quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Trecho: Discurso Sobre a Negritude - Aimé Cesaire, org. Carlos Moore

...A raça e o racismo foram erigidos pelos não-negros em uma metaconsciência totalizadora, definidora do humano em termos puramente tautológicos, maniqueístas e essencialistas, como fruto de uma metavisão hegemônica. A Revolução Industrial e a emergência do capitalismo industrial as transformariam numa “consciência/estrutura” hegemônica planetária. De modo que, do século VIII aos dias atuais, o chamado Mundo Negro – principal alvo das agressões e depredações do expansionismo ocidental – nunca escapou da noção de raça definida fora dos seus domínios, sem a sua participação e sempre contra ele. Portanto, desde séculos atrás, a “questão racial” constituiria um dos grandes eixos de reflexão teórica e de práxis política que caracterizara a Modernidade. As lutas dos povos de pele preta, pela sua emancipação, particularmente aqueles de ascendência africana, não teriam como evitá-la. 

A Revolução Haitiana foi pioneira na constituição de um contraponto político-teórico inteligível do Mundo Negro à metavisão racializadora. Lá, elaborou-se, pela primeira vez, e de maneira global, uma resposta do mundo africano escravizado ao mundo ocidental, hegemônico e escravagistas. Aquilo que, hoje, reconhecemos como Negritude foi colocado de maneira radical e inequívoca diante do mundo, estão dominado totalmente pelo Capitalismo predador, expansionista e militarista do Sec. XIX.

O Haiti produz a primeira Revolução radical de essência antirracista, anticolonialista e anti-imperialista. Um desafio global a proposta monstruosa da desigualdade congênita entre as raças humanas e a superioridade natural de uma sobre a outra. Ela é o grande divisor de águas da modernidade, relativo à reivindicação fundamental dos direitos inerentes à condição humana. Não por acaso, Joseph Antenor Firmin (1850-1911), antropólogo haitiano, foi o primeiro intelectual negro a transferir esse desafio para o campo teórico e cientifico. Sua obre, 'A Igualdade das Raças Humanas'. publicada em Paris em 1885, respondia ponto por ponto às teses de Arthur de Gobineau.

Paralelamente a Firmin, ao longo do século XIX, os intelectuais haitianos se mostrariam preocupados por definir uma resposta teórica global às teses dominantes no Ocidente sobre a inferioridade dos negros. Assim, os pensadores haitianos Louis-Joseph Janvier (1855-1911) e Hannibal Price (1841-1893) contribuíram para a fundação das bases antropológicas do Panafricanismo e da Negritude.

Alexander Crummell (1819-1898), dos Estados Unidos, e Edward Wilmont Blyden (1832-1912), das Ilhas Virgens, são conceituados como verdadeiros precursores do Panafricanismo. Com seu 'O Cristianismo, o Islã e a Raça Negra), Blyden produziu uma das obras consideradas hoje fundantes do Panafricanismo. É dele o famoso slogan "A África para os Africanos", que o jamaicano Marcus Garvey converteria em uma expressão emblemática da descolonização. 'As Almas da Gente Negra', obra prima do grande sociologo e lider negro norteamericano Willian Edward Burghart DuBois, é, sem dúvidas, incontornável na perspectiva dos fundamentos teóricos basilares do Panafricanismo e da Negritude.

O primeiro conclave panafricano - "Primeira Conferencia Pan-Africana" - foi realizado em Londres, em 1900, sob o impulso de Henry Sylvester Willian, advogado de Trinidad e Tobago, e com o apoio moral de Blyden, Firmin e DuBois. Os dois últimos assistiram essa congregação de dirigentes negros mundiais em torno ao ideal da emancipação da Mãe África. O evento aconteceu num contexto de correlação de forças preponderantemente favorável às nações imperiais da Europa, com seus debates e conclusões refletindo essa realidade. As reivindações de mudanças do momento não implicavam na impugnação da Europa em si. Assim, essa primeira fase do Panafricanismo (1900 A 1925) TEVE UMA POSTURA DOUTRINAL MODERADA, SENÃO APOLOGÉTICA, NÃO FALTANDO RESSALVAS RECONFORTANTES Às potencias colonizadoras.

Tudo isso mudaria com a ascensão do brilhante e carismático líder Marcus Garvey e o Panafricanismo politico e econômico radical inaugurado por ele, apoiando-se na maior organização negra conhecida na história, a UNIA. O projeto politico transnacional garveysta se desdobrava numa afirmação valorizada e defensiva da raça negra: "Desconsidero fronteiras no que diz respeito ao Negro; o mundo inteiro é a minha província até que o Negro livre seja". No tocante à questão da Identidade racial, também não cabia ambiguidades no seu discurso: "O Negro deve sentir tanto orgulho de ser negro quanto o branco de ser branco."

Fundada logo após a Primeira GUERRA MUNDIAL (1914-1918), a UNIA se converteu em uma gigantesca organização que, no seu apogeu, nas décadas de 1920 e 1930, chegou a somar entre dez e quinze milhões de afiliados. Sua meta: congregar todos os povos negros do mundo sob um mesmo guarda-chuva ideológico e politico; a união entre os povos da diáspora e os da África, a fim de expulsar as potencias imperiais, libertar todo o continente africano e unificá-lo. Na Convenção Internacional de Povos Negros do Mundo (1920) - o primeiro dos quatro congressos mundiais da UNIA -, um "Governo Interino Provisional da África" foi criado por votação e Garvey eleito como "Presidente Provincial".

Marcus Garvey levou o Pan-africanismo a uma etapa superior de militância anticolonialista e anti-imperialista com um proposito grandioso: a constituição dos "Estados Unidos da África", grande potência industrial e militar continental. Um estado capaz de defender os direitos de todos os povos africanos e dos negros do mundo e coexistir em pé de igualdade com todas as nações. Defendeu, sem ambiguidades, a urgência de uma mudança radical no mundo: a expulsão compulsória das potências coloniais do Continente Africano; a independência politica imediata de todos os povos colonizados; a luta intransigente contra a supremacia branca. Resumiu demandas no slogan: "Europa para os europeus. Ásia para os Asiáticos. A África para os africanos, no continente e no além-mar!" 

Livro Discurso Sobre a Negritude - Aimé Cesaire, org. Carlos Moore


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