(...)Retomando o problema da História do negro no Brasil: que somos nós, pretos, humanamente? Podemos aceitar que nos estudem como seres primitivos? Como expressão artística da sociedade brasileira? Como classe social, confundida com todos os outros componentes da classe economicamente rebaixada, como querem muitos? Pergunto em termos de estudo. Podemos, ao ser estudados, ser confundidos com os nordestinos pobres? Com os brancos pobres? Com os índios?Pode-se ainda confundir nossa vivência racial com a do povo judeu, porque ambos sofremos discriminação? Historicamente, creio não haver nenhuma semelhança entre os dois povos, mesmo se pensarmos em termos internacionais. Em termos de Brasil, nem em fantasia podemos pensar assim; o judeu no Brasil é um branco, antes de tudo judeu, isto é, poderoso como povo, graças ao auxilio mutuo que historicamente desenvolveram entre si.Não será possível que tenhamos características próprias, não só em termos "culturais", sociais, mas humanos? Individuais? Creio que sim. Eu sou preta, penso e sinto assim.(NASCIMENTO, Beatriz. Por uma história do homem negro. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007). .
Um blog sobre os pensamentos e ações do grupo de rap Insurreição CGPP. Aqui se encontram os textos produzidos, notícias do grupo, letras de rap, clipes e traduções. Além de indicações de leituras, notas e trechos de textos literários, acadêmicos, políticos e de rap. Membro atual: Fuca
quarta-feira, 2 de setembro de 2020
Considerações ao Livro de Malcolm X - O Fim da Supremacia Branca no Mundo
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
Metrópoles: a paz atrás da cerca elétrica
Metrópoles: a paz atrás da cerca elétrica
“Se conforma
com a paz atrás da cerca elétrica
Se por o pé
pra fora plá plá já era.”
(Há Mil Anos
Luz da Paz, Facção Central)
O objetivo nesta nota
é avaliar os “possíveis” conflitos de classe nas cidades, apenas como nota do
texto “Alguns Aspectos da Dinâmica Recente da
Urbanização Brasileira”, de Marcelo Lopes de Souza. Por isso omiti a questão racial aqui.
Ao tratar a
urbanização brasileira não se pode deixar de analisar o fenômeno da metrópole,
principalmente no que tange a metropolização de São Paulo assim como a do Rio
de Janeiro. É possível apontar que após a consolidação da urbanização e dessas
duas grandes metrópoles na década de 70, vem ocorrendo uma involução
metropolitana, que se dá não pela redução do tamanho urbano, mas, sobretudo,
pela precarização das condições gerais de vida e habitação que abrange a
dimensão espacial e sociopolítica das cidades.
Desde a fase do
capitalismo industrial, constata-se que as cidades se tornam o berço da
burguesia e mais adiante, como consequência da industrialização, o berço do
proletariado industrial. E se o baluarte do capitalismo está no seu
desenvolvimento geográfico desigual, é na cidade que se acirra os conflitos de
classes. (na sociedade moderna) “A história de qualquer sociedade até nossos
dias é a história da luta de classes”. Pois cada classe deverá agir conforme
seus interesses.
São inúmeros os
desdobramentos dessa equação conflituosa, em suma, para apontar dois deles: a
extrema concentração riqueza para a minoria que detém os meios de produção; e a
pobreza para a maioria, que se dá na classe trabalhadora que por vezes não
encontra demanda onde possa vender sua força de trabalho. As metrópoles
mencionadas (RJ e SP) aglutinam essas duas faces socioespaciais.
O grandes centros urbanos
industrializados também são minoritários e maioria das pessoas, para
sobreviver, necessita migrar para esses centros para vender sua força de
trabalho. Ora, se a liberdade que a classe trabalhadora detém é a de “escolher”
onde empregar sua força de trabalho, neste sistema não se vê, enquanto classe,
na liberdade de não empregar sua força de trabalho, que acaba por ser uma liberdade
contraditória. Se torna necessário assim obter uma “aptidão” de mobilidade (qualificação)
para escapar do Exército Industrial de Reserva e por vezes do
“lumpemproletariado”, que cada vez cresce mais nas grandes metrópoles. Quando
uma pessoa ou uma família migra, carrega também sua condição de classe, devido
a isso deve-se compreender tal situação como um desdobramento coletivo e
inserido num contexto de crise global do trabalho e das migrações.
Os conflitos urbanos
estão longe de serem pacíficos, contudo cria-se regionalizações no sentido de
conter a sensação de insegurança, exemplo disso são os condomínios fechados,
que representam a autossegregação, uma maneira ilusória de solução para o
problema das cidades, mas que ancorados nos valores capitalistas, é exemplo de
excelência numa redoma. A favelização se torna uma saída mais barata e
plausível de habitação para quem detém menor poder econômico, e muitas vezes,
são territórios não assistidos pelo Estado, gera-se assim um comando interno
para além do Estado. Já nos espaços neutros que estão a mercê da segurança
pública, com seus espaços públicos ou privados, ocorre a conexão de todas as mazelas,
pois muitas vezes cada território está interligado e mesmo para os que se auto
segregaram, ao sair do portão automático poderá se deparar com algumas
consequências desses conflitos.
Contudo, apenas para provocar, e ainda no âmbito desse conflitos (que não foram elencados aqui), estaria hoje a burguesia mais protegida do que as regiões periféricas das cidades? A cerca elétrica de fato funcionou nesses grandes centros e que não detém tais meios fica a mercê das consequências? Pode ser um convite pra mim mesmo de aprofundar e continuar essa nota pra um texto.
Carlos R. Rocha
(Fuca),
Insurreição CGPP, 2019!
quarta-feira, 19 de agosto de 2020
O Estado Absolutista do Ocidente - Breve nota
Fichamento 2: ANDERSON, P. O Estado Absolutista do Ocidente. In: Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. Cap.1, p.15-41.
1º parte: As Estruturas iniciais do Estado Absolutista no Ocidente
O Estado Absolutista surge no
século XVI após uma longa crise econômica na sociedade europeia no decorrer dos
séculos XIV e XV. Com a relação à estrutura do absolutismo, o autor desvela uma
controvérsia na passagem do feudalismo para o capitalismo, baseando-se no que
Engels postulou em ter havido um equilíbrio de classe entre a antiga nobreza
feudal e a nova burguesia urbana, é apontado que tal classificação culmina na
designação de um tipo de Estado burguês ou então se chega a uma dominação
direta do capital, argumento que parece plausível. “No entanto, um estudo mais
detido das estruturas do Estado absolutista no Ocidente invalida
inevitavelmente tais juízos. Pois o fim da servidão não significou aí o
desaparecimento das relações feudais no campo” (ANDERSON, 1985, p.17)
As relações de produções
rurais ainda eram feudais, pois o trabalho não foi separado de suas condições
sociais de existência, assim como a relação do proprietário com a terra não foi
alterada, visando sempre a sujeição das massas camponesas. A aristocracia
feudal, portanto, era a classe dominante tanto na época medieval como durante
toda a fase inicial da época moderna.
Não obstante, as alterações das formas de exploração feudal foram significantes, mas o autor revela que a primeira geração de cientistas do materialismo histórico não fez uma teorização direta das novas monarquias centralizadas no intuito de compreender a importância na transição do feudalismo para o capitalismo. Outra geração o fez e assim evidenciou a nova forma de poder da nobreza, tal forma política foi concebida através da difusão da produção e troca de mercadorias.
2º Parte: O Processo de Evolução do Absolutismo (§7-12)
O poder político e econômico
no feudalismo era definido por uma unidade orgânica, onde instituía o trabalho
servil para a extração de excedentes. O advento das rendas monetárias
desencadeou no desaparecimento gradual da servidão pelo trabalho livre e o
contrato salarial ameaçando a unidade de opressão política e econômica da
classe dominante, que resultou então em mais repressão aos camponeses,
atingindo ainda alguns agentes da nobreza.
Com a diluição do primitivo
sistema feudal, a propriedade da terra tornou-se menos “condicional” e a
soberania mais “absoluta”, tendo em vista que as concepções medievais de
vassalagem estavam enfraquecendo atuando em dois sentidos: ao mesmo tempo que
conferia novos poderes à monarquia, emancipava os domínios da nobreza das
restrições tradicionais. Os membros individuais da classe aristocrática
perderam direitos políticos de representação na nova época, mas registraram
ganhos econômicos na propriedade, pois como cita o autor, “os Estados
monárquicos da Renascença foram em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos
modernizados para a manutenção do domínio da nobreza sobre as massas rurais”.
(ANDERSON, 1985, p.20)
A aristocracia tinha outro antagonista: a burguesia mercantil das cidades medievais. Durante a depressão feudal, teve-se um crescimento das indústrias urbanas e o desenvolvimento de novas técnicas que melhoraram o processo de produção ainda no século XV. Assim, portanto, o autor aponta que, “ quando os Estados absolutistas se constituíram no Ocidente, a sua estrutura foi fundamentalmente determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato, após a dissolução da servidão; mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que, depois de uma série de avanços técnicos e comerciais, evoluía agora em direção às manufaturas pré-industriais numa escala considerável”.
3º Parte: O Direito Romano nas Monarquias da Europa Renascentista
O reflorescimento do direito
romano correspondeu ambiguamente às necessidades tanto da burguesia urbana como
da aristocracia, cuja posição e poder desiguais moldaram as estruturas do
Estado absolutista no Ocidente. Essa concepção de direito agia economicamente
de acordo com a propriedade privada absoluta e incondicional quando a produção
e troca de mercadorias atingiram níveis globais, seja pela agricultura ou pela
manufatura, correspondendo aos interesses vitais da burguesia comercial e
manufatureira. No que tange a visão política é citado pelo autor da seguinte
maneira. “Politicamente, o reflorescimento do direito romano respondia às
exigências constitucionais dos Estados feudais reorganizados da época. Com
efeito, não restam dúvidas de que, na escala europeia, a determinante
primordial da adoção da jurisprudência romana reside na tendência dos governos
monárquicos à crescente centralização dos poderes. ” (ANDERSON, 1985, p.26)
Este sistema jurídico era
dividido em dois setores que de certa forma se contrastavam, o direito civil e
o direito público, enquanto um enfatizava a propriedade privada o outro
consolidava a centralização do poder da classe aristocrática.
“O efeito supremo da modernização jurídica foi, portanto, o reforçamento da dominação da classe feudal tradicional. O paradoxo aparente de tal fenômeno refletiu-se em toda a estrutura das próprias monarquias absolutistas – combinações exóticas e hibridas cuja ‘modernidade’ superficial trai frequentemente um arcaísmo subterrâneo. Este traço aparece claramente a partir de um analise das inovações institucionais que anunciaram e caracterizaram o seu aparecimento: exército, burocracia, tributação, comércio e diplomacia. Vale considera-los sumariamente nesta ordem. ” (ANDERSON, 1985, p.29)
4º Parte: A Política da Guerra e a Burocracia
No feudalismo a guerra era
tida como o modo mais viável de se extrair excedentes para a classe de
proprietários de terra. A competição no capitalismo se caracterizava
economicamente, já na rivalidade inter-feudal, a estrutura militar era quem
definia uma batalha, pois a nobreza buscava a aquisição de terras. Com isso, a
classe dominante feudal tinha a mobilidade mais aparente do que a classe
dominante capitalista, já que a terra é imóvel e necessitava-se de locomoção
para exercer o domínio. Então o instrumento clássico para a aquisição de terras
no feudalismo era por meio da força, por vezes a motivação se disfarçava em
religiosidade ou em genealogia. Os Estados absolutistas refletiam esta
racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura, sendo que, a criação dos
primeiros impostos foi para subsidiar os aparatos militares para a guerra.
A burocracia na Renascença
era tratada como propriedade vendável a indivíduos privados, a nobreza feudal
se integrava ao Estado absolutista através da aquisição de cargos. A venda de
cargos era um meio indireto de aumentar os rendimentos procedentes da nobreza e
da burguesia mercantil, no entanto, a tributação ocorria para os pobres
principalmente os impostos de guerra.
Enquanto o laissez-faire (burguês) era voltado ao pacifismo o mercantilismo (feudal) era fortemente belicista, enfatizando a necessidade da guerra.
5º Parte: A Questão Diplomática
Em acréscimo às atividades do comércio e da guerra, outra atividade externa nasceu no Estado absolutista do Ocidente, a diplomacia. Tal atividade consistia na sondagem dos perigos e pontos fracos de outros Estados, sempre com um caráter de preservação e engrandecimento do próprio Estado. A diplomacia só pôde ser exercida após a demarcação mais homogênea das unidades políticas, algo que não se tinha na Europa medieval.
6º Parte: O Dois Sistemas no Estado Absolutista
O autor conclui que o sistema
feudal, ainda que em declínio, se apresentava como dominante no Estado
absolutista. Predominância tida numa relação complexa e híbrida como citado
pelo autor. “Com efeito, o paradoxo aparente do absolutismo na Europa ocidental
era que ele representava fundamentalmente um aparelho para a proteção da
propriedade e dos privilégios aristocráticos, embora, ao mesmo tempo, os meios
através dos quais tal proteção era promovida pudessem simultaneamente assegurar
os interesses básicos das classes mercantis e manufatureiras emergente. ”
(ANDERSON, 1985, p.39)
Essa junção pôde se dar
devido a não exigência de uma produção de massa como da indústria mecanizada,
assim não se precisava ter uma ruptura radical com a ordem agrária feudal
vigente. “A centralização econômica, o protecionismo e a expansão ultramarina
engrandeceram o Estado feudal tardio, ao mesmo tempo que beneficiaram a
burguesia emergente. Expandiram os rendimentos tributáveis de um, fornecendo
oportunidades comerciais à outra. ” (ANDERSON, 1985, p.40)
Contudo, na época de
transição para o capitalismo, o domínio do Estado Absolutista era o da nobreza
feudal.
Por Carlos R. Rocha (Fuca)
Insurreição CGPP, 2018.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Migrar e Estar Ausente: O Abismo das Almas Vendidas e o Pessimismo de Luigi Damiani
Migrar e Estar Ausente: O Abismo das Almas Vendidas e o Pessimismo de Luigi Damiani
“Migrar temporariamente é mais do ir e vir – é viver, em espaços geográficos diferentes, temporalidades dilaceradas pelas contradições sociais. Ser migrante temporário é viver tais contradições como duplicidade; é ser duas pessoas ao mesmo tempo, cada uma constituída por especificas relações sociais, historicamente definidas; é viver como presente e sonhar como ausente. E ser e não ser ao mesmo tempo; sair quando está chegando, voltar quando está indo. E necessitar quando está saciado. E estar em dois lugares ao mesmo tempo, e não estar em nenhum. E, até mesmo, partir sempre e não chegar nunca.” (MARTINS:1986, p.45)
Ao cair na cilada de
tentar definir as migrações, José Martins de Souza, em “O Voo das Andorinhas”,
aborda o conceito de ausência que pode se fazer tranquilamente um paralelo com
os artigos da revista travessia, Literatura i/e Migração de 1999, que já na sua
apresentação, feita por Carlos Eduardo Schmidt Capela, demonstra a dificuldade
de definir imigrantes e emigrantes, além de perpassar pela sensação de ausência
do migrante, que traz consigo características de nacionalidade.
Apesar de Martins em
seu texto não focar especificamente nas migrações estrangeiras, seu conceito de
ausência cabe a esse tipo de migração que está sendo desenvolvida nos artigos
da revista, pois, sobretudo, o assunto tratado não deixa de ser migrações
temporárias, já que o tempo em questão é considerar-se ausente, ausência que é
medida pela não ocorrência da dessocialização do local de partida e da
ressocialização no lugar chegada, o migrante se vê num sentimento de estar
“fora de casa”, “fora de seu lugar”. Essa situação não pode ser entendida como
um processo de progresso civilizatório, todavia, como um processo violento de
expulsão das pessoas de seus lugares de origem através da acumulação primitiva
e da imposição da mobilidade do trabalho. Em tempos atuais, a crise que gera
migração é global e ocorre simultaneamente em diversos espaços, pois os
trabalhadores não conseguem mais vender sua força de trabalho.
Mesmo quando se fala de
uma “migração permanente”, ainda pode se ter incutido o imaginário de ausência,
contudo a posição de migrante permanente não foi o caso de um grupo de
migrantes, em sua maioria italianos, que tinham compromisso com uma ação cultural
libertária junto a classe trabalhadora do Brasil nos finais do século XIX e
início do século XX. Sendo assim, acabaram expulsos e quando não, desencantados
com os obstáculos tidos no Brasil que assegurava apenas uma exploração
crescente dos imigrantes italianos e condições insalubres de trabalho nas mãos
dos fazendeiros e industriais em São Paulo. Umas das figuras mais emblemáticas foi
Luigi Damiani, de acordo com o artigo de Antônio Artoni Prado em “Sobre as
imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani”, publicado na revista
travessia, edição de número 35. Em um trecho sobre Damiani é apontado que o seu
“(...)inconformismo e a luta contra a dura realidade do Brasil, mais do que o
desengano, trouxe-lhe a prisão e em seguida o banimento. Os depoimentos que
escreveu entre 1920-21 para o jornal Volonta, de Ancona – depois portanto de
sua expulsão, que se deu em 1919 – servem como exemplo oportuno do grau de
veemência com que repudiou as condições desfavoráveis ao avanço da emancipação
social no Brasil.” Damiani em seus escritos apresentava uma posição de ruptura
com a ordem estabelecida e assim sua obra passou a aguçar um certo pessimismo
intelectual diante das possibilidades de emancipação da classe trabalhadora no
Brasil, que não sinalizava uma quebra da ordem vigente. Sobre os ideais
anarquistas, confessou frustrado, que nem mesmo em sonho poderia ser atingido,
pois, “comer e ter direitos mínimos, se isso fosse possível, seria aqui uma
façanha notável.”
Por vezes para muitos,
ancorados em premissas do senso comum, o ato de migrar poderia estar atrelado a
algo inerente do ser humano, na sua condição ontológica, e não parte de uma
crise ou mesmo imposição feita com maior veemência a partir da consolidação da
sociedade moderna, onde se torna obrigatória a mobilização geral em busca de
trabalho. Cabe, portanto, abarcar alguns aspectos das migrações tendo como
referência a crise do sistema global da economia de mercado.
Tal crise é estrutural
no mundo contemporâneo que gera desemprego em massa e pobreza, e exige-se,
então, de quem queira oferecer sua força de trabalho ao mercado, a constante
mobilidade do trabalho em um cenário que já não aponta saída de trabalho para
todos. Em suma, além do trabalhador moderno ser obrigado, numa espécie de
coerção silenciosa, a se submeter ás relações econômicas de mercadoria, não se
tem garantia de que os trabalhadores possam de fato exercer tal liberdade de
vender sua força de trabalho.
Os países do chamado Terceiro Mundo em geral passam por um processo de crescimento da urbanização mas contando com uma constante desindustrialização, os países centrais aparecem assim como a grande saída, o oásis para os trabalhadores, que tem como maior anseio, dentro dessas condições, encontrar um lugar que possa comprar sua força de trabalho.
“Eu quero
trabalhar o dia inteiro, nem que seja pra ganhar um tostão
Eu já não posso
mais e voltar atrás eu não quero não”
(Poeira do Norte, Gordurinha)
O ponto de partida
dessa imposição do trabalho pode ser estabelecido com o advento da sociedade
moderna e em sua transição do feudalismo para o capitalismo assentado nos
valores sociais e culturais do Iluminismo e da Revolução Burguesa. Tais
aspectos caracterizam a base para uma primeira humilhação da classe
trabalhadora que teve sua humanidade transformada em material de mercadoria,
que fora coisificada para gerar valorização. Se levarmos em conta que toda
mercadoria se aufere no trabalho abstrato despendido em sua produção,
considerando como simples gasto de energia humana, física e intelectual, e que
o trabalhador se encontra alienado do controle e do produto do trabalho, são as
coisas, então, que usam os trabalhadores através dos meios de produção para
agregar acumulo e aumentar o valor. O desdobramento dessa engrenagem posta de
maneira simplificada aqui, pode ser caracterizada como uma humilhação primária.
Dentro desses
parâmetros, os fluxos migratórios contemporâneos e a maioria das lutas travadas
pelos trabalhadores, seja em movimentos sociais ou políticos, são pautados
tendo como base os princípios que fundaram a própria humilhação primária, ou
seja, se almeja a consolidação de uma mínima dignidade humana para escapar de
uma humilhação secundária que empurra o trabalhador despossuído para as margens
da sociedade e da vida humana.
O cenário é caótico, a
competitividade é esmagadora, a luz no fim do túnel praticamente não existe, o
que resta é ter a esperança de manter a condição mínima de sobrevivência e
nisso vale tudo pelo capital. Então migrar para os grandes centros, (que na
verdade são minoria no mundo), que provocaram a pauperização da maioria, é uma
saída plausível nesse contexto. Mas mais do que nunca, (e a tendência é aumentar o
abismo para os despossuídos), é necessário romper com esses parâmetros da
sociedade moderna ocidental para pensar e construir um novo mundo. Tal embate
não se tem como evitar apenas adiá-lo e assim assistir o capitalismo se reinventar
de período em período mantendo sua hegemonia no mundo.
O capitalismo se
reinventou através do neoliberalismo desde pelo menos os anos 1970, e o que
fazia parte de uma agenda implícita de desmonte de direitos e políticas
públicas timidamente conquistadas, já após a queda da União Soviética marcando o
fim da Guerra Fria, se mostra tanto uma agenda implícita como explicita, se
tornando assim uma armadilha para os trabalhadores organizados em diversos
movimentos, no sentido de pretender almejar simplesmente a sobrevivência e a
dignidade humana sem qualquer compromisso com uma agenda de ruptura perante o
sistema capitalista imposto. Se busca a máxima de igualdade, alicerçada nos
direitos do homem, da propriedade privada, do individualismo, afim de fazer
valer os valores da revolução burguesa.
Tal armadilha chega ao
ponto de instituições que explicitamente favorecem o aumento da pobreza e da
miséria, principalmente nos países do chamado Terceiro Mundo, se intitularem
como altruístas e se postarem como solução de desenvolvimento e de redução das
desigualdades. A exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional,
que através de seus empréstimos a juros elevados, para que os países do
terceiro mundo fiquem endividados, intervém nas estruturas políticas desses
países visando nitidamente implantar uma reestruturação neoliberal, tendo como
orientação uma reforma fiscal, a abertura de mercado, políticas de
privatizações, dentre outras medidas. O neoliberalismo está no mundo inteiro e
a maioria das forças progressivas em todo o mundo se encontra a mercê dessas
ações ao clamar simplesmente por democracia, mas uma democracia burguesa, vazia
de qualquer controle popular e de transformação social, pois é exatamente essa
democracia que serve como intervenção do Imperialismo Capitalista de hegemonia
norte-americana, que atualmente não financia as ditaduras, no entanto, se
apresenta como promotores da democracia.
Assim, mesmo o caráter de denúncia dos maus tratos e de péssimas condições de trabalho, tidos também nas obras de Luigi Damiani, já passam a ser minimizados pela busca de qualquer espaço para exercer a liberdade de venda da força de trabalho da classe trabalhadora, além de em síntese nem serem mais a solução para a diminuição dos fluxos migratórios. Mesmo num mercado regulado, já não se pode mais apostar num sistema do mundo do trabalho assalariado, pois tal forma já se mostrou como causa das fugas em massa de quem necessita vender sua força de trabalho. E, assim, o pessimismo ainda cabe, de certa forma, pois se tem um distanciamento enorme com os ideais de ruptura da ordem estabelecida e para que se vise a construção de um novo mundo.
Referências:
HEIDEMANN, D. “Os
migrantes e a crise da sociedade do trabalho: humilhação secundária,
resistência e emancipação”. In: Migrações: discriminações se alternativas. São
Paulo: Paulinas/SPM, 2004.
KURZ, R. “Barbárie,
migração e guerras de ordenamento mundial”. In: Serviço Pastoral do Migrantes,
Travessias na Desordem Global. Porto Alegre: Paulinas, 2005.
MARTINS, J.de S. ”O voo
das andorinhas”. In: Não há terra para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes,
1986.
ANTONIO ARNONI PRADO, Sobre as
imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani. In: TRAVESSIA-revista de
literatura- n.39 -UFSC -FIorianopolis-jul-dez.l999; pp J9.55
por Carlos R. Rocha (Fuca), Insurreição CGPP
2018
quarta-feira, 5 de agosto de 2020
Abdias Nascimento sobre Marcus Garvey em 05/06/1997 - Pronunciamento no senado.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. pronuncia o
seguinte discurso) - Sr. Presidente, SRªS E SRS. senadores, Sob a proteção de
Olorum, inicio este pronunciamento.
Acontecimento mais relevante da história deste milênio, a
invasão do Continente Africano por europeus a partir do século XVI, com a
escravização e migração forçada de milhões de seus filhos e a transformação dos
restantes em súditos coloniais, alterou para sempre a face do planeta. Pode-se
afirmar, sem medo de exagero, que o transplante de enormes contingentes de
africanos para o outro lado do Atlântico não apenas moldou a face das
sociedades americanas, mas constituiu o principal motor de processos fundamentais,
como a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, responsáveis pela
configuração do mundo, tal como hoje o conhecemos. Dentre as consequências
negativas desse fato histórico encontram-se os principais vetores da
instabilidade de que padece não apenas a África mesma, mas igualmente boa parte
das Américas, sem esquecer a própria Europa. Questões como o racismo e a
xenofobia, que têm nos descendentes de africanos no Novo e no Velho Mundo
seus alvos preferenciais, encontram-se nas raízes de problemas como a
violência urbana, as crianças de rua, a favelização das metrópoles. Ao mesmo
tempo, as sequelas do colonialismo se espelham com clareza no empobrecimento e
nas sangrentas lutas fratricidas que nos acostumamos a associar a determinadas
regiões da África, frutos da atomização e do artificialismo que presidiram à
imposição das atuais fronteiras dos países africanos pelos centros
político-militares europeus de força.
Com todo o sofrimento e toda a dor que constituíram parte
integrante desse processo cruel, a história da resistência africana na própria
África e nas Américas é também uma saga repleta de heroísmo, bravura,
determinação e criatividade. Qualidades que possibilitaram que um povo dominado
pelo poder das armas, reforçado por toda espécie de ideologia mistificadora,
conseguisse impor boa parte de sua cultura, de seus valores, de sua arte, de
sua religião aos seus dominadores, a despeito da suposta superioridade por
estes autoproclamada. Tudo isso não aconteceu de graça, mas em resultado de uma
luta tão multifacetada quanto as próprias estratégias de dominação elaboradas
pelos escravizadores europeus e seus descendentes. Uma luta a um tempo nos
planos material e ideológico, envolvendo não somente as armas convencionais de
cada época e lugar em que tem sido travada, mas igualmente a palavra e o
pensamento, tendo por meta a derradeira conquista das consciências e mentes de
europeus, africanos e seus descendentes. Objetivo último dessa luta: a
supremacia final, para uns, ou a plena liberdade, para outros.
Uma das noções mais antigas entre os povos africanos
escravizados nas Américas é a de que sua liberdade não se resgataria com
simples apelos emotivos ao coração do dominador. Mais do que isso, a percepção
de que uma África unida, livre da hegemonia europeia, constituiria uma fonte de
força e apoio aos negros em todo o mundo. Essa visão, raiz mais profunda
daquilo que viria a ser conhecido como pan-africanismo, encontra-se presente,
mesmo que de forma incipiente, no ideário dos principais movimentos de luta
organizada contra a escravidão nas Américas. Estava presente em Palmares, que
congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em
busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe,
os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti.
O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do
mundo africano. Não há nenhuma conotação racista nessa unidade, que se baseia
não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos
históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em
face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo
reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista
com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da
Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de
milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída,
fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do
Caribe.
O primeiro registro histórico de uma reivindicação de caráter
tipicamente pan-africano data de meados do século XVIII, na forma de uma
petição em que escravos da colônia inglesa que um dia se transformaria nos Estados
Unidos da América pleiteavam a volta à África depois de libertados. A mesma ideia
presidiu à fundação em 1787, por um grupo de afro-americanos, da cidade de
Freetown - que mais tarde viria a ser a capital da Serra Leoa -, revertendo um
projeto originalmente racista e paternalista que só ganhou força quando
ressuscitado e recuperado por africanos e descendentes oriundos do Caribe e da
América do Norte.
O século XIX assistiu ao crescimento e consolidação do ideal
pan-africano, impulsionado, nos Estados Unidos, por nomes como Prince Hall,
John Russworm, o Bispo McNeil Turner e o grande ativista Edward Blyden. O mesmo
ideal que, sob diferentes formulações, propelia ao mesmo tempo os movimentos
anticoloniais africanos. Na África do Sul, por exemplo, desde a sua criação, no
início deste século, o Congresso Nacional Africano, que décadas mais tarde
concretizaria o sonho aparentemente utópico de um governo de maioria negra,
incorporou integralmente ao seu programa o ideal pan-africano. Como se percebe
no profético discurso do nacionalista sul-africano Isaka Seme, proferido em
1905 na Columbia University:
O gigante está acordando! Dos quatro cantos da terra os filhos
da África marcham em direção à porta dourada do futuro, carregando o
registro de proezas de valor realizadas.
Dentre os inúmeros intelectuais e ativistas dedicados à causa
pan-africana nestes últimos dois séculos, um nome se destaca: o de Marcus
Garvey, responsável pela fundação do principal movimento internacional negro em
toda a história - a UNIA (Universal Negro Improvement Association, Associação
Universal para o Avanço Negro), organização que chegou a ter 35 mil militantes
inscritos nos Estados Unidos, 52 filiais em Cuba, oito em Honduras, oito na
África do Sul, 47 no Panamá e 25 na Costa Rica -, onde tive a oportunidade de
visitar o casarão histórico em que funcionou seu quartel-general para a região,
ainda preservado na Província de Limón. Além de sucursais no Brasil, Equador,
Nigéria, Porto Rico, Austrália, Nicarágua, México, Barbados, Serra Leoa,
Inglaterra e Venezuela.
Marcus Garvey nasceu em St. Ann's Bay, na Jamaica, a 17 de
agosto de 1887. Filho de um pedreiro do mesmo nome, descendente dos
aguerridos maroons, que desafiaram - por vezes com sucesso - a
ordem colonial britânica na Jamaica e em todo o Caribe, cedo demonstrou uma
aguda inteligência e uma inquietação em face de problemas sociais e raciais que
iria acompanhá-lo até a morte. Já aos 16 anos, como aprendiz de gráfico, seu
primeiro emprego, o jovem Garvey iniciava sua atuação como ativista político,
participando de uma greve de sua categoria. Pouco depois, publicou seu primeiro
jornal, The Watchman (O Vigilante), em que expunha suas ideias
e preocupações sobre temas vinculados a raça e classe.
Essas preocupações o levariam em frequentes viagens ao exterior,
nas quais a visão dos descendentes de africanos ocupando em toda parte a base
da pirâmide social acabaria consolidando suas posições ideológicas e forjando
os elementos essenciais de sua plataforma anti-racista, antiimperialista e
anticolonialista. Assim foi no Panamá, porto de destino de milhares de
jamaicanos atraídos pelos empregos oferecidos com a construção do Canal, mas
discriminados em favor dos operários brancos. Também no Equador, na Nicarágua,
em Honduras, na Colômbia e na Venezuela, onde os negros, empregados na
mineração ou nas plantações de tabaco, pareciam incapazes de melhorar as
humilhantes condições em que viviam.
Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 de idade, chega a Londres, onde
vai trabalhar, estudar e desenvolver-se na percepção de novas dimensões da
luta negra. A capital do Império Britânico, ainda nos picos de seu poderio, era
o ponto focal da efervescente atividade intelectual e política que marcou o
período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, em
1911, a cidade abrigara um Congresso Mundial sobre Raça, organizado sob os
auspícios do Movimento Inglês de Cultura Ética - o mesmo Congresso em que o
representante brasileiro declarou candidamente estar o Brasil resolvendo seu
problema racial por meio da miscigenação, que acabaria com os negros dentro de
um século. À miscigenação, acrescente-se, devemos somar as péssimas condições
de vida que ajudariam a liquidar o povo afrodescendente neste país. A
literatura, as atitudes e os debates relativos a esse Congresso ainda eram
motivo de acesas polêmicas quando Marcus Garvey chegou a Londres. Igualmente
importante era a nova literatura anticolonial produzida na África Ocidental.
As ideias do jovem Garvey sobre a redenção africana ganharam
contornos definitivos quando se associou ao intelectual nacionalista Duse
Mohammed Ali, um egípcio de ascendência sudanesa que publicava o jornal
mensal The African Times and Orient Review. O período londrino
completou a educação política de Marcus Garvey. Ele estava pronto para a sua
tarefa. Em 1914, retornou à Jamaica e fundou uma organização, que denominou
Associação Universal para o Avanço Negro e Liga das Comunidades Africanas. Dois
anos depois, encorajado pelo líder afro-americano Booker T. Washington, desembarca
em Nova York. No Harlem, toma contato com as especificidades da questão racial
nos Estados Unidos. Os negros do Sul fugiam para o Norte, deixando atrás de si
o sistema aparteísta do Jim Crow, os linchamentos, a falta de direitos
políticos, a servidão e a miséria. No Norte, ganhavam melhores salários nas
fábricas, que agora tinham de alimentar a máquina de guerra, mas eram obrigados
a viver em casas caindo aos pedaços, em bairros miseráveis, e seus filhos frequentavam
escolas precárias, tanto nas instalações quanto no ensino. Os poucos que
ousavam usar estratagemas para comprar residências em bairros de brancos viviam
apavorados pela possibilidade de bombas racistas explodirem em suas casas ou de
suas famílias serem ameaçadas na rua.
Não existia nessa época uma organização verdadeiramente negra em
Nova York. As que havia eram multirraciais, dirigidas por brancos e mestiços de
pele clara. Garvey começou sua pregação discursando nas esquinas do Harlem.
Logo precisou ocupar espaços maiores, na medida em que crescia o público
interessado em sua mensagem positiva, que falava de uma ação internacional
em favor do negro. Essa reação estimulou Garvey a instalar nos Estados
Unidos a sua UNIA, que se distinguia das demais organizações por ser
exclusivamente negra e defender um programa ousado e radical. Categorizando a
luta negra como de direitos humanos, e não somente de direitos civis, o que
implicitamente estabeleceria seu caráter internacional, já em 1920 Marcus
Garvey articulava a distinção fundamental assinalada por Malcolm X nos anos 60,
contribuindo para elevar a luta negra a um patamar superior ao do
integracionismo liberal.
Garvey compreendeu três necessidades básicas do negro em todo o
mundo: a de dignidade e auto-respeito como povo unido; a de uma África independente
e unida como base de força central; e a de instituições autônomas para
impulsionar a vida das comunidades negras. Além disso, como nenhum outro, antes
ou depois dele, Marcus Garvey percebeu a importância das comunidades negras das
Américas Central e do Sul para a luta pan-africanista internacional, inspirada
no lema "A África para os africanos, na própria pátria e no
exterior".
Em 1920, no auge do prestígio de Garvey, a UNIA organizou a I
Convenção dos Povos Africanos do Mundo, com a presença de 25 mil representantes
e delegados de todos os continentes. O produto mais importante dessa Convenção
foi a Declaração de Direitos dos Povos Negros do Mundo, que condenava o
colonialismo, afirmava o "direito inerente do negro de governar a
África", instituía o vermelho, o preto e o verde como as cores simbólicas
do pan-africanismo, e exigia o fim dos linchamentos e da discriminação racial
nos países da diáspora africana, bem como o ensino da História Africana nas
escolas públicas.
A independência econômica era outro fator enfatizado no programa
da UNIA. Garvey exortava seus seguidores a "comprar de negros", a
preferir negociantes de sua própria raça. Atendendo o apelo de Booker T.
Washington à auto-suficiência, a UNIA iniciou diversos projetos na área
empresarial, incluindo a Corporação de Fábricas Negras, destinada a ajudar
empresários da comunidade. O que é mais importante, Garvey fundou a Black Star
Steamship Line, para funcionar como laço comercial e espiritual entre os negros
de todos os lugares que seus navios alcançassem. Para surpresa de seus
críticos, entre 1919 e 1925 Garvey juntou dinheiro suficiente para adquirir
quatro navios e estabelecer ligações comerciais com o Caribe.
Embora os navios da Black Star Line transportassem tanto carga
quanto passageiros, o objetivo não era um retorno físico de todos os negros à
África, que ele sabia ser impossível, mas antes um retorno de caráter simbólico
e espiritual. Garvey acreditava, contudo, ser dever dos descendentes de
africanos contribuir, com seu trabalho, conhecimento e tecnologia, para o
fortalecimento do Continente-Mãe, tendo em vista uma futura derrubada de
fronteiras e a criação de uma nação unificada. Nesse sentido, chegou a
estabelecer negociações com o Governo da Libéria.
Se granjearam uma legião de seguidores, as ideias de Garvey
também o fizeram colecionar desafetos, entre brancos e negros, à direita e à
esquerda do espectro político. Creio não ser preciso enfatizar o perigo que ele
representava para o establishment, com suas ideias de autonomia, dignidade
e auto-respeito. Problemas com a administração da Black Star Line acabaram
fornecendo o pretexto para que o FBI o prendesse, em 1923, sob falsas
acusações, o que causou uma gigantesca passeata de protesto, que reuniu 150 mil
pessoas, de várias nacionalidades, nas ruas do Harlem. Deportado para a Jamaica
em 1927, Garvey foi recebido pelo povo de Kingston, a capital, como um
verdadeiro chefe de estado - mas como uma ameaça pela elite, branca e negra.
Essa oposição, materializada sob a forma de dificuldades jurídicas, não o
impediu de se eleger, na capital, para um cargo correspondente ao de
vereador, nem de publicar um novo jornal, The New Jamaican (O
Novo Jamaicano).
Em 1935, ano em que a Itália de Mussolini invade a Etiópia,
então a única nação independente da África, provocando um acirramento das
discussões sobre colonialismo e racismo, Garvey retorna à Inglaterra, onde
passará seus últimos anos. Seu propósito era cobrar diretamente do
Império Britânico a redenção do Continente Africano. Os ingleses não se
preocuparam muito. O Império vivia seu último período de esplendor, dominação e
arrogância. Não estava, assim, inclinado a dar ouvidos a esse súdito da Coroa
que agia como um cidadão, exigindo os direitos básicos da cidadania. Era também
a época da Grande Depressão, cujas consequências se abatiam com maior impacto
sobre os descendentes de africanos. Garvey viveu seus últimos anos na pobreza,
embora sem perder o orgulho de maroon que o projetara
mundialmente nas décadas precedentes. Em janeiro de 1940, um ataque de
paralisia o pôs de cama, e alguns jornais publicaram que ele havia morrido na
miséria. Cartas e telegramas choveram sobre seu escritório. A secretária evitava
que essa correspondência chegasse a suas mãos, mas ele acabou tendo acesso a
ela. As manchetes falando de sua morte causaram-lhe um choque do qual não se
recuperou, vindo a falecer no dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorridos 57
anos de sua morte, sua mensagem ao mundo continua válida:
Ó África, acorda
A aurora está chegando
Não mais és maldita
Ó bondosa Terra-Mãe
De longe teus filhos e filhas
Se dirigem de volta a ti
Sobre as águas ressoam seus gritos
De que a África será livre.
A filosofia de Garvey não é perfeita, nem fornece uma base
adequada para a moderna teoria e prática da luta africana. Em consequência, é
fácil e legítimo levantar críticas construtivas às suas ideias e ao seu
movimento. Mas não se pode negar o legado que ele deixou como fundamento
essencial à organização política do negro. Seu espírito continua vivo, apesar
dos incansáveis esforços de seus adversários em destruí-lo. Em seu livro The
Black Jacobins (Os jacobinos negros), o intelectual
antilhano C.L.R. James - que em vida foi meu amigo e apoiou as
reivindicações do Movimento Negro brasileiro ao VI Congresso Pan-Africano,
realizado em 1974 na Tanzânia - observa que dois caribenhos, "usando a
tinta da Negritude, inscreveram seus nomes de maneira indelével na história de
nosso tempo". James está se referindo a Aimé Césaire e Marcus Garvey. Para
ele, Garvey está na vanguarda do grupo de negros radicais do século XX cujas ideias
e programas ainda reverberam nos movimentos de libertação de nossos dias. Isso
se deve, em grande medida, ao trabalho incansável daquela que por décadas o
acompanhou na luta e que, depois de sua morte, dedicou a existência à
preservação de sua memória e à divulgação de suas ideias. Estou falando de sua
viúva, Amy Jacques Garvey, por quem tive a honra de ser recebido em minha
passagem pela Jamaica, em 1973.
O garveísmo inspirou muitos líderes africanos, como o ganês
Kwame Nkrumah, apóstolo do pan-africanismo, bem como a jovem liderança que, nos
anos 60, faria avançar a um ponto sem precedentes a luta dos afro-americanos.
Sua preocupação com a auto-imagem dos negros, com o valor do ensino da História
Africana, com a unidade dos povos da África e da diáspora, mas sobretudo sua
disposição de homem simples e prático, capaz de traduzir para as massas negras
despossuídas a mensagem do pan-africanismo, e de tomar medidas práticas para
concretizá-la - tudo isso fez de Marcus Garvey um homem que merece a admiração
e o respeito, não apenas dos africanos e seus descendentes, mas de todos
aqueles comprometidos de coração com a mudança efetiva das relações sociais e
raciais.
Axé, Marcus Garvey!
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/206794
quarta-feira, 29 de julho de 2020
Mary E. Modupe Kolawole: Gênero e Literatura Africana - Mulheres como uma massa critica
Dra. Mary E. Modupe Kolawole.
Professora de Inglês
e de Estudos das Mulheres na Universidade Obafemi Awolowo, Ilê-lfé, Nigéria.
Autora do livro “Womanism and African Consciousness” [Mulherismo e a Consciência Africana]
(Texto extraído de parte da aula inaugural em 2005)
Minha pesquisa sobre
gênero é um dos aspectos mais importantes do meu trabalho como teórica
literária. Minha pesquisa inicial não tinha foco especial em gênero até minha
bolsa de estudos na Universidade Cornell como pesquisadora visitante da
Fundação Rockefeller (1991-92). Observei que gênero era um critério importante
emergente em estudos acadêmicos nas ciências humanas, ciências, e saúde. Nesses
pontos, a maioria dos livros enfocou os critérios ocidentais de avaliação de
gênero na África, incluindo a literatura africana. Decidi juntar as opiniões
dos africanos sobre a realidade das mulheres a partir de minhas pesquisas em
história, lendas, mitos, gêneros orais, contos populares, provérbios e outros. A
literatura africana ocupa um lugar que eu descrevo como a zona crepuscular (twilight zone), um local intermediário (espaço ambíguo). A questão
da diferença ou alteridade, portanto, continuou a gerar muitas discussões
epistemológicas. Meus trabalhos também exploram a alteridade das mulheres, não
como uma resistência negativa à mudança, mas como uma manifestação de
mutabilidade, mesmo quando elas resistem à autonegação cultural e de gênero.
A
agência das escritoras africanas é notável por sua resiliência. Havia
uma lacuna esmagadora na percepção de gênero das mulheres africanas e um desejo
de nomear sua própria luta, rejeitando marcas como o feminismo africano/negro. As
mulheres africanas devem se constituir como uma massa crítica.
Eu me identifico com
Alice Walker e Chikwenye Okonjo-Ogunyemi, Clenora Hudson-Weems, entre outras,
devido seus anseios por formas mais inclusivas de nomear a luta das mulheres
pretas. Meu livro teórico, “Womanism and
African Consciousness” [Mulherismo e a Consciência Africana], levantou
questões válidas de como se define o mulherismo. “O que é então o mulherismo?
Para as africanas, o mulherismo é a totalidade da autoexpressão, do autocuidado
e da autoafirmação femininas nas maneiras culturais positivas." (Kolawole.
1997. p.24). O mulherismo não é uma ideologia que odeia o
homem. O mulherismo enfatiza a relevância racial e cultural, a centralidade da
família e a necessidade de que homens e mulheres trabalharem juntos para
alcançar justiça de gênero, equidade de gênero e empoderamento das mulheres.
(Kolawole 1997, 2004, 2005). Assim como a crítica literária
feminista se tornou uma importante ferramenta de pesquisa crítica. Vejo que o mulherismo
é uma versão adaptada disso, uma tentativa de infundir nacionalismo cultural e
racial na teoria literária de gênero.
Quando iniciei os seminários
e ensinos sobre o mulherismo, alguns colegas acreditavam que “quem paga a
flautista dita a música” e estavam céticos acerca do
direcionamento para uma alternativa ao feminismo, pois poderia ofender as
agências doadoras e perguntaram: "Quem patrocinará isso?" Outros
preferiram manter o status quo com o termo
feminismo. Meu desafio era injetar uma perspectiva africana, aumentando assim
as opções na conceituação de gênero. O próprio feminismo
não é monolítico. As diversidades
incluem feminismos liberais, socialistas, existencialistas e pós-modernos.
Outras
vertentes incluem o ecofeminismo e a mais recente variante, o feminismo
ciborgue. Minha experiência na África do Sul é significativa. Como
Associada da Fundação e residente acadêmica por três meses no Instituto
Africano de Gênero da Universidade da Cidade do Cabo, em 1997, meus trabalhos
sobre mulherismo alteraram o paradigma de estudos na África do Sul. Tornou-se
um ponto focal de diversas maneiras. Desafiei a sororidade universal e advoguei
o foco em mediações raciais e culturais. Meus livros estão agora nas listas de
leituras de universidades da Europa, EUA, Ásia e muitos países africanos.
Editoras
alemãs pediram os direitos autorais para traduzir minhas obras para o alemão.
Em
uma recente conferência na Cidade do Cabo, em janeiro de 2005, comentários de
renomados professores de literatura em universidades como Stellenbosch, Cidade
do Cabo, Natal, Suécia, EUA, etc, me saudaram. "Professora,
você é uma celebridade, uma lenda que simplesmente não consigo imaginar saindo
desta conferência sem apertar sua mão." "Você tem impressionado a
África do Sul nos últimos cinco anos." ''O artigo de Mary
Kolawole nos deu uma pista dos problemas dos estudos de gênero nos últimos dez
anos. Ela nos deu o caminho a ser seguido.” Entre esses
comentários inclui o da famosa professora de literatura Kristen Petersen. O
mundo estava esperando por uma estudiosa com a coragem de cantar canções
africanas em terras estranhas, mas enraizadas na África.
Também pesquisei
sobre gêneros femininos na literatura oral como ferramentas de autoexpressão
das formas dinâmicas. Esses gêneros como caminhos de poder para a autoafirmação
das mulheres refutam as alegações de ausência de voz e de invisibilidade.
Concordo
com Micere Mugo e Molara Ogundipe-Leslie de que precisamos apenas procurar
lugares de audibilidade, visibilidade e poder das mulheres africanas. Esses
lugares são revelados nos gêneros literários orais femininos, que foram
caminhos do envolvimento dinâmico no processo social, como observei em meus
trabalhos: "Existe uma infinidade de gêneros femininos entre os Iorubas.
Isso
inclui músicas Obitun; canções de Olori, canções Aremo, Ao-oka gelede, músicas
Olele e Alamo. As canções de Fulani Bori no norte da
Nigéria consistem em modos manifestos de autoexpressão e autoafirmação para as
mulheres desse grupo religioso esotérico. Outros gêneros
especificamente dominados pelas mulheres incluem a poesia da corte feminina
Hausa, canções de nascimento Ibo, Ogori Ewere, muitos poemas panegíricos e contos
populares, entre outros". (Kolawole, 1997) Em outras partes da África, as
mulheres tinham suas vozes em muitos gêneros orais exclusivamente femininos:
gênero
satírico de donzela nzema em Gana,
canções de noivas swati, lmpongo entre os Ila e Tonga da Zâmbia, Akan Dirges, Galla lampoons,
canções de moagem de Kamba e numerosos mitos de gênero e provérbios. (Kolawole,
1997; 1998). Muito trabalho foi feito na área de imagens das
mulheres em provérbios africanos por Minekke Schipper, Susan Arndt, Helen
Mugambe, Kehinde Yusuf, Ifeanyi Arua e Juliana Abbenyi,
Colegas e estudantes
envolvidos na pesquisa de gênero em todas as disciplinas inundaram minha caixa
de entrada com pedidos de assistência, informações, revisão da literatura e
referências sobre gênero na África. Recentemente, meu
trabalho soou cauteloso neste processo de representar as opiniões das mulheres
africanas de acordo com a agenda dos doadores. Podem não ser
questões de primeiro plano que transformarão as mulheres africanas de seus
espaços liminares, da margem para o centro. Em uma recente
conferência internacional sobre “Writing
African Women” [Escrevendo Mulheres Africanas], eu avisei sobre pesquisa
autocentrada e a chamada representação de mulheres africanas. Proponho
uma reapresentação de mulheres africanas usando o objetivo de
"escrever" a tradição Ioruba que garante uma abordagem cautelosa para
conhecer a noiva, já que as mulheres
africanas se tornaram a bela e proverbial noiva
dos pesquisadores. Vi minha tarefa à luz da argumentação de Leela Dube
investigando o "viés etnocêntrico das acadêmicas feministas ocidentais que
tendem a interpretar dados de outras culturas na perspectiva das experiências
adquiridas em suas próprias culturas e na compreensão de suas relações entre
homens e mulheres.”
O símbolo do “Mount Langbodo” [Monte Langbodo] de
Fagunwa dramatiza uma tensão de gênero - os homens como guardiões da chave
mestra dos múltiplos problemas das sociedades. A busca por Langbodo envolveu
apenas homens, sete caçadores corajosos. As mulheres estão
revelando sua desenvoltura através da literatura, e mover a literatura
nigeriana do Monte Langbodo tem sido
um objetivo importante para essas mulheres. Também uso a metáfora
da árvore arerê na minha teoria da ambiguidade do espaço e da voz das mulheres.
Um provérbio Ioruba resume essa contradição. "ile ti obinrin ri nse toto arere, igi arere ni hu nibe."-
(uma casa que permita a vocalidade das mulheres terá a árvore arerê crescendo
nela.) Não é permitido que a árvore arerê cresça perto da habitação humana
devido ao seu odor desagradável, mas é uma árvore forte e valiosa na construção
civil. A
geração mais jovem de mulheres escritoras está desconstruindo essa simples
metáfora. Entre elas incluem Toying Adewale, Omowunmi Segun, Maria Ajima e
muitas outras. A canonização de textos é outro desafio para mim. Deliberadamente,
trabalhei em novos escritos de jovens escritoras nigerianas para estabelecer e
divulgar suas obras. Eu trabalhei na antologia de Toyin Adewale, “Breaking the Silence” [Rompendo o Silêncio],
por esse motivo.
Algumas das teóricas
feministas mais conhecidas hoje incluem Mary Eagleton, Mary Evans, Maggie Humm
e Mary Rogers. Elas apresentaram algumas das teorias mais relevantes. Deixe-me
declarar aqui que o feminismo é uma teoria que abrange muitas disciplinas. É
uma teoria válida para filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos,
cientistas políticos, estudiosos da cultura, cientistas, tecnólogos e
pesquisadores da medicina. É facilmente a teoria mais
transversal da academia moderna. Portanto, é lamentável que aqui na Nigéria,
entre alguns estudiosos, o feminismo seja preterido por não ser acadêmico.
E
porque o mulherismo é relativamente novo, muitos estudiosos ainda desconhecem
seu status como ferramenta de
pesquisa.
Minha pesquisa
reitera a conceitualização e a prática das teorias mulheristas. O
mulherismo foi cunhado por duas intelectuais pretas, Alice Walker e Chikwenye
Okonjo-Ogunyemi, em 1982, como um meio de se autonomear e injetar consciência preta
nos estudos de gênero. A teoria mulherista agora está sendo
comemorada como a contribuição das mulheres pretas para os debates sobre gênero
e meu trabalho é um dos mais aplaudidos em todo o mundo por causa da
originalidade das ideias. Fui homenageada e ainda estou
sendo aplaudida por aumentar as opções de conceituação e metodologia de gênero.
Assim
como estudiosas tradicionais como Sandra Harding, Rose-Marie Tong, Angela
Miles, Jane Parpart, Mary Rogers e Mary Evans destacaram o feminismo como uma
teoria sólida e uma ferramenta para a academia moderna, numerosas
escritoras pretas, como Chandra Monharty, Irene D'Almeida, Abena Busia, Amina
Mama, Trion min ha, Madhu Kishwa, Leela Dube, Shushela Nasta e Audre Lorde,
estão elucidando o feminismo negro. Alice Walker,
Chikwenye Ogunyemi-Okonjo, Juliana Abbenyi, Clenora Hudson-weens e eu trouxemos
a estética literária mulherista ao centro do estudo acadêmico global de gênero.
Desejo frisar nesta
nota: o mulherismo, que não foi cunhado por mim, como o feminismo, é uma teoria
e metodologia literária reconhecida internacionalmente. Gostaria
de indicar aos colegas que ainda não têm conhecimento sobre o mulherismo e o feminismo
para navegarem na Internet, ler sobre esses conceitos e
que irá surpreendê-los o fato que o mundo tenha ido além do nível de perguntas
sobre a autenticidade desses cânones de gênero. Um estudioso
acadêmico pode ser definido como um cidadão do mundo das ideias: quanto mais
você tiver acesso a ideias, mais se tornará um participante dinâmico neste
mundo de horizontes epistemológicos em constante mudança e em expansão. A
ignorância não pode mais ser comemorada ou validada nos dias de alta tecnologia
e de explosão de informações.