domingo, 6 de maio de 2018

Posfácio do livro Pronto Para a Revolução: Kwame Ture

Posfácio do livro Pronto para a Revolução: Kwame Ture

Na Tradição 
por Playthell Benjamin

Kwame Ture: Ready for Revolution

Todos sabiam que quando Kwame Ture, que a maioria de nós conheceu como Stokely Carmichael, voou para sua casa no dia seguinte, ele logo iria dançar e se juntar aos ancestrais. No entanto, não havia tristeza entre os amigos, parentes e camaradas que se reuniram para despedir-se dele no adorável apartamento de um Camarada do Harlem na Avenida do Convento. Para os religiosos entre nós, qualquer tristeza possível foi amenizada pela convicção de que eles se encontrariam novamente em um lugar melhor, "quando nós terminarmos com os problemas deste mundo". No entanto, o ambiente de celebração foi definido pelo próprio Kwame, apoiado em travesseiros em cima das cobertas, rindo, brincando e trocando histórias de guerra. Enquanto conversávamos, aquele sorriso diabólico e encantador pelo qual ele é mundialmente famoso se espalhou por seu rosto ainda bonito. Nós bebemos vinho em uma libação, marcando a ocasião de nossa última comunhão.

Pelo seu comportamento, ele poderia estar se recuperando de uma gripe... seu corpo frágil não nos lembrou de que ele estava morrendo de câncer. Mesmo assim, a sensação era de que aqui foi uma vida bem vivida, digna de celebração. Não houve lágrimas. A evidência do significado daquela vida estava em toda parte em evidência ao nosso redor: sua condição era monitorada por um grupo de jovens médicos pretos sob a instrução da Dra. Barbara Justice, sua conselheira médica chefe. Também participaram um grupo de mulheres bonitas de várias idades de todos os cantos do mundo preto - algumas das quais também eram médicas.

Durante toda a noite, a conversa era interrompida quando camaradas e admiradores de todo o mundo africano, em cujo interesse Kwame trabalhara, prestaram homenagem a esse guerreiro e teórico pan-africano cujo pensamento e luta haviam moldado suas próprias vidas e trabalho. Testemunhar esta demonstração de amor e respeito - recebido com toda a seriedade e graça de um mais velho honrado que sabe que por quatro décadas, dois terços de seu tempo na terra, ele manteve a fé - foi inspirador. Ficou claro que essa era a recompensa de uma vida abnegada e consequente. O cumprimento de um axioma pelo qual Kwame viveu: Sirva as pessoas e as pessoas sempre cuidarão de você.

Pronto para a Revolução, a autobiografia de Kwame Ture em colaboração com seu antigo companheiro de armas Ekwueme Michael Thelwell, mostra a história dessa vida extraordinária para a próxima geração de combatentes da liberdade de todas as nações. Mas acima de tudo, é um modelo de como viver uma vida comprometida a serviço dos oprimidos. Se eu tivesse apenas um livro para dar aos meus filhos explicando o significado e os métodos do movimento preto mundial de libertação em nosso tempo, seria Pronto para a Revolução.

A narração desta história foi maravilhosamente realizada. Em virtude de sua escrupulosa consideração pela integridade da voz e das memórias de Kwame, Thelwell, um escritor versado nas tradições orais do povo preto, apresentou uma narrativa que traz seu assunto à vida. E suas prodigiosas habilidades literárias são tais que, como W.E.B. Du Bois, ele consegue até dar ressonância poética às discussões dos detalhes mais mundanos do ambiente socioeconômico e da cultura política contra os quais Kwame, como organizador das massas, lutaria.


O que temos neste texto, finalmente, não é apenas uma saga quintessencialmente americana sobre a ascensão de uma família imigrante, mas também uma narrativa convincente da vida e obra de um grande humanista e lutador da liberdade do século XX, cujas ações ousadas ajudaram a mudar a nação mais poderosa do mundo para melhor - trabalhando para livrar a sociedade americana da opressão das castas de cor e capacitar as massas pretas do sul com o direito de votar. Como documento histórico primário, será inestimável para os futuros historiadores traçarem a luta de libertação pan-africana da segunda metade do século XX.

A TRADIÇÃO LITERÁRIA

Pronto para a Revolução é a última parcela de uma grande tradição da narrativa autobiográfica preta masculina, começando em 1775 com As Incríveis Aventuras de Olaudah Equiano, O Africano, Escrito por ele mesmo. Quando este texto foi publicado na Inglaterra, no ano anterior ao início da Revolução Americana, surpreendeu e seduziu os leitores britânicos. Em 1851, a Narrativa da Vida de Henry Box Brown, que conta a história da fantástica fuga de 1849 de Brown da escravidão por ter se enviado pelos correios em uma caixa de Richmond, na Virgínia, para a Filadélfia, foi publicada e ganhou muitos leitores em ambos os lados do Atlântico. Durante as décadas seguintes, muitos outros seguiram escrevendo suas emocionantes histórias: Josiah Henson, William Wells Brown, Solomon Northup, J.W.C. Pennington, et al (entre outros).

Poder-se-ia argumentar, no entanto, que esse gênero - popularmente conhecido como narrativa escrava - atingiu sua apoteose com a publicação do texto de 1845 The Life and Times, de Frederick Douglass, escrito pelo brilhante editor, escritor/polemista e orador que tinha feito uma ousada fuga da escravidão quando jovem. No romance afro-americano e sua tradição, o professor Bernard Bell nos diz: "A maioria das autobiografias é caracterizada por propósito moral, valores cristãos e fervor emocional. Muitos leem como alegorias morais e políticas." Ele então nos lembra de sua origem nas formas orais, que muitas vezes dão à sua prosa um poderoso estilo sermônico."Seu estilo é em grande parte derivado do púlpito, do púlpito e do palanque, a partir das escrituras e materiais abolicionistas". Uma medida do efeito dessas narrativas altamente dramáticas e moralistas sobre o público de leitura inteligente foi claramente declarada pelo poderoso senador do século XIX de Massachusetts, Charles Sumner. "Eles estão entre os heróis de nossa era", disse ele sobre os autores dessas narrativas. "O romance não tem histórias de interesse mais emocionante do que o deles. A antiguidade clássica não preservou nenhum exemplo de julgamento aventureiro mais digno de renome”.

É claro que, enquanto se apegam firmemente a essa tradição maior, Pronto para a Revolução pertence mais propriamente à tradição autobiográfica pós-seminal que floresce no século XX, que inclui trabalhos como Booker T. Washington, Up from Slavery; James Weldon Johnson, Along This Way; as três autobiografias de W. E. B. Du Bois; There Is a Fountain de Conrad Lynn; Black Bolshevik de Harry Haywood; A Autobiografia de Malcolm X; The Making of Black Revolutionaries de James Foreman; A autobiografia de Leroi Jones; et al.

Não é tarefa fácil para um escritor nascido em liberdade igualar a alta aventura do escravo fugitivo, mas, como você deve ter visto, Pronto para a Revolução é tão emocionante quanto, com suas histórias de golpes militares e invasões estrangeiras na África, grupos racistas brancos na América, a luta pelos direitos de voto no Alabama e no Mississippi, e a participação de Kwame nos mais altos conselhos de um governo africano revolucionário.

A TRADIÇÃO DE LIDERANÇA

A tradição de liderança nacionalista à qual Kwame Ture pertence é uma tradição dual que inclui tanto o pan-africanismo revolucionário do psiquiatra e teórico martiniano da revolução argelina Frantz Fanon como os companheiros trinitários de Ture, George Padmore e CLR James, socialistas treinados na análise marxiana; e tais nacionalistas raciais do século XIX como Alexander Crummell, Edward Wilmot Blyden e Dr. Martin Delaney, que defendiam a emigração para a África. Tendo começado sua vida de luta no grande movimento de direitos civis dos anos 1960, Kwame também pertence à longa tradição de ativismo reformista personificada por Frederick Douglass, Henry Highland Garnett e J.W.C. Pennington no movimento abolicionista do século XIX, e W. E. B. Du Bois, A. Philip Randolph, Bayard Rustin, Medgar Evers e Martin Luther King Jr. no movimento pelos direitos civis que abrangeu todo o século XX. Foi somente depois que os métodos empregados pelos movimentos não-violentos de reforma foram enfrentados pela violência branca organizada e não conseguiram provocar uma mudança fundamental na condição das massas pretas, que Kwame se voltou para as atividades nacionalistas revolucionárias de reparação. Foi o mesmo processo que Nelson Mandela descreve de forma tão comovente em A Long Walk to Freedom

Mas se ele era um reformista não-violento ou um nacionalista revolucionário, Kwame foi motivado por valores comunitários que exigiam aqueles que tivessem sucesso tinham que lutar para elevar o restante da raça. Wilson Jeremiah Moses argumenta em seu ensaio "Nacionalismo Negro Assimilacionista" que esses valores estavam enraizados em "um sentimento genuíno de simpatia por parte da pequena burguesia pelas massas de pretos que lutam". E ele observa corretamente que esse sentimento foi claramente transmitido nos escritos de Paul Laurence Dunbar, que celebrou as alegrias caseiras do namoro, da vida familiar, do trabalho honesto e da fé simples. Em The Souls of Black Folks, WEB Du Bois escreveu sobre as lutas das pessoas comuns com um amor e simpatia que foram além da mera descrição sociológica, como Booker T. Washington, ele falou da obrigação dos pretos instruídos de ajudarem na elevação das massas.

E quem lê Pronto para a Revolução pode ver também, tanto na arte da tradução de Thelwell quanto na poesia da luta que descreve. Enquanto Kwame - que foi educado na Escola de Ciências Bronx High School de Nova York e Howard University e é, portanto, um esplêndido exemplo do "Décimo Talentoso" do Dr. Du Bois - compartilha algumas das idéias e valores de todos esses líderes anteriores, sua visão política permanece única. Por exemplo, embora Kwame tenha emigrado para a África, as ideias que o motivaram a fazê-lo foram muito diferentes das ideias dos nacionalistas do século XIX. Os nacionalistas do século XIX que emigraram para a África eram anglófilos afro-saxões que queriam refazer a África à imagem da Grã-Bretanha, enquanto Kwame rejeitava muitos dos valores das sociedades capitalistas ocidentais modernas, favorecendo um "socialismo africano" baseado nos valores comunitários africanos tradicionais. Como homens altamente educados - Blyden era um ministro presbiteriano; Crummell, um sacerdote anglicano formado em filosofia pela Universidade de Cambridge; Delaney, um médico que frequentou Harvard; e Robert Cambell, um químico jamaicano que explorou a costa oeste da África com Delaney sob o patrocínio da African Civilization Society em 1859 - esses homens da diáspora ocidental viam a si mesmos tanto em uma missão de civilização trazendo o cristianismo e comércio para africanos atrasados quanto os franceses e os imperialistas britânicos alegaram. (Isso também ocorreu com Marcus Garvey, que construiu a maior organização nacionalista de massa preta na história dos EUA - afro-americanos, indianos ocidentais e afro-latinos - no início do século XX.)

De fato, o historiador Wilson Jeremiah Moses, o biógrafo de Alexander Crummell e autoridade reinante sobre o nacionalismo preto nos EUA, nos conta em seu ensaio sobre Crummell, "Platonismo de Cambridge na República da Libéria, era inconcebível para Crummell que o esperado para civilização africana pudesse ser construído sobre instituições indígenas da África Ocidental; ele concebeu a civilização como um processo que deve ser duplicado em seus resultados por qualquer raça ou nação no caminho de se tornar civilizada. Havia apenas um caminho para o progresso, e esse caminho foi percorrido com sucesso pelos povos de língua inglesa."

Essa era praticamente a mesma visão de Blyden e Delaney. Blyden expressou seus pontos de vista sobre o assunto em seu livro revelador Cristianismo, Islã e a Raça dos Negros, no qual ele argumenta que o Cristianismo ou o Islã seriam preferíveis às religiões politeístas africanas nativas. E Delaney, que nomeou seu jornal The Anglo-African, também expressou sua crença de que o desenvolvimento africano dependia de sua adoção do cristianismo e da língua inglesa.

Kwame Ture, no entanto, tinha uma visão muito diferente da África e da Europa. Parte de sua atitude - que é irreverente em relação às reivindicações feitas pela civilização europeia - deveu-se aos tempos em que ele viveu, e parte deveu-se ao fato de ele ter lido e sido influenciado pela crítica marxista da moderna sociedade capitalista que tanto impressionou os nacionalistas do século XIX. Ao contrário dos emigrantes do século anterior, que todos supunham que não havia nada que pudessem aprender com os africanos, Kwame Ture sabia que havia muito a aprender com os revolucionários africanos e ansiosamente buscou uma chance de trabalhar com eles na luta.

Os líderes do século XIX iniciaram suas carreiras como ativistas quando os africanos eram mantidos como escravos pelos europeus em todo o Novo Mundo e, como tais, eram considerados como gado sob a lei. Eles poderiam ser comprados, vendidos e criados como bestas do campo, onde os filhos de escravos africanos eram legalmente propriedade do senhor branco. Confrontado com esse horror, o desejo de uma nação africana independente que pudesse agregar um exército e se destacar na indústria e no comércio era uma aspiração natural. Na verdade, eles estavam obcecados com a ideia de que tal civilização moderna construída em solo africano exoneraria (exonerate) a humanidade da raça. E isso significava, na visão deles, livrar-se da cultura africana inferior que era responsável pela impotência africana em face da devastadora agressão das sociedades europeias predatórias.

Mas o mundo em que Kwame Ture amadureceu estava repleto de atividade revolucionária na África, Ásia e América Latina, o chamado Mundo Bandung - um nome retirado da primeira conferência de povos não brancos realizada em Bandung, na Indonésia, em 1955. Esse espírito revolucionário que encorajou povos sem poder a confrontar o poder branco e exigir liberdade também varreria a América preta nos anos 60. Foi dessa experiência que Kwame desenvolveu sua crítica radical à civilização capitalista ocidental. Assim, quando Kwame chegou à costa africana, ele estava se estabelecendo em um estado-nação africano independente, do qual as gerações anteriores de nacionalistas pretos só podiam sonhar, e ele via a si mesmo como fugindo de uma civilização cristã ocidental avançada, decadente e perigosa. Assim, ele poderia dizer: "Eu fui à Guiné porque havia muito que eu precisava aprender com o Presidente Nkrumah. Então, é claro que eu pretendia estudar".

Aqui, Kwame está falando sobre o tempo que ele passou como ajudante de campo para Kwame Nkrumah durante seu exílio na Guiné depois que sua presidência foi derrubada em um golpe pelo exército de Gana. Num ato de extraordinária fraternidade pan-africana, Sékou Touré fez de Nkrumah o copresidente da Guiné, um ato que convenceu o jovem Stokely Carmichael de que a Guiné era o modelo de uma sociedade pan-africana revolucionária. Um homem que sempre agiu de acordo com suas convicções, ele tomou os nomes desses homens, os homens que ele acreditava estar liderando a África no caminho da libertação e do desenvolvimento progressivo, e tornou-se membro de seu partido no poder. Em um episódio único nas relações entre africanos na pátria e descendentes africanos da diáspora, Kwame entra no círculo interno de poder na Guiné revolucionária e nos fornece uma visão em primeira mão do funcionamento interno da revolução africana. "Em Conakry", ele recorda, "fazendo parte da comitiva, participei de reuniões com as várias delegações que chegavam. Participei do grupo de estudo do partido e fiz treinamento militar com a unidade de Gana... Certamente aprendi muito sobre a política e as realidades em curso da luta africana. Mas, claro, eu era entusiasta. Eu realmente queria lutar.”.

Nesse sentido, Kwame era exatamente como Frantz Fanon, que teve experiência real de combate na Segunda Guerra Mundial, mas, como Fanon na Argélia, provou ser muito valioso em um papel político / diplomático. Por isso, aceitou graciosamente e tornou-se talvez o embaixador mais eficaz e popular da revolução pan-africana centrada na Guiné. A profundidade do compromisso de Kwame com o experimento guineense foi inspirada pelo fato de que, tendo testemunhado a derrubada de outros regimes progressistas, ele acreditava que a Guiné era o último posto avançado revolucionário na África. 

A vida de Kwame é única na história dos principais líderes pan-africanos da diáspora em outro aspecto importante. Os três principais revolucionários pan-africanos do Caribe que precederam Kwame - George Padmore, C. L. R. James e Frantz Fanon - foram todos casados com mulheres brancas. No entanto, as lembranças de Kwame incluem muitas referências poéticas brilhantes à beleza e aos encantos das mulheres africanas com quais ele se casou. Ambas eram mulheres extraordinárias por qualquer medida. Sua primeira esposa, Miriam Makeba, é uma cantora de renome internacional da África do Sul, e sua segunda esposa, Marliatou, é uma médica guineense.


Também não se pode encontrar as referências brilhantes à importância da cultura africana nativa em gerações anteriores de nacionalistas negros ou revolucionários pan-africanos de orientação marxista. "Cultura é política e política é cultura", ele nos diz. "Sékou Touré compreendeu a importância da cultura. Ele amava intensamente, quero dizer, ele era pessoalmente encantado com a cultura de seu povo. Mas, além disso, o partido entendeu claramente que a cultura tradicional era um elemento-chave para moldar um personagem africano à Revolução... Mas não apenas as artes, também a ética e os valores da cultura tradicional, o que eu chamo de humanismo africano." Isso está muito longe das atitudes da primeira onda de peregrinos da nova diáspora mundial.

No grande movimento da narrativa deste livro, vemos como Stokely Carmichael, o filho ascendente de trabalhadores imigrantes das Índias Ocidentais, se tornou ativista do movimento dos direitos civis dos EUA, metamorfoseou-se em Kwame Ture, revolucionário pan-africano, que conseguiu fazer a transição e se tornou um africano. Ninguém que eu saiba fez essa transição tão bem. E nós, os leitores, somos especialmente afortunados por poder seguir este processo fascinante de dentro. Só isso vale o preço do texto e o investimento de tempo para permitir uma leitura adequada. 

E tem mais. Também temos um raro vislumbre desse momento tão breve na história americana, quando pretos e brancos do Student Nonviolent Coordinating Committee  (SNCC) enfrentaram multidões do sul e xerifes caipiras com cães raivosos. Soma-se a isso a análise abundante e aprendida de uma testemunha de linha de frente das maquinações do governo dos EUA e seus aliados para subverter e destruir o movimento preto de libertação em casa e no exterior. E, finalmente, temos um magnífico retrato de coragem diante da doença terminal.

No entanto, enquanto nos reuníamos ao redor do leito de Kwame Ture, enquanto ele se preparava para retornar à pátria e tomar seu lugar no panteão dos heróis pan-africanos, seus olhos ainda alimentavam aquele fogo sagrado que se inflama quando ele fala de servir ao povo. Era como se a questão de libertar e elevar as massas africanas fosse o assunto urgente, e a morte uma distração insignificante. Todos os que testemunharam, puderam ver que aqui estava um irmão que foi endurecido no fogo da luta, treinado para problemas, e Pronto para a Revolução!

—Playthell Benjamin

New York, August 2003


sexta-feira, 4 de maio de 2018

Ifi Amadiume: A teoria dos valores Matriarcais como base para a Unidade Cultural Africana

Ifi Amadiume: A teoria dos valores Matriarcais como base para a Unidade Cultural Africana

Introdução do livro A Unidade Cultural da África Negra, de Cheikh Anta Diop, edição da Karnak House, 1989. 

Ifi Amadiume

Foi em 1983 que quase me encontrei com Cheikh Anta Diop em uma comunidade sufi em Madina-Kaolack, no Senegal. Sabendo dos meus interesses políticos e intelectuais, o Iman e Sheik dessa comunidade me disse, logo que cheguei, que por pouco eu teria me encontrado com Cheikh Anta Diop. Adiante, em 1985, me vi bem próxima do grande sábio Africano novamente. O organizador da conferência de 1985, logo quando Cheikh Anta Diop havia feito uma publicação em Londres, sabendo de como a notícia me afetaria, pediu-me para ir encontrá-lo. Mesmo que grávida na época, eu rapidamente fui até ele. Direcionei-me para falar com ele. Ele estendeu a mão retornando a saudação. Foi quando alguém apareceu entre nós para conversar com ele, então deixei conversarem e voltei ao meu assento.

Mais tarde, em 1985, escrevi Afrikan Matriarchal Foundations: The Igbo Case [Base/Origem do Matriarcado Africano: O caso Ibo] em que eu tentei comprovar algumas das ideias levantadas por Diop em A Unidade Cultural da África Negra: As Esferas do Patriarcado e do Matriarcado na Antiguidade Clássica. Eu dediquei o livro em tributo a Diop em Ibo, Ebunu ji isi eje ogu, "Carneiro corajoso que luta com sua mente". Claro que me referi lutar sem medo, com coragem e inteligência; o que Diop chamava “racionalização”. Depois, em 1986, eu li um aviso em um jornal nigeriano que o nosso grande filósofo tinha morrido de um ataque cardíaco e eu chorei. Ele tinha apenas 62 anos de idade. Ao ser convidada para escrever essa introdução do livro A Unidade Cultural da África Negra, edição da Karnak House, eu me encontrei novamente no caminho de Cheikh Anta Diop. Espero não me perder em adulação cega, mas avaliar objetivamente os méritos deste livro, não só como munição para lutar contra os racismos antiÁfrica, mas por sua relevância no pensamento político contemporâneo Africano e para o desenvolvimento de um programa de estudos africanos, de classe mais progressiva e de consciência de gênero.

Diop escreveu este livro durante as lutas nacionalistas dos anos 50 que foi um período de debate pela independência Africana. Como um pan-africanista acima de tudo, atacou aqueles que não poderiam conceber a ideia de uma Federação Africana independente ou de um Estado Africano multinacional. Ele, dessa forma, se comprometeu a demonstrar “nossa unidade cultural orgânica”, apesar de uma “aparência enganadora da heterogeneidade cultural”. Por que Diop adotou essa abordagem orgânica? Uma razão pode ser o fato de que aquele era o período da abordagem orgânica (o conceito de homogeneidade de uma sociedade específica que exclui as contradições sociais) seguido pelos formalistas nas ciências sociais. Esta abordagem foi mais tarde negada pelos funcionalistas e estruturalistas. No entanto, o trabalho de Diop faz mais sentido na escola estruturalista, pois ele está basicamente tratando de ideias. A outra razão pode ser que neste assunto em particular, Diop não estava simplesmente preocupado com os acadêmicos puramente abstratos, mas tinha um compromisso político de tentar reconstruir a história e a cultura do seu povo, que havia sido submetido por cerca de 900 anos de pilhagem pelos árabes e os europeus, isso nem mesmo inclui a destruição da antiga civilização egípcia africana. Diop, não obstante, defendeu que aquilo que nos une é muito mais fundamental que as nossas diferenças superficiais, e que estas diferenças foram impostas externamente. Elas derivam da herança colonial.

O que Diop teve firme controle e usou para discutir a “profunda unidade cultural” da África foi a história do matriarcado Africano. Ele assim procedeu desde a análise da condição material à superestrutura ideológica. Ao fazê-lo, Diop recuperou nossa história Afrocêntrica, aplicando uma visão holística e uma análise estrutural do mito a fim de expor as ideias por trás dos acontecimentos. O resultado foi um modelo compreensível para uma história social Africana.

As forças racistas, colonialistas e imperialistas que Diop estava confrontando naquele momento o obrigou a não argumentar exclusivamente na análise do matriarcado na África. Ele teve de enfrentar o mundo dos chamados “especialistas” sobre o assunto. Diop, assim, passou a fazer uma crítica extensa e devastadora da teoria de Bachofen sobre o matriarcado, e da teoria da família de Morgan.

A teoria evolutiva do matriarcado de Bachofen baseou-se na análise da literatura grega clássica. A partir desta fonte grega limitada, ele passou a generalizar toda a organização social humana da evolução de um período em que não houve casamento, mas “barbárie” e “promiscuidade sexual”, baseado em um sistema de descendência matrilinear até um período de casamento e matriarcado baseados na supremacia da mulher. A fase final foi o período do imperialismo masculino, isto é, o patriarcado. Como aponta Diop, Bachofen não só criou esses períodos evolutivos, mas também impôs um julgamento preconceituoso, concluindo que o patriarcado é superior ao matriarcado.

Mesmo assim, o que é interessante na análise da Oresteia, de Ésquilo, feita por Bachofen não é tanto a derrota do matriarcado pelo patriarcado, mas o fato de que para fazer essas alegações falsas de derrota ou de superioridade, ele teve que inventar um tipo de pseudoprocriação em rituais abstratos ou religiões e adequar o papel pro-criativo factual básico de maternidade biológica natural e esse “laço mais íntimo de amor” [‘closest bond of love’]. Isto é basicamente o que os papéis de sacerdócio ou de iman têm feito. Desse modo, os homens assumem a tarefa de criação que era da mãe; eles chegam até ao ponto de imitar a vestimenta das mulheres. No ritual patriarcal em que esta construção é mais evidente vemos homens vestidos como mulheres. É por isso que as verdadeiras mulheres são banidas desses papéis. Esse foi o papel de Apollo e Athena. Além disso, para que essa pseudoconstrução tivesse sucesso, dever-se-ia reclassificar mulheres como traidoras a exemplo de Athena. Uma vez que podemos compreender esta análise, então não precisamos ir à antiguidade para ver esta luta ou disputa entre sistemas de pensamento matriarcais e patriarcais. Muitas teorias feministas atuais também são incapazes de lidar com a questão do matriarcado, pois elas estão ainda ancoradas na periodização de Bachofen. Ou talvez, porque elas não têm nem memória histórica, nem cultural do matriarcado, e entendem o matriarcado não tanto no sentido de instituições sociais, organizações de parentesco, instituições culturais de mulheres, mas como uma sociedade totalmente governada por mulheres. Quando elas não conseguem encontrar essa tal sociedade, descartam a questão do matriarcado e o coloca como mito.

Diop ilustra como a compreensão de Morgan acerca dos sistemas de casamento e parentesco permaneceu caótica. A partir do estudo dos indigenas iroqueses da América do Norte, Morgan tinha, com base em seus conceitos etnocêntricos da estrutura da família nuclear da civilização europeia, postulado quatro estágios na evolução, desde o matrimônio, família e o matriarcado dos povos “bárbaros”, até o patriarcado e a monogamia de “civilizados” da Grécia e Roma. Como mostra Diop, a classificação de Morgan era basicamente esta equação: arianos (Indo-Europeus) = brancos = civilizados; e não-arianos = outros = selvagens. Morgan era um racista. Esta teoria era racista.

Em suas teorias de um matriarcado orgânico universal, tanto Bachofen como Morgan estabeleceram uma hierarquia falsa e racista dos valores e sistemas sociais. O sujeito colonial da antropologia reforçou essa divisão e o racismo como resultado de seu zoneamento da humanidade em suas sociedades ditas primitivas = outros, e modernas - a deles = sociedades civilizadas. Essas noções racistas e ignorantes de civilizações culturais altas e baixas equiparou feudal, piramidal, sistemas políticos burocráticos e imperialistas como cultura “alta” e os sistemas políticos descentralizados e difusos como cultura “baixa” e primitiva. Como a consciência política de hoje busca reverter essa falácia, é marcada pelos movimentos de participação horizontal e descentralizada.

A posição de Diop revela que o matriarcado é específico, e não geral, dado a influência da ecologia em sistemas sociais. Ele, portanto, apresentou sua hipótese de berço duplo e seguiu para discutir duas zonas geográficas, do Norte e do Sul. Sua tese é que o matriarcado se originou no Sul agrícola, usando a África para ilustrar seu argumento, enquanto que o patriarcado originou-se no Norte, sendo nômade. O cinturão do meio era a bacia do Mediterrâneo, onde o matriarcado precedeu o patriarcado. Considerando que na Ásia Ocidental, ambos os sistemas foram sobrepostos um sobre o outro.

Comparando estas culturas Norte e Sul com base na condição da mulher, no sistema de herança, pelo dote e filiação de parentesco, Diop mostra como a cultura do Norte indo-europeu negou os direitos das mulheres e subjugou-as sob a instituição privada da família patriarcal, como foi argumentado por Engels. Os patriarcas do Norte queriam as mulheres sob seus controles confinando-as em casa e negando um papel público e de poder. Neste sistema, um marido ou um pai tinha o direito de vida e morte sobre uma mulher. A viagem de mulheres para o casamento agravou este controle patriarcal. Este sistema do Norte foi caracterizado por dote, adoração ao fogo e cremação.

Em contraste, na cultura matriarcal do Sul, tipificada pelo sistema agrícola e sistema de sepultamento, os maridos vinham para as esposas. As esposas eram as donas das casas e guardiãs da alimentação. A mulher era a agricultora. O homem era o caçador. O poder da mulher foi baseado em seu importante papel econômico. Este sistema também foi caracterizado por bridewealth (riqueza da noiva) e o forte laço entre irmão e irmã. Mesmo no casamento onde uma mulher viajava esse vínculo não era completamente rompido. A maioria das regras de funeral prescrevia o retorno do cadáver da esposa para sua casa natal. Trocas funerais também indicavam uma compensação pela perda de uma mulher, como as minhas próprias pesquisas confirmaram.

Esse sistema matriarcal do Sul também foi marcado pela sacralidade da mãe e sua autoridade ilimitada. Havia juramentos invocando o poder da mãe, isto é, a ritualização daquela matricêntrica, mãe e filho, “o laço mais íntimo de amor” citado até mesmo em Eumenides. Este é o “espírito da maternidade comum”, geralmente simbolizado nas religiões africanas. Em Ibo, é OmaUmunne, Ibenne. Neste conceito religioso africano, é a mãe que dá aos seus filhos e à sociedade em geral o dom do “pote da prosperidade”, que em Ibo é chamado de ite uba.

A mãe também concede o pote de segredos/ mistério/ magia/ conhecimento sagrado/ poder espiritual. Em Ibo, isso é chamado de ite ogwu. Em wolof, é demm. Todos os mitos, lendas e histórias de heroísmos africanos não adulterados atestam isso. Como diz Diop, essas ideias “remontam aos primórdios da mentalidade africana. São, portanto, arcaicas e constituem, no presente, uma espécie de fossilização no campo das ideias atuais. Elas formam um todo que não pode ser considerado como a continuação lógica de um estado anterior e mais primitivo, onde uma herança matrilinear teria governado exclusivamente.” (p.34) A construção social ou cultural da paternidade nesses sistemas matriarcais levou os antropólogos sociais preconceituosos e ignorantes a assumir que nossas sociedades não conheciam os fatos da concepção!

Na teoria de Diop esses dois sistemas são rígidos, “foi demonstrado que essas coisas ainda ocorrem sob nossos próprios olhos, nos dois berços e com pleno conhecimento dos fatos. Não é, portanto, lógico imaginar um salto qualitativo que explicaria a transição de um para o outro”. (p.41) Diop, no entanto, insistiu em atribuir a mudança social principalmente a fatores externos, como resultado de sua visão orgânica da sociedade. Essa compreensão orgânica da sociedade e da cultura contribuiu para que ele atribuísse os sistemas mistos das sociedades oceânicas ao papel de migração e dispersão.

Essa atribuição de mudança social apenas a fatores externos apresenta não apenas uma visão orgânica, mas também estática da sociedade. Diop viu a África tradicional como um continente onde as civilizações antigas permaneceram preservadas, já que a África parecia mais substancialmente resistente a fatores externos. Assim, Diop foi capaz de apresentar dois sistemas polares de valores para seus Berços Norte e Sul. A África, como representante do Berço do Sul do matriarcado, valoriza a família matriarcal, o estado territorial, a emancipação da mulher na vida doméstica, o ideal de paz e justiça, bondade e otimismo. Suas literaturas favoritas eram romances, contos, fábulas e comédias. Sua ética moral foi baseada no coletivismo social.

O contrastante Berço do Norte, como exemplificado pela cultura ariana da Grécia e Roma, valorizava a família patriarcal, a cidade-estado, a solidão moral e material. Sua literatura foi caracterizada pela tragédia, ideais de guerra, violência, crime e conquistas. A culpa, o pecado original e o pessimismo, impregnaram toda a sua ética moral baseada no individualismo.

Diop, tendo assim contrastado um sistema com o outro, passou a fornecer uma história geral de ambos os berços e suas áreas de influência. Para provar seu ponto de vista de que as mulheres africanas já eram rainhas e guerreiras, participando da vida pública e política, enquanto suas contemporâneas indo-europeias ainda estavam subordinadas e subjugadas sob a família patriarcal, Diop nos apresenta uma série de poderosas antigas rainhas africanas e suas conquistas. Na Etiópia, houve a rainha de Sabá, a rainha Candace, que lutou contra o exército invasor de Augusto César. No Egito, havia a rainha Hatshepsout, descrita como “a primeira rainha da história da humanidade”. Cleópatra foi intitulada “Rainha dos Reis”. Mesmo nos imensos e poderosos impérios de Gana, no século III d.c., os valores matriarcais eram a norma. O mesmo acontecia no Império do Mali.

Consistente com sua teoria do fator externo na mudança social, Diop atribui a introdução da patrilinearidade na África à vinda do Islã no século X. Mesmo assim, ele argumenta que a patrilinearidade ficou na superfície e não penetrou profundamente nos sistemas matriarcais de base. Ele atribui as mudanças mais recentes em direção ao patriarcado a mais outros fatores externos como o islamismo, o cristianismo e a presença secular da Europa na África, simbolizada pela legislação colonial, direitos a terra, nomeação do pai, monogamia e a classe das elites educadas no Ocidente e contato moral com o Ocidente.

A teoria de dois sistemas rígidos de Diop me parece difícil de aceitar academicamente, dadas as limitações impostas à abordagem orgânica das sociedades, que leva à representação da sociedade como estática e não dinâmica em si mesma. No entanto, aceito a irredutibilidade da unidade matriarcal como um fato social. O patriarcado só pode se basear em uma negação desse fato, daí surge suas falsificações. O patriarcado é tanto uma construção social quanto cultural, consequentemente a equação do patriarcado com o controle e a opressão das mulheres. O fato 'natural' e social da unidade matriarcal é base para todas as sociedades, como simbolizado pela mulher grávida. 

Consequentemente, a questão é se essa estrutura básica da mãe e do filho é reconhecida na organização social, cultural e política. Onde é reconhecido, as mulheres seriam obviamente organizadas para garantir esse reconhecimento. Pelo que sabemos, as mulheres foram organizadas em sociedades indígenas africanas. As mulheres Ibo, por exemplo, ainda cantam: "a mulher é a principal, é a principal, é a principal”, repetindo e repetindo a declaração e a mensagem. Assim também é a sagacidade e infalibilidade de mães sendo clamada repetidamente - por mulheres. As mulheres africanas eram aquelas socioeconomicamente organizadas que estavam no controle de certas áreas e envolvidas nos processos de criação de ideologias. 

Todavia, é necessário aplicar uma multiplicidade de abordagens teóricas para obter uma visão das dimensões internas das relações sociais e de gênero. Seria necessário aplicar teorias de processo social, conflito e dissensão, a fim de obter um quadro muito mais completo de sociedades e culturas, não apenas um conceito orgânico dado e imutável dos chamados sistemas formais. Homens e mulheres são animais racionais, capazes de formar grupos de interesses políticos e conflitantes com base no sexo, idade, classe, etc., diferenças ou semelhanças. Mesmo o indivíduo pode estar em conflito com a instituição com o argumento de diferenças desconstrucionistas.

É por isso que tomei uma posição diferente em Afrikan Matriarchal Foundations e argumentei que, em todos os tempos da história humana, os princípios matriarcais e patriarcais de organização social ou de ideologias apresentaram dois sistemas justapostos e contestadores. Por exemplo, se essas rainhas listadas por Diop estivessem atuando apenas em sistemas matriarcais, ficamos imaginando por que precisavam usar símbolos masculinos de autoridade, como Nzinga, de Angola, vestida com roupas masculinas, ou Hatshepsout, no Egito, que usava barba? O masculinismo da maioria dessas rainhas guerreiras rendeu-lhes descrições como ironmaidens (donzelas de ferro) e Boadiceias.

Pode-se argumentar que, como resultado das diferenças matriarcais básicas nos valores sociais, a centralização e o feudalismo na África expulsariam as Rainhas que estavam confortavelmente assentadas em sua feminilidade, enquanto os valores patriarcais e centralizados indo-europeus produziriam as Boadiceias e donzelas de ferro, geralmente alienadas de sua feminilidade. Nos tradicionais sistemas políticos descentralizados africanos, a representação simbólica das deusas era simplesmente em mulheres tituladas, que não eram nem Rainhas nem donzelas de ferro, como por exemplo, Igo Ekwe titulava mulheres.*

Esse debate também foi assumido por Diop, quando ele desconstruiu o mito clássico da Amazona, mostrando como esse mito era derivado de um berço eurasiano, onde “reinava um feroz patriarcado”. Foi a opressão patriarcal contra as mulheres, fabricada no mito clássico da Amazona, que levou Diop a fazer essa afirmação: “Matriarcado não é um triunfo absoluto da mulher sobre o homem; é um dualismo harmonioso, uma associação aceita por ambos os sexos, para construir uma sociedade sedentária, onde cada um pode desenvolver-se plenamente seguindo a atividade mais adequada à sua natureza fisiológica. Um regime matriarcal, longe de ser imposto ao homem por circunstâncias independentes de sua vontade, é aceito e defendido por ele”. (p.108)

Como Diop diz corretamente sobre contingentes femininos militantes ou militares na África, “o ódio aos homens é estranho para elas e assim possuem a consciência de 'soldados' lutando apenas pela libertação de seu país”. 

O que é importante para nós hoje não é o legado de rainhas guerreiras, mas uma análise minuciosa do sistema primário de organização social em torno de uma unidade cultural matrilinear economicamente autossuficiente e um sistema linguístico livre de gênero, que é o legado do matriarcado africano. Precisamos entender suas religiões e culturas associadas à deusa, que ajudaram as mulheres a se organizarem efetivamente para lutar contra as forças controladoras do patriarcado, alcançando assim uma espécie de sistema de freios e contrapesos. Isso é basicamente o que as chamadas religiões monoteístas e abstratas do islã e do cristianismo que governam a África hoje subvertem e continuam a atacar. A questão fundamental para aqueles que propõem essas religiões como um possível meio de alcançar uma unidade pan-africana de federação é: estas religiões são capazes de aceitar e acomodar nossas deusas e nossos matriarcados, isto é, as verdadeiras culturas primordiais das mulheres africanas na atual política de primordialismo, manipulado por nacionalistas e fundamentalistas?

A África do interior propriamente dita, que possuía estruturas tais que favoreciam o domínio das deusas, matriarcas, rainhas, etc., ainda hoje estão presentes conosco. Mas esses sistemas estão enfrentando erosão, enquanto homens africanos da elite manipulam os patriarcados novos e emprestados para forjar o mais espantoso “imperialismo masculino”, ainda desconhecido em nossa história. Como vamos subverter a isso, já que a primeira baixa tem sido a autonomia e o poder da organização das mulheres tradicionais?

Em contraste com o aparente conluio das filhas africanas atuais com o establishment, a questão do papel e do status da mulher na sociedade, longe de ser um debate do século XIX, desde os anos 60 reuniu uma nova força na literatura feminista e na erudição ocidental. Na Alemanha, por exemplo, o inquérito sobre o matriarcado é levado muito a sério. Nos EUA e na América Latina, a busca das mulheres pela espiritualidade predomina. Na Grã-Bretanha, é uma busca por deusas antigas. Há também um renascimento dos cultos de bruxaria. Todo o movimento Verde e Ecológico deriva seu conceito e ideologia do chamado animismo africano, que agora está sendo reconhecido como uma adoração da natureza. Em tudo isso, a etnografia africana serve como um banco de dados, mas com pouco reconhecimento por parte dos usuários. A história da apropriação grega da filosofia e da ciência africanas no século XIX se repetiu nesta véspera do século XXI?

Ironicamente, em todos esses movimentos, é nesse continente de matriarcados, a África, onde não há tal preocupação por parte dos eruditos/intelectuais africanos. Seria devido ao fato do controle de homens e mulheres da elite, cristãos e islamitas? Seria também porque somos agora governados diretamente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial e por agências de ajuda estrangeiras e os neomissionários que nos 'arremessam' dinheiro, comida, roupas e seus livros/conhecimentos, incluindo seus resíduos tóxicos? Numa espécie de negação abstrata da realidade social e material da experiência de cada criança africana e sua mãe, como é característico de novas invenções patriarcais masculinistas de homens africanos especialmente da elite, esta contínua prática de cópia estrangeira e sua esquizofrenia sintomática continua a ser o destino da mente de uma África colonizada.

Como Diop assumiu a questão fundamental do matriarcado a partir de uma perspectiva africana, em oposição a uma luta comprometida pelos direitos das mulheres nos sistemas patriarcais, qual estudioso vai aderir ao matriarcado de Cheikh Anta Diop? Para ele, o matriarcado é um “conjunto de instituições favoráveis à feminilidade e à humanidade em geral”. Como ele disse, a ciência social controlada pelos homens só viu “liberdade perigosa e quase diabólica”. Alguém pode se perguntar, por que os teóricos matriarcais ocidentais não citam o trabalho de Cheikh Anta Diop?

A raiva contra Diop tida pelos intelectuais brancos e pelo próprio interesse ocidental não diminuiu. Na verdade, é muito comum hoje em dia ser papagaiado por uma classe particular de africanos, que ainda estão sob a tutela, a supervisão e o controle dos brancos. Quanto aos homens africanos, eles se sentem contentes em citar apenas os aspectos do trabalho do grande pensador que servem ao seu propósito, especialmente a recuperação da antiga civilização egípcia. Contudo, a tese fundamental do trabalho de Diop, que se dá no matriarcado africano, é encarada com uma menor relevância.

Nas descobertas mais recentes na busca ocidental por origens raciais humanas, uma invenção racista de preocupação apenas do Ocidente, Diop é reivindicado repetidas vezes acerca do papel principal da mãe africana, seja na herança do gene ou da linguagem para a raça humana, que continua a ser “muito cientificamente provado”. Mas a apropriação racista se consolida mesmo nesta época de desconstrução - se esses mais jovens de nossos filhos não chamam a mãe africana da humanidade de Lucy, eles a chamam de Eva! Então, vemos novamente a apropriação do século XIX. Para os cientistas, é impensável que o fóssil da nossa mãe africana, encontrada no continente africano, conserve um nome africano! Isso cristaliza e simboliza a natureza da relação da civilização europeia com a da África. Essa estrutura de apropriação pode ser encontrada em todos os outros campos de relações.

Diop enfatizou: “Que esse trabalho pode contribuir para o fortalecimento dos sentimentos de boa vontade que sempre uniram os africanos de um extremo ao outro e, assim, mostrar nossa unidade cultural orgânica”. Ele tornou imperativo que um conhecimento completo de nossos desafios devesse ser aprendido com o passado, a fim de “manter a consciência de que o sentimento de continuidade histórica é essencial para a consolidação de um Estado multinacional”. Como Cheikh Anta Diop, por causa de nossa história do colonialismo, os intelectuais africanos, se quiserem estar livres da autonegação, devem desconstruir, invalidar e reconstruir. A imposição de uma moeda comum e uma linguagem comum acima dos nossos idiomas locais é um imperativo. Não importa qual língua, desde que sua morfologia e sintaxe tenham origem africana, especialmente sobre a formação de gênero. Não adianta nos impor um crioulo que incorporou todas as estruturas patriarcais e racistas na sua origem. Todos podem, de fato, começar pelo mesmo ponto de partida, se escolher a língua africana mais remota de dentro dos arbustos e a levar a crescer conosco. Nesse caso, não haverá dúvida acerca de imperialismo e ou qualquer desconfiança.

Neste projeto de reconstrução, uma história social com consciência de gênero e de classe é uma prioridade. O termo racista antropologia, que realmente deveria ter sido chamado de a História Social, deve ser totalmente banido. Devemos adotar e elaborar a historiografia de Cheikh Anta Diop, usando sua abordagem multidisciplinar para escrever uma história social africana e reforçar o ensino da história social em nosso currículo. A erudição africana atual só conhece a história cronológica de reis, rainhas e conquistas. Como em nossas escolas e faculdades, não há história social, nem história de base e a partir da base, nem a história de nossas instituições sociais indígenas, como então podemos começar a construir uma história e unidade africana sem esse conhecimento? Como nosso grande filósofo e ativista político africano disse, que o compromisso geral do ativismo intelectual leve à liquidação de todos os sistemas coloniais do imperialismo. Sua visão do universo de amanhã é aquela imbuída do otimismo africano. Diop previu assim o movimento ecológico?

Este livro permanecerá um clássico enquanto houver homens e mulheres neste mundo e enquanto o Ocidente persistir em sua história do patriarcado, do racismo e do imperialismo.

 




Introdução do livro "A Unidade Cultural da África Negra", de Cheikh Anta Diop, edição da Karnak House, 1989. 

Traduzido por Carlos R. Rocha (Fuca) - Insurreição CGPP

(atualizado 2020)

 



quarta-feira, 2 de maio de 2018

A noite não adormece nos olhos das mulheres - Conceição Evaristo

A noite não adormece nos olhos das mulheres
      Em memória de Beatriz Nascimento

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede de nossa milenar resistência

– Conceição Evaristo, em Cadernos Negros, vol. 19.

Um ano já se passou: João Victor descanse em paz

João Victor descanse em paz e que sua família tenha conforto nesse momento difícil, carregando uma dor que marca pro resto da vida.

João, já vi semelhantes nossos sendo espancados em postes, e eu acreditando depois de tudo, que aquilo não aconteceria mais, por mais que a ancora do jornal o chamava de marginalzinho incitando sua morte. Lembro, também, da Luana em Ribeirão Preto que morreu após ser espancada por pms, e te juro que acreditei, após tanta brutalidade, que ali pararia essa onda de violência. Mano, chorei ao ver o vídeo do Renatinho (Peterson) pedindo socorro enquanto era covardemente torturado e assassinado por militares da força tática de sp. Acreditei piamente que o Ítalo viveria após ter feito sua ousada peripécia de criança, mas ele pagou com a vida aos 10 anos de idade. Agora, quando assassinaram o sr Luis Carlos Ruas daquela forma desumana e disseram que a estação do metro teria o nome dele, aí eu de novo tive a mesma esperança de que tudo isso acabaria. João, são tantos mal entendidos nesses casos,...de que fizeram confusão no alvo, de que bateram só pra dar um susto, de que teve disparo acidental, de arma que disparou sozinha, de que tava no local errado, casos de legitima defesa, que eu quase acreditei que não era ódio exacerbado contra nosso povo. Quase que me esqueci o que significa segurança pública pra nóis, e que a segurança privada replica os procedimentos e vice-versa. Que não dá pra deixar de lado a campanha 'higienista' propagada pelos governos (de todos os lados)! Ainda com apoio de parcela da sociedade. 

Tá chato esse assunto né mano? Desculpa essa mensagem citando esses acontecimentos, poderia ser uma mensagem leve como uma roupa de presente, um bute, um jogo ou um lanche servido no fim da tarde e não algo póstumo.
Fica meus sentimentos. Descanse em paz.




terça-feira, 24 de abril de 2018

Influência do Pensamento de Stokely Carmichael para o Pan Africanismo

Por Kilombo Favela Rua

Convocamos todas as Pretas e Pretos do Rio de Janeiro, indivíduos ,estudantes, trabalhadores, organizações, coletivos e ativistas e militantes no gera,l para uma reflexão sobre o pensamento político de Stokely Carmichael (Kwame Ture) e a tradição radical preta, autônoma e Pan Africanismo. 

Em nossa atual conjuntura, onde debatemos os rumos políticos e o quanto a força da luta partidária influência o rumo do povo preto no Brasil, os convidamos a trocar essa ideia e conhecendo e analisando o pensamento desse influente teórico do Pan Africanismo e os mecanismos necessários para nossa libertação.

Lançaremos também o livro do Poder Preto ao Pan- Africanismo e faremos uma homenagem a Winnie Mandela.

Quando? 28/04/2018
Que horas ? 15:00
Onde? Rua Uruguaiana , 77 - Museu do Negro

Venham e convidem as pessoas próximas de você.
O conhecimento liberta!

Organização:
UCPA - União de Coletivos Pan Africanistas
Ocupa Alemão Favela/ Quilombo
Kilombo Favela Rua




sexta-feira, 20 de abril de 2018

O aumento da cultura do ódio? - breve nota

A cultura do ódio tem se tornada mais evidente, até mesmo devido os avanços tecnológicos na área de comunicação, mas não necessariamente deve-se pontuar um crescimento de agora. Esse aumento mantêm-se gradativamente, impulsionado pelo contexto histórico-cultural deste projeto de nação chamado Brasil.

A forma como a comunicação se desenvolve na atualidade permite uma interação imediata entre os interlocutores. Antes, essa troca era dada internamente, mais demorada e menos viralizada. Na televisão e no rádio a transmissão de informação, opiniões e doutrinas é feita de forma unilateral. Com o advento das redes sociais na internet, essa interação torna-se massiva, prática e de certa forma resguarda anonimato. Isso encoraja as pessoas a exporem e reproduzirem o que se é acumulado, tem-se maior alcance e é instantâneo.

A história do Brasil, até o surgimento da república e após esse período, tem acontecimentos de extrema violência, dominação (forçada e não forçada), e intolerância. Mas esse país assume um papel nefasto e dissimulado de romantizar a história do processo de consolidação da nação, afirma que que as integrações foram feitas respeitando as diferenças culturais, linguísticas, sociais, religiosas e econômicas.

Começa a aparecer mais facilmente todo ódio contido por trás dos mitos de um país de todos, multicultural, multirracial e de colonização benevolente, pois até então, todo esse ódio que desencadeia uma série de problemas, principalmente violência, estava mascarado. Os grupos detentores de poder puderam tornar seus atos legítimos ao longo de séculos, assim naturalizar essas diversas atrocidades e por muito tempo evitar que se pautasse seriamente o assunto.

Portanto, é preciso analisar e estudar as raízes desse problema que age de forma transversal na diferença de classes sociais, de gênero, mas acimo de tudo, a cultura de quem dominou/colonizou e não apenas se espelhar ou reproduzir o pensamento europeu e a forma de vida nos moldes da civilização ocidental. O complexo de superioridade desse berço civilizatório culmina no desejo de desmantelar outras culturas em nome de uma (ocidental) tida como universal. É inegável que o ódio está atrelado ao medo do outro, medo do estrangeiro e violações de diversos direitos.

Fuca  - 09/2017

terça-feira, 17 de abril de 2018

Koumba Tam - Mateus Aleluia / Léopold Sédar Senghor

Koumba Tam - Letra - Mateus Aleluia

Verde palma vela febre dos cabelos
Acobrei a curva afronte
As pálpebras quebradas dupla face
As fontes seladas
Esse fino crescente esse lábio mais negro e quase pesado
E o sorriso da mulher cúmplice.

As patenas das faces, o desenho do queixo
Cantam mundo acorde
Rosto de máscara serrada ao efêmero
Sem olho, sem matéria
Perfeita a cabeça de bronze
Com sua pátina do tempo
Sem vestígios de pinturas
Nem de rubor, nem rugas, nem de lágrimas, nem de beijos.

O rosto tal qual Deus te criou
Antes mesmo da memória da cidade lembrança da aurora do mundo
Nao te abras
Pra receber no colo meu olhar que te afaga
Adoro-te óh beleza
Com meu olhar monocórdio.

Dorme Koumba Tam
Dorme Koumba Tam
Ela dorme e repousa seu rosto na candura da areia.

Dorme Koumba Tam
Dorme Koumba Tam
Ela dorme e repousa seu rosto na candura da areia.

Adaptado/traduzido do poema: Máscara Negra de Léopold Sédar Senghor