e a miséria. No Norte, ganhavam melhores salários nas
fábricas, que agora tinham de alimentar a máquina de guerra, mas eram obrigados
a viver em casas caindo aos pedaços, em bairros miseráveis, e seus filhos frequentavam
escolas precárias, tanto nas instalações quanto no ensino. Os poucos que
ousavam usar estratagemas para comprar residências em bairros de brancos viviam
apavorados pela possibilidade de bombas racistas explodirem em suas casas ou de
suas famílias serem ameaçadas na rua.
Não existia nessa época uma organização verdadeiramente negra em
Nova York. As que havia eram multirraciais, dirigidas por brancos e mestiços de
pele clara. Garvey começou sua pregação discursando nas esquinas do Harlem.
Logo precisou ocupar espaços maiores, na medida em que crescia o público
interessado em sua mensagem positiva, que falava de uma ação internacional
em favor do negro. Essa reação estimulou Garvey a instalar nos Estados
Unidos a sua UNIA, que se distinguia das demais organizações por ser
exclusivamente negra e defender um programa ousado e radical. Categorizando a
luta negra como de direitos humanos, e não somente de direitos civis, o que
implicitamente estabeleceria seu caráter internacional, já em 1920 Marcus
Garvey articulava a distinção fundamental assinalada por Malcolm X nos anos 60,
contribuindo para elevar a luta negra a um patamar superior ao do
integracionismo liberal.
Garvey compreendeu três necessidades básicas do negro em todo o
mundo: a de dignidade e auto-respeito como povo unido; a de uma África independente
e unida como base de força central; e a de instituições autônomas para
impulsionar a vida das comunidades negras. Além disso, como nenhum outro, antes
ou depois dele, Marcus Garvey percebeu a importância das comunidades negras das
Américas Central e do Sul para a luta pan-africanista internacional, inspirada
no lema "A África para os africanos, na própria pátria e no
exterior".
Em 1920, no auge do prestígio de Garvey, a UNIA organizou a I
Convenção dos Povos Africanos do Mundo, com a presença de 25 mil representantes
e delegados de todos os continentes. O produto mais importante dessa Convenção
foi a Declaração de Direitos dos Povos Negros do Mundo, que condenava o
colonialismo, afirmava o "direito inerente do negro de governar a
África", instituía o vermelho, o preto e o verde como as cores simbólicas
do pan-africanismo, e exigia o fim dos linchamentos e da discriminação racial
nos países da diáspora africana, bem como o ensino da História Africana nas
escolas públicas.
A independência econômica era outro fator enfatizado no programa
da UNIA. Garvey exortava seus seguidores a "comprar de negros", a
preferir negociantes de sua própria raça. Atendendo o apelo de Booker T.
Washington à auto-suficiência, a UNIA iniciou diversos projetos na área
empresarial, incluindo a Corporação de Fábricas Negras, destinada a ajudar
empresários da comunidade. O que é mais importante, Garvey fundou a Black Star
Steamship Line, para funcionar como laço comercial e espiritual entre os negros
de todos os lugares que seus navios alcançassem. Para surpresa de seus
críticos, entre 1919 e 1925 Garvey juntou dinheiro suficiente para adquirir
quatro navios e estabelecer ligações comerciais com o Caribe.
Embora os navios da Black Star Line transportassem tanto carga
quanto passageiros, o objetivo não era um retorno físico de todos os negros à
África, que ele sabia ser impossível, mas antes um retorno de caráter simbólico
e espiritual. Garvey acreditava, contudo, ser dever dos descendentes de
africanos contribuir, com seu trabalho, conhecimento e tecnologia, para o
fortalecimento do Continente-Mãe, tendo em vista uma futura derrubada de
fronteiras e a criação de uma nação unificada. Nesse sentido, chegou a
estabelecer negociações com o Governo da Libéria.
Se granjearam uma legião de seguidores, as ideias de Garvey
também o fizeram colecionar desafetos, entre brancos e negros, à direita e à
esquerda do espectro político. Creio não ser preciso enfatizar o perigo que ele
representava para o establishment, com suas ideias de autonomia, dignidade
e auto-respeito. Problemas com a administração da Black Star Line acabaram
fornecendo o pretexto para que o FBI o prendesse, em 1923, sob falsas
acusações, o que causou uma gigantesca passeata de protesto, que reuniu 150 mil
pessoas, de várias nacionalidades, nas ruas do Harlem. Deportado para a Jamaica
em 1927, Garvey foi recebido pelo povo de Kingston, a capital, como um
verdadeiro chefe de estado - mas como uma ameaça pela elite, branca e negra.
Essa oposição, materializada sob a forma de dificuldades jurídicas, não o
impediu de se eleger, na capital, para um cargo correspondente ao de
vereador, nem de publicar um novo jornal, The New Jamaican (O
Novo Jamaicano).
Em 1935, ano em que a Itália de Mussolini invade a Etiópia,
então a única nação independente da África, provocando um acirramento das
discussões sobre colonialismo e racismo, Garvey retorna à Inglaterra, onde
passará seus últimos anos. Seu propósito era cobrar diretamente do
Império Britânico a redenção do Continente Africano. Os ingleses não se
preocuparam muito. O Império vivia seu último período de esplendor, dominação e
arrogância. Não estava, assim, inclinado a dar ouvidos a esse súdito da Coroa
que agia como um cidadão, exigindo os direitos básicos da cidadania. Era também
a época da Grande Depressão, cujas consequências se abatiam com maior impacto
sobre os descendentes de africanos. Garvey viveu seus últimos anos na pobreza,
embora sem perder o orgulho de maroon que o projetara
mundialmente nas décadas precedentes. Em janeiro de 1940, um ataque de
paralisia o pôs de cama, e alguns jornais publicaram que ele havia morrido na
miséria. Cartas e telegramas choveram sobre seu escritório. A secretária evitava
que essa correspondência chegasse a suas mãos, mas ele acabou tendo acesso a
ela. As manchetes falando de sua morte causaram-lhe um choque do qual não se
recuperou, vindo a falecer no dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorridos 57
anos de sua morte, sua mensagem ao mundo continua válida:
Ó África, acorda
A aurora está chegando
Não mais és maldita
Ó bondosa Terra-Mãe
De longe teus filhos e filhas
Se dirigem de volta a ti
Sobre as águas ressoam seus gritos
De que a África será livre.
A filosofia de Garvey não é perfeita, nem fornece uma base
adequada para a moderna teoria e prática da luta africana. Em consequência, é
fácil e legítimo levantar críticas construtivas às suas ideias e ao seu
movimento. Mas não se pode negar o legado que ele deixou como fundamento
essencial à organização política do negro. Seu espírito continua vivo, apesar
dos incansáveis esforços de seus adversários em destruí-lo. Em seu livro The
Black Jacobins (Os jacobinos negros), o intelectual
antilhano C.L.R. James - que em vida foi meu amigo e apoiou as
reivindicações do Movimento Negro brasileiro ao VI Congresso Pan-Africano,
realizado em 1974 na Tanzânia - observa que dois caribenhos, "usando a
tinta da Negritude, inscreveram seus nomes de maneira indelével na história de
nosso tempo". James está se referindo a Aimé Césaire e Marcus Garvey. Para
ele, Garvey está na vanguarda do grupo de negros radicais do século XX cujas ideias
e programas ainda reverberam nos movimentos de libertação de nossos dias. Isso
se deve, em grande medida, ao trabalho incansável daquela que por décadas o
acompanhou na luta e que, depois de sua morte, dedicou a existência à
preservação de sua memória e à divulgação de suas ideias. Estou falando de sua
viúva, Amy Jacques Garvey, por quem tive a honra de ser recebido em minha
passagem pela Jamaica, em 1973.
O garveísmo inspirou muitos líderes africanos, como o ganês
Kwame Nkrumah, apóstolo do pan-africanismo, bem como a jovem liderança que, nos
anos 60, faria avançar a um ponto sem precedentes a luta dos afro-americanos.
Sua preocupação com a auto-imagem dos negros, com o valor do ensino da História
Africana, com a unidade dos povos da África e da diáspora, mas sobretudo sua
disposição de homem simples e prático, capaz de traduzir para as massas negras
despossuídas a mensagem do pan-africanismo, e de tomar medidas práticas para
concretizá-la - tudo isso fez de Marcus Garvey um homem que merece a admiração
e o respeito, não apenas dos africanos e seus descendentes, mas de todos
aqueles comprometidos de coração com a mudança efetiva das relações sociais e
raciais.
Axé, Marcus Garvey!
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